“EU NASCI NO INVERNO DE 1898 EM BELFAST, filho de um advogado e da filha de um clérigo.” 1 No dia 29 de novembro de 1898, Clive Staples Lewis foi mergulhado num mundo no qual fervilhava o ressentimento social e político e se clamava por mudanças. A separação entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda só aconteceria duas décadas mais tarde. No entanto, as tensões que provocariam essa artificial divisão política da ilha eram óbvias para todo mundo. Lewis nasceu no âmago do domínio protestante da Irlanda (chamado de “Ascendancy”), numa época em que o país estava ameaçado sob todos os aspectos — político, social, religioso e cultural. A Irlanda foi colonizada por escoceses e ingleses nos séculos 16 e 17, o que provocou nos irlandeses desapossados um profundo ressentimento social e político contra os invasores. Os colonizadores protestantes eram diferentes dos irlandeses católicos quanto à língua e religião. Sob a liderança de Oliver Cromwell, “fazendas protestantes” se desenvolveram durante o século 17 —ilhas inglesas protestantes num mar irlandês católico. A classe dominante irlandesa foi rapidamente deposta por uma nova organização protestante. A Lei da União de 1800 viu a Irlanda tornar-se parte do Reino Unido, governada diretamente de Londres. Embora fossem uma minoria numérica, radicados sobretudo no norte, nos condados de Down e Antrim e na cidade industrial de Belfast, os protestantes dominaram a vida cultural, econômica e política da Irlanda. Mas, tudo isso estava prestes a mudar. Na década de 1880, Charles Steward Parnell (1846- 1891) e outros desencadearam movimentos por um governo autônomo da Irlanda, ao qual chamaramde “Home Rule”. Na década de 1890, o nacionalismo irlandês começou a ganhar força, criando uma sensação de identidade cultural irlandesa, o que injetou nova energia no movimento pelo “Home Rule”. Isso foi fortemente moldado pelo catolicismo e se opunha com vigor a todas as formas de influência inglesa na Irlanda, incluindo jogos como o rúgbi e o críquete. O fato mais significativo foi que o movimento passou a considerar a língua inglesa um agente de opressão cultural. Em 1893 foi fundada a Liga Gaélica (Conradh na Gaeilge) para promover o estudo e uso da língua irlandesa. Mais uma vez, isso foi visto como uma afirmação da identidade irlandesa sobre e contra o que se considerava, cada vez mais, a norma cultural inglesa estrangeira. À medida que a demanda por um governo nacional autônomo foi ganhando força e credibilidade, muitos protestantes se sentiram ameaçados, temendo a erosão de seus privilégios e a possibilidade de um conflito civil. Talvez não deva causar surpresa o fato de a comunidade protestante de Belfast, no início da década de 1900, ser muito insular, evitando contato social e profissional com seus vizinhos católicos onde quer que isso fosse possível. (O irmão mais velho de C. S. Lewis, Warren [“Warnie”], mais tarde recordou de que ele nunca havia conversado com um católico de seu círculo social antes de ingressar no Royal Military College em Sandhurst, em 1914.) 2 O catolicismo era “o outro” — algo estranho, incompreensível e, acima de tudo, ameaçador. Lewis adquiriu essa tendência hostil e segregacionista em relação aos católicos quando ainda era uma criança de peito.
