A menina passava nos galhos o essencial de suas horas de lazer. Quando não sabiam onde encontrá-la, iam até as árvores, primeiro até a grande faia que dominava o alpendre norte e onde ela gostava de sonhar observando o movimento na granja, depois até a velha tília do jardim do padre, ao lado da muretinha de pedras, e finalmente, e em geral era no inverno, até os carvalhos do vale oeste do campo vizinho, uma ondulação do terreno plantada com três espécimes como não havia mais bonitos naquela terra. A menina se escondia nas árvores todo o tempo que conseguia roubar de uma vida de aldeia feita de estudo, refeições e missas, e de vez em quando convidava uns amiguinhos que se deslumbravam com as esplanadas leves que ela abrira ali em cima e onde passavam dias maravilhosos conversando e rindo. Uma noite em que estava num galho baixo do carvalho do meio, quando a várzea se enchia de sombra e ela sabia que iam buscá-la para voltar para a casa quentinha, resolveu cortar pelo pasto e ir cumprimentar os carneiros do vizinho. Partiu pela bruma nascente. Conhecia cada torrão de mato numperímetro que ia dos contrafortes da granja de seu pai até as fronteiras da granja do Marcelot; poderia fechar os olhos e localizar, como se localizam estrelas, os calombos nos campos, juncos no riacho, pedras nos caminhos e declives suaves; mas em vez disso, e por um motivo especial, arregalou os olhos. A poucos centímetros, alguém andava pela bruma, e essa presença provocava em seu coração um estranho aperto, como se o órgão se dobrasse sobre si mesmo, levando-lhe curiosas imagens — e viu um cavalo branco numa vegetação rasteira avermelhada e um caminho pavimentado de pedras pretas que brilhavam sob as folhagens altas. É preciso dizer que criança ela era no dia desse acontecimento extraordinário. Os seis adultos que viviam na fazenda — o pai, a mãe, as duas tias-avós e duas primas mais velhas — a adoravam. Havia nela um encantamento que não parecia aquele das crianças que viveram primeiras horas clementes, essa espécie de graça nascida da boa mistura da ignorância e da felicidade, não, era mais um halo irisado que se via quando ela se mexia e que os espíritos forjados nos pastos e bosques comparavamcom as vibrações das grandes árvores. Além dela, só a tia mais velha, devido a um poderoso pendor pelo que não tem explicação, pensava que a menina tinha algo mágico, mas o que se dava por certo é que ela se movia de um jeito inabitual para uma criança tão pequena, levando consigo um pouco da invisibilidade e do tremor do ar, como fazem as libélulas ou as folhinhas ao vento. No mais, era muito morena e muito viva, um pouco magra mas com muita elegância; os olhos eram como duas obsidianas faiscantes; a pele fosca, quase cor de bistre; uma vermelhidão em círculo, no alto das maçãs do rosto um pouco eslavas; por fim, lábios muito bem delineados, e da cor de sangue fresco. Um esplendor. E que temperamento! Sempre correndo pelos campos, jogando-se na relva e olhando para o céu grande demais, cruzando de pés descalços o riacho, mesmo no inverno, pelo frescor ou pela ardência, e narrando para todos, com a seriedade de um bispo, as façanhas grandes e pequenas de seus dias ao ar livre. Some-se a isso uma ligeira tristeza, comum às almas cuja inteligência transborda a percepção e que, pelos indícios visíveis em todo canto, mesmo nos lugares protegidos, embora muito pobres, onde ela cresceu, já pressentem as tragédias do mundo. Assim, foi essa jovem plantinha ardente e secreta que sentiu perto de si, na bruma das cinco horas, a presença de um ser invisível que ela sabia, com mais certeza que a do padre pregando que Deus existia, ser ao mesmo tempo amigável e sobrenatural. Portanto, não sentiu medo. Ao contrário, bifurcou na direção dele, que andava na rota que ela decidira antes, a dos carneiros. Alguma coisa pegou sua mão. Era como se tivessem enrolado numa palma larga uma meada macia e morna que formava uma pinça suave na qual sua própria mão se afogava, mas nenhum homempoderia ter esse aperto de mão, com cheios e vazios que ela sentia através do novelo sedoso, como se fosse a pata de um javali gigante. Nesse instante, eles dobraram à esquerda, quase em ângulo reto, e ela entendeu que se dirigiam para o pequeno bosque que contornava os carneiros e a granja do Marcelot. Havia ali um terreno baldio com um belo matagal cerrado e úmido que subia por uma ladeira suave e depois ia dar na colina por uma passagem em zigue-zague, até cair num lindo bosque de álamos cheio de morangos e pervincas formando um tapete: era onde, não fazia muito tempo, cada família tinha direito de cortar lenha na mata quando caíam as primeiras neves; infelizmente, agora esse tempo passou, mas hoje não se falará dele, por tristeza ou por esquecimento, e porque nessas alturas a menina corre ao encontro de seu destino mantendo bem apertada a pata de javali gigante. Essa noite se passou no outono, que, fazia muito tempo, não se conhecia tão clemente. Tinham atrasado a hora de pôr as maçãs e peras para enrugar nas esteiras de madeira do porão, e o dia inteiro choviam insetos inebriados pela grande colheita do pomar. Além disso, havia no ar como que um langor, um suspiro indolente, uma certeza inerte de que as coisas jamais terminariam, e se os homens trabalhassem como de costume, sem descanso e sem se queixar, desfrutariam secretamente desse interminável outono que lhes dizia para não se esquecerem de amar.