Depois, quando o menino Lewis estava aprendendo a usar o banheiro, sua babá protestante costumava chamar seus cocozinhos de “minipapas”. Muitos consideraram Lewis, e ainda o consideram, alguém que se situa fora da verdadeira identidade cultural irlandesa devido às suas raízes na província protestante de Ulster. A família Lewis O censo irlandês de 1901 registrou o nome de todos os que “dormiam e moravam” na casa da família Lewis na zona leste de Belfast na noite de domingo de 31 de março. O registro inclui uma gama de detalhes pessoais — vínculos familiares, filiação religiosa, nível de escolarização, idade, sexo, patente ou profissão e local de nascimento. Embora a maioria das biografias se refira à família Lewis residindo no endereço “Dundela Avenue, 47”, o censo a registra morando à “Dundella [sic] Avenue, 21 (Victoria, Down)”. O registro da casa dos Lewis apresenta uma fotografia precisa da família na virada do século 20: Albert James Lewis; Chefe da família; Igreja da Irlanda; Lê e escreve; 37; M; Advogado; Casado; Cidade de Cork Florence Augusta Lewis; Esposa; Igreja da Irlanda; Lê e escreve; 38; F; Casada; Condado de Cork Warren Hamilton Lewis; Filho; Igreja da Irlanda; Lê e escreve; 5; M; Estudante; Cidade de Belfast Clive Staples Lewis; Filho; Igreja da Irlanda; Não lê; 2; M; Cidade de Belfast Martha Barber; Empregada; Presbiteriana; Lê e escreve; 28; F; Babá — empregada doméstica; Solteira; Condado de Monaghan Sarah Ann Conlon; Empregada; Católica romana; Lê e escreve; 22; F; Cozinheira — empregada doméstica; Solteira; Condado de Down 3 Como o censo indica, o pai de Lewis, Albert James Lewis (1863-1929), nasceu na cidade e condado de Cork, sul da Irlanda. O avô paterno de Lewis, Richard Lewis, era um caldeireiro galês que havia emigrado para Cork com sua esposa de Liverpool no início da década de 1850. Logo depois do nascimento de Albert, a família Lewis mudou-se para a cidade industrial de Belfast, no norte, para que Richard pudesse entrar em sociedade com John H. MacIlwaine para formar a bemsucedida empresa MacIlwaine, Lewis & Co., Engineers and Iron Ship Builders. O mais interessante dos navios construídos por essa pequena companhia talvez tenha sido o Titanic original — umpequeno barco a vapor construído em 1888, pesando apenas 1.608 toneladas. 4 No entanto, a indústria de construção naval de Belfast passava por mudanças na década de 1880, com os estaleiros de Harland & Wolff e de Workman Clark alcançando o predomínio comercial. Tornou-se cada vez mais difícil para os “pequenos estaleiros” obter sua sobrevivência econômica. Em 1894, Workman Clark assumiu o controle da MacIlwaine, Lewis & Co. A versão muito mais famosa do Titanic — também construída em Belfast — foi lançada em 1911 pelos estaleiros da Harland & Wolff, pesando 26 mil toneladas. Todavia, enquanto o famoso transatlântico afundou em sua viagem inaugural em 1912, o navio muito menor da MacIlwaine & Lewis continuou percorrendo regularmente sua rota comercial em águas da América do Sul sob outros nomes até 1928. 1.1 Roy al Avenue, um dos centros comerciais da cidade de Belfast, em 1897. Albert Lewis se estabeleceu como advogado na Royal Avenue, 84, em 1884, e continuou trabalhando nesse escritório até sua doença terminal em 1929. Albert mostrou pouco interesse na atividade de construção naval, e deixou claro para seus pais que ele queria seguir a carreira jurídica. Richard Lewis, que conhecia a ótima reputação do Lurgan College sob a direção do mestre William Thompson Kirkpatrick (1848-1921), decidiu matricular Albert nessa escola como aluno interno. 5 As habilidades didáticas de Kirkpatrick causaram em Albert uma boa impressão que durou todo o ano letivo. Depois de sua graduação em 1880, Albert mudou-se para Dublin, capital da Irlanda, onde trabalhou durante cinco anos para a firma Maclean, Boyle & Maclean. Tendo adquirido a experiência necessária e a licença profissional para advogar, ele voltou a Belfast em 1884, para estabelecer-se na profissão nos escritórios da prestigiosa Royal Avenue.
A Lei de 1877 do Supremo Tribunal de Justiça da Irlanda seguiu a prática inglesa de estabelecer uma distinção clara entre a função jurídica dos “solicitors” e a dos “barristers”, de modo que aspirantes tinham de optar pela função que desejavam desempenhar. Albert Lewis optou por tornar-se um solicitor, atuando diretamente em benefício de seus clientes, inclusive representando-os em instâncias inferiores da justiça. Um barrister especializava-se em advogar nos tribunais, e costumava ser empregado por um solicitor para representar o cliente em instâncias superiores. 6 A mãe de Lewis, Florence (“Flora”) Augusta Lewis (1862-1908), nasceu em Queenstown (atualmente Cobh), condado de Cork. O avô materno de Lewis, Thomas Hamilton (1826-1905), foi um membro do clero da Igreja da Irlanda — um clássico representante da aristocracia protestante que passou a sentir-se ameaçada quando, no início do século 20, o nacionalismo irlandês se tornou uma força cultural cada vez mais significativa. A Igreja da Irlanda fora a Igreja oficial em todo o país, apesar de ser uma fé abraçada por uma minoria em pelo menos 22 dos 26 condados irlandeses. Quando Flora tinha 8 anos de idade, seu pai aceitou o cargo de capelão da Igreja da Santíssima Trindade em Roma, onde a família morou de 1870 a 1874. Em 1874, Thomas Hamilton voltou para a Irlanda para assumir o cargo de cura em exercício da Dundela Church na área de Ballyhackamore na zona leste de Belfast. O mesmo prédio provisório funcionava como igreja aos domingos e como escola durante a semana. Logo ficou claro que uma solução mais permanente se fazia necessária. Iniciou-se então a construção de um novo prédio destinado a ser uma igreja, com projeto do famoso arquiteto eclesiástico inglês William Butterfield. Hamilton foi empossado como prior da paróquia recém-construída de São Marcos, em Dundela, emmaio de 1879. Os historiadores irlandeses atualmente apontam para Flora para ilustrar o papel cada vez mais significativo da mulher na vida acadêmica e cultural no último quarto do século 19. 7 Ela se matriculou como aluna do período diurno do Methodist College de Belfast — uma escola exclusivamente para meninos, fundada em 1865, onde “Turmas de senhoras” haviam sido criadas em resposta à demanda popular em 1869. 8 Ela frequentou um trimestre em 1881, e prosseguiu seus estudos na Royal University of Ireland em Belfast (atualmente Queen’s University de Belfast), obtendo First Class Honours 9 em Lógica e Second Class Honours em Matemática em 1886. 10 (Como ficará evidente, Lewis não herdou nenhum traço das habilidades de sua mãe.) Quando Albert Lewis começou a frequentar a igreja de São Marcos em Dundela, a filha do prior atraiu a sua atenção. Aos poucos, mas com firmeza, Flora parece ter-se sentido atraída por Albert, em parte por causa dos óbvios interesses literários deste. Albert havia se associado a Belmont Literary Society em 1881, e logo passou a ser considerado um de seus melhores oradores. Sua reputação de homem voltado para as letras o acompanharia pelo resto de sua vida. Em 1921, no auge da carreira de Albert Lewis como advogado, o jornal Ireland’s Saturday Night retrata-o numa charge: vestindo um traje típico de procurador da época, ele é representado segurando um capelo sob um braço e um volume de literatura inglesa sob o outro. Anos mais tarde, o obituário de Albert Lewis no Belfast Telegraph o descreveu como um “homem erudito e muito culto”, conhecido por suas alusões literárias nas apresentações no tribunal, e cuja “principal distração fora dos tribunais era a leitura”. 11 Depois de um prolongado e decoroso namoro, Albert e Flora se casaram no dia 29 de agosto de 1894, na igreja de São Marcos, em Dundela. O primeiro filho, Warren Hamilton Lewis, nasceu em no dia 16 de junho de 1895 na casa deles, no conjunto residencial “Dundela Villas”, na zona leste de Belfast. Clive foi o segundo e último filho do casal.
Os dados do censo de 1901 indicam que a família Lewis empregava na época duas serviçais. Caso raro numa família protestante, os Lewis empregavam uma doméstica da religião católica, Sarah Ann Conlon. A aversão permanente de Lewis ao sectarismo religioso — evidente em seu conceito de “cristianismo puro e simples” — talvez tenha sido estimulada por suas lembranças da infância. Desde o princípio, Lewis desenvolveu um relacionamento íntimo com seu irmão mais velho, Warren, o que se reflete nos apelidos para cada um dos dois. C. S. Lewis era o “Smallpigiebotham” (SPB) [Porcobuzanfinha] e Warnie o “Archpigiebotham” (ABP) [Porcobuzanfão], apelidos carinhosos inspirados pela frequentes (e, pelo que parece, reais) ameaças da babá de estapear suas “buzanfas de porco” se eles não se comportassem direito. Os dois irmãos se referiam ao pai como o “Pudaitabird” [Pássaro-batata] ou simplesmente “P’dayta” (devido ao jeito belfastiano dele de pronunciar a palavra potato, batata). Esses apelidos infantis voltariam a ter importância quando os irmãos se reunissem e restabeleceram seu relacionamento íntimo no final da década de 1920. 12 O próprio Lewis era conhecido como “Jack” no círculo de sua família e amigos. Warnie data a rejeição do nome Clive por parte de seu irmão no verão de 1903 ou 1904, quando Lewis de repente declarou que agora ele queria ser conhecido como “Jacksie”. Esse apelido foi gradativamente abreviado para “Jacks” e depois para “Jack”. 13 A razão da escolha desse nome permanece obscura. Embora algumas fontes sugiram que o nome “Jacksie” era o nome de um cão da família que morreu num acidente, não há provas documentais para isso. O ambivalente irlandês: o enigma da identidade cultural irlandesa Lewis era irlandês — algo que alguns irlandeses parecem ter esquecido, se é que um dia souberam. Na época em que eu mesmo morei na Irlanda, durante a década de 1960, minha lembrança me diz que quando alguém casualmente se referia a Lewis estava se referindo a um escritor “inglês”. No entanto, Lewis nunca perdeu de vista suas raízes irlandesas. As paisagens, os sons, as fragrâncias — não, na totalidade, o povo — de sua Irlanda natal evocavam saudades no Lewis de idade mais avançada, exatamente como essas coisas de modo sutil, mas forte, moldaram sua prosa descritiva. Numa carta de 1915, Lewis carinhosamente evoca suas recordações de Belfast: “o distante murmurar dos ‘estaleiros’, a grande extensão de Belfast Lough [Lago de Belfast], Cave Hill Mountain [Montanha da Caverna] e os pequenos vales, prados e colinas em volta da cidade”. 14 No entanto, a Irlanda de Lewis era muito mais do que suas “suaves colinas”. Sua cultura era marcada por uma paixão em contar histórias, evidenciada em sua mitologia bem como nas narrativas históricas e em seu amor pela língua. Mas Lewis nunca transformou suas raízes irlandesas numfetiche. Elas simplesmente faziam parte de quem ele era, sem serem sua característica definidora. Até mesmo no final da década de 1950, Lewis se referia regularmente à Irlanda como sua “terra natal”, chamando-a de “meu país”, e até optou por passar lá sua tardia lua-de-mel com Joy Davidman emabril de 1958. Lewis havia inalado o ar suave e úmido de sua terra natal, e nunca se esqueceu de sua beleza natural.