Ora, eis que a menina se dirige para a clareira do bosque do leste e que se produz outro acontecimento inesperado. Começa a nevar. Começa a nevar para valer, e não com esses floquinhos tímidos que ficam felpudos no ar cinzento e mal parecem pousar no chão, não, começa a nevar flocos densos, grandes como brotos de magnólia e que se ajudam mutuamente para formar uma cortina bemopaca. Na aldeia, lá pelas seis da tarde todos foram surpreendidos; o pai, que rachava sua lenha vestindo uma simples camisa de cotim, o Marcelot, que desentorpecia a matilha lá para os lados do laguinho, a Jeannette, que sovava seu pão, e outros mais que, naquele fim de outono, sonhando com a felicidade perdida, vagavam, iam e vinham no couro, na farinha e na palha; sim, todos se impressionaram, e agora fechavam os trincos das portas dos estábulos, entravam com os carneiros e os cachorros e se preparavam para o que faz quase tão bem quanto as belas lassidões do outono: para o primeiro serão ao pé da lareira, quando lá fora neva como o diabo. Preparavam-se e pensavam. Pensavam, no caso dos que se lembravam, num fim de dia de outono, dez anos antes, em que a neve caíra de repente como se o céu se esboroasse de vez em lasquinhas imaculadas. E, singularmente, pensavam nisso na granja da menina, onde acabavam de descobrir que ela não estava em casa e onde o pai enfiara o boné de pele e um casaco de caça que fedia a naftalina a cem metros. — Que eles não venham nos tomá-la de novo — ele murmurou antes de desaparecer na noite. Bateu às portas das casas da aldeia onde se encontravam outros granjeiros, o mestre correeiro e o seleiro, o prefeito (que também era o chefe dos cantoneiros), o guarda-florestal e mais uns outros. Por todo lado só teve uma frase para dizer: está faltando a pequerrucha, antes de sair de novo para a porta seguinte, e atrás dele outro homem vituperava, com seu casaco de caça ou seu paletó dos frios intensos, se equipava e se enfiava na tempestade, rumo à próxima casa. Foi assim que eles chegarama quinze na casa do Marcelot, cuja mulher já preparara uma fritada de toucinho e uma jarra de vinho quente. Deram cabo de tudo aquilo em dez minutos entrecortados de instruções de batalha não tão diferentes das que acompanhavam as manhãs de caça, a não ser o fato de que o trajeto dos javalis não tinha mistério mas a menina, essa sim, era mais imprevisível que um duende. Simplesmente, o pai, como todos os outros, tinha um palpite, pois ninguém acredita em coincidências naquelas paragens onde o bom Deus e a lenda formam uma boa dupla e onde se desconfia que eles tenham truques que o homem das cidades há muito esqueceu. Aqui na nossa terra, saibam vocês, só raramente a gente apela à razão para ajudar os náufragos, pois em geral contam o olho, o pé, a intuição e a perseverança, e era o que eles faziam naquela noite, porque se lembravam de uma noite parecida, exatos dez anos antes, em que subiram a passagem da montanha indo à procura de alguém cujos vestígios levavamdireto à clareira do bosque do leste. Ora, o que o pai mais temia era que, quando chegassem lá emcima, os rapazes apenas conseguissem arregalar os olhos, se benzer e sacudir a cabeça, exatamente como haviam feito quando os vestígios desapareceram abruptamente no meio do círculo e eles se viram contemplando uma neve lisa como pele de recém-nascido e um lugar virgem e mudo onde ninguém, todos os caçadores seriam capazes de jurar, tinha passado nos últimos dois dias. Vamos deixá-los subir, no meio do vento glacial da tempestade de neve. A menina, por sua vez, chegou à clareira. Neva. Ela não sente frio. Quem a levou ali fala com ela. É um grande e belo cavalo branco com pelo fumegante na noite que espalha uma bruma clara emtodas as direções do mundo — para o oeste, onde o Morvan fica azulado, para o leste, onde se fez a colheita sem um pingo de chuva, para o norte, onde se estende a planície, e para o sul, onde os homens estão penando na