Poucos dos que conhecem o condado de Down deixam de notar os originais irlandeses que veladamente inspiraram algumas das paisagens literárias de Lewis, elaboradas com tanta graça. Sua descrição do céu em O grande abismo como uma terra “verde-esmeralda” evoca sua terra natal, exatamente como os monumentos tumulares de Legananny no condado de Down, Cave Hill Mountain e Giant’s Causeway de Belfast parecem todos ter seus equivalentes em Nárnia — talvez mais suaves e mais brilhantes do que os originais, mas ainda assim mostrando algo de sua influência. Lewis referiu-se com frequência à Irlanda como fonte de inspiração literária, observando a maneira de suas paisagens estimularem poderosamente a imaginação. Ele não gostava da política irlandesa e tendia a imaginar uma Irlanda pastoril formada apenas por suaves colinas, névoas, lagos e florestas. A província de Ulster, confidenciou ele certa vez em seu diário, “é muito bonita, e se eu simplesmente pudesse deportar os ulsterianos e encher aquela região com uma população de minha escolha, não pediria um lugar melhor para morar.” 15 (Sob certos aspectos, Nárnia pode ser vista como um Ulster utópico e idealizado, povoado por criaturas imaginadas por Lewis, em vez de ulsterianos.) O termo Ulster precisa ser mais explicado. Assim como o condado inglês de Yorkshire foi dividido em três partes (chamadas de “ridings”, termo derivado do verbete nórdico antigo thrithjungr, “um terço”), a ilha da Irlanda foi, em sua origem, dividida em cinco regiões (em gaélico, cúigí, derivado de cóiced, “um quinto”). Depois da conquista dos normandos em 1066, as cinco regiões foram reduzidas para quatro: Connaught, Leinster, Munster e Ulster. O termo província passou então a ser preferido ao gaélico cúige. A minoria protestante da Irlanda concentrava-se no norte na província do Ulster, que era composta de nove condados. Quando a Irlanda foi dividida, seis dos novos condados formaram a nova entidade política denominada Irlanda do Norte. Hoje em dia o termo Ulster é empregado muitas vezes como sinônimo de Irlanda do Norte, e o termo ulsteriano tende a ser usado — embora não consistentemente — para designar “um habitante protestante da Irlanda do Norte”. Isso acontece apesar do fato de o termo original para referir-se ao Ulster (cúige) também incluir os condados de Cavan, Donegal e Monagham, hoje parte da República da Irlanda. Lewis passou praticamente todas as férias de sua vida na Irlanda, exceto quando impedido pela guerra ou doença. Visitava invariavelmente os condados de Antrim, Derry, Down (seu preferido) e Donegal — todos situados na província original do Ulster. Em certo momento de sua vida, Lewis cogitou alugar permanentemente uma casa de campo em Cloghy, no condado de Down, 16 como base de suas caminhadas de férias anuais, que muitas vezes incluíam extenuantes passeios nas Montanhas do Mourne. (No fim, ele concluiu que suas finanças não cobririam esse luxo.) Embora Lewis trabalhasse na Inglaterra, seu coração estava firmemente fixado nos condados irlandeses do norte, especialmente o condado de Down. Como ele mesmo observou certa vez, dirigindo-se a seu aluno David Bleakley: “O céu é Oxford elevado e colocado no meio do condado de Down”.
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