montanha, com neve até o meio das coxas e um coração fatiado de angústia. Sim, um grande e belo cavalo branco com braços e pernas, e esporões também, e que não é nem umcavalo, nem um homem, nem um javali, mas uma síntese dos três, embora sem partes unidas — a cabeça do cavalo se torna, por instantes, a de um homem, ao mesmo tempo que o corpo se alonga e se enfeita com cascos que se retraem como patas de um pequeno porco selvagem e depois crescem até se tornar as de um javali, e isso continua indefinidamente, e a menina assiste, concentrada, a essa dança das essências que se convocam e se misturam traçando o passo do saber e da fé. Ele fala comela, baixinho, e a bruma se transforma. Então, ela vê. Não entende o que ele diz mas vê uma noite de neve como aquela, na mesma aldeia onde fica sua granja, e na soleira da porta há uma forma branca pousada sobre o branco da neve.
E essa forma é ela. Não há uma alma que não se lembre disso toda vez que cruza com essa menina vibrante como umpintinho, de uma vida pura que a gente sente palpitar até nos ombros e no coração. Foi a tia Angèle que, na hora de ir recolher as galinhas, encontrara a pobrezinha que olhava para ela com seu rostinho cor de âmbar devorado por olhos pretos tão visivelmente humanos que ela ficou ali, com o pé no ar, antes de se recuperar e gritar uma criança na noite! e, depois, apertá-la contra si para entrar com a menina que fora poupada dos flocos, embora continuasse a nevar tremendamente. Um pouco mais tarde, naquela noite, a tia declararia: foi que nem eu acreditar que o bom Deus estava falando comigo, e depois se calaria com a sensação embaralhada de que era impossível expressar o transtorno das curvas do mundo que passara pela descoberta da recém-nascida em seus cueiros brancos, ou a fissão deslumbrante das possibilidades em caminhos desconhecidos que rugiam na noite de neve, enquanto se retraíam e se contraíam os espaços e os tempos — mas pelo menos ela sentira isso, e entregava ao bom Deus o cuidado de entender. Uma hora depois de Angèle descobrir a menina, a granja estava cheia de aldeãos que deliberavam, e o campo, de homens que iam atrás de um vestígio. Seguiam a pista dos passos solitários que partiam da granja e subiam para o bosque do leste, mal e mal pisoteando uma neve em que, porém, se afundavam até o quadril. O que se seguiu é conhecido: chegando à clareira, pararam a perseguição e voltaram para a aldeia, carregados de um espírito um tanto sombrio. — Tomara que — disse o pai. Ninguém disse mais nada, mas todos pensaram na desafortunada que, talvez; e se benzeram. A menina observava tudo aquilo do fundo de cueiros de cambraia fina, com rendas de uma confecção desconhecida naquela terra, e na qual havia bordadas uma cruz que aqueceu o coração das vovozinhas e duas palavras numa língua desconhecida, que as assustaram muito. Duas palavras nas quais se concentrou a atenção de todos, em vão, até que chegasse o Jeannot, funcionário dos correios que, pelas circunstâncias da guerra, aquela de que vinte e um homens da aldeia não haviamretornado, e pela qual havia um monumento defronte da prefeitura e da igreja, fora outrora até muito longe no território que chamavam de Europa — e que não tinha outra localização, no espírito dos salvadores, senão a das manchas rosa, azuis, verdes e vermelhas do mapa da sala da prefeitura, pois o que é a Europa quando fronteiras rígidas separam aldeias que só se cruzam com outras a três léguas? Ora, o Jeannot, que acabava de chegar todo coberto de flocos e a quem a mãe tinha servido umcafé com um copázio de pinga, olhou para a inscrição bordada com linha de algodão acetinado e disse: — Santo Deus, é espanhol. — Tem certeza? — perguntou o pai. O rapagão balançou vigorosamente um nariz todo embrumado de aguardente. — E quer dizer o quê? — perguntou também o pai. — Sei lá! — respondeu o Jeannot, que não falava estrangeiro. Todos balançaram a cabeça e digeriram a notícia com a ajuda de mais uma dose de pinga. Então era uma menina que vinha das Espanhas? Essa não. Enquanto isso, as mulheres, que não bebiam, tinham ido buscar a Lucette, que acabava de sair do parto e no momento dava seu leite a dois pequenotes aninhados contra dois seios tão brancos como a neve lá fora, e todos olhavam sem um pingo de malícia para aqueles dois seios belos como pães de açúcar e que a gente tinha vontade de chupar, igualzinho, sentindo que uma espécie de paz se fazia no mundo porque havia ali dois bebês pendurados em tetas nutrizes. Depois de ter mamado bastante, a menina deu um lindo arrotinho, redondo como uma bola e tão sonoro como um campanário, e todos caíram na risada e se deram fraternalmente tapinhas no ombro. Relaxaram, a Lucette ajeitou seu corpete e as mulheres serviram patê de lebre sobre grossas fatias de pão torradas na banha de ganso, porque sabiam que era este o pecado do senhor padre e tinham em mente manter a senhorita numa casa cristã. Aliás, aquilo não causou os problemas que causaria em outro lugar se uma menina hispânica fosse dar as caras assim, na soleira da porta de um fulano qualquer. — Pois é — disse o pai —, tenho cá por mim que a menina está se sentindo em casa — e olhou para a mãe, que lhe sorriu, e olhou para cada um dos convivas cujo olhar saciado se detinha nos recémnascidos instalados sobre um cobertor ao lado da grande estufa, e olhou enfim para o senhor padre que, aureolado de patê de lebre e banha de ganso, se levantou e se aproximou da estufa. Todos se levantaram. Não repetiremos aqui uma bênção de padre do interior; todo aquele latim, quando na verdade gostaríamos muito de saber um pouco de espanhol, nos deixaria muito atrapalhados. Mas se levantaram, o padre benzeu a menina e todos souberam que a noite de neve era uma noite de graças.
Lembravam-se do relato de um antepassado que lhes falara de uma geada de morrer de pavor, tanto quanto de frio, quando estavam na última campanha, aquela que os tornaria vitoriosos e condenados para sempre à lembrança de seus mortos — a última campanha, quando as colunas avançavam numcrepúsculo lunar no qual esse antepassado já não sabia se os caminhos de sua infância tinham algumdia existido, e aquela avelaneira da curva, e os enxames do dia de são João, não, ele já não sabia nada, e todos os homens como ele, pois fazia tanto frio por lá, tanto frio… não é possível imaginar o que foi aquele destino. Mas na aurora, depois de uma noite de desgraça em que o frio derrubava os bravos que o inimigo não conseguira matar, começara de repente a nevar, e aquela neve… aquela neve era a redenção do mundo, pois já não gelaria sobre as divisões e breve todos sentiriam na fronte a tepidez insigne e milagrosa dos flocos de um tempo mais clemente. A menina não sentia frio, tampouco os soldados da última campanha ou os homens que tinham chegado à clareira e, quietos como cães à espreita, contemplavam a cena. Mais tarde, não se lembrarão claramente daquilo que veem tão nitidamente em pleno dia, e a todas as perguntas responderão no tom vago de quem busca dentro de si uma lembrança embaralhada. Quase o tempo todo dirão apenas: — Tinha a pequerrucha no meio de um vento desgraçado de tempestade de neve mas ela estava viva e bem quentinha, e conversava com um bicho que depois foi embora. — Que bicho? — perguntarão as mulheres. — Ah, um bicho — responderão. E como estão na terra onde o bom Deus e a lenda etc., se limitarão a essa resposta e apenas continuarão a vigiar a criança como o próprio Santo Sepulcro. Era um bicho singularmente humano, como todos sentiam ao observar ondas tão visíveis como a matéria rodopiarem em torno da menina, e era um espetáculo desconhecido que provocava umcurioso arrepio, como se de repente a vida se abrisse ao meio e fosse possível enfim olhar lá dentro. Mas o que se vê dentro da vida? Veem-se árvores, bosque, neve, uma ponte talvez, e paisagens que passam sem que o olho consiga detê-las. Veem-se a labuta e a brisa, as estações do ano e as fainas, e todos veem um quadro que só pertence a seu coração, uma correia de couro dentro de uma lata de folha de flandres, um pedacinho de campo onde há legiões de espinheiros, o rosto enrugado da mulher amada e o sorriso da menina que conta uma história de rãs-das-moitas. Depois, não veemmais nada. Os homens se lembrarão de que o mundo tornou a cair abruptamente a seus pés numa deflagração que deixou todos eles vacilantes — em seguida, viram que a clareira estava limpa de brumas, que ali nevava a ponto de a gente se afogar e que a menina permanecia sozinha no meio do círculo onde não havia outros vestígios além dos seus. Então todos tornaram a descer até a granja onde instalaram a criança diante de uma tigela de leite escaldante e onde os homens se livraram às pressas de suas espingardas, porque havia um ensopado de boletos com patê de cabeça de porco e dez garrafas de vinho de reserva. Eis a história da menina que segurava bem apertada uma pata de javali gigante. Na verdade, ninguém saberia explicar totalmente seu significado. Mas é preciso dizer mais uma coisa, quais eramas duas palavras que estavam bordadas no avesso da cambraia branca, num belo espanhol semcomplemento nem lógica, e que a menina aprenderá quando já tiver abandonado a aldeia e desencadeado as manobras do destino — e antes disso também é preciso dizer outra coisa: todo homem tem o direito de conhecer o segredo de seu nascimento. É assim que se reza em nossas igrejas e em nossos bosques e alguém vai correr o mundo porque nasceu na noite de neve e herdou duas palavras que vêm das Espanhas. Mantendré siempre. * * Mantereisempre. [Esta e as demais notas são da autora.] A menina das Itálias Os que não sabem ler nas entrelinhas da existência lembrarão apenas que a menina crescera numa aldeia perdida dos Abruzos, entre um padre do interior e sua velha criada analfabeta. A residência do padre Centi era uma construção alta que tinha, mais abaixo dos porões, um pomar de ameixeiras onde se pendurava a roupa nas horas frescas para que secasse por muito tempo ao vento das montanhas. Ficava à meia altura do vilarejo que subia íngreme para o céu, de modo que as ruas se retorciam em torno da colina como os fios de um novelo apertado onde se tivessem colocado uma igreja, um albergue e o necessário em pedras para abrigar sessenta almas.
Depois de ter corrido o dia todo lá fora, Clara nunca voltava para casa sem atravessar o pomar, onde pedia aos espíritos do recinto que a preparassem para o retorno ao lar, entre as paredes da casa. Depois, ia até a cozinha, uma sala comprida e baixa, acrescida de uma despensa que tinha cheiro de ameixa, de velha compoteira e de poeira nobre dos porões. Ali, da aurora ao pôr do sol, a velha criada contava suas histórias. Para o padre, dissera que quemas transmitira fora sua avó, mas para Clara, que os espíritos do Sasso as haviam soprado durante seu sono, e a menina sabia como era verídica essa confidência por ter ouvido os relatos de Paolo, que os recolhia pessoalmente junto aos gênios das pastagens de alta montanha. Mas ela só apreciava as imagens e os truques da contadora pelo veludo e pelo canto de sua voz, pois aquela mulher rude, que apenas duas palavras salvavam do analfabetismo — só sabia escrever o seu nome e o de sua aldeia, e na missa não lia as orações mas as recitava de cor —, tinha uma dicção que contrastava com a modéstia daquela paróquia recuada nos contrafortes do Sasso, e na verdade convém imaginar o que eram os Abruzos da época, na parte montanhosa onde viviam os protetores de Clara: oito meses de neve entrecortados de tempestades sobre os maciços apertados entre dois mares, onde não raro se viam alguns flocos durante o verão. E com tudo isso uma verdadeira pobreza, a dessas regiões onde não se faz outra coisa senão cultivar a terra e criar rebanhos que são levados na primavera até o ponto mais alto das vertentes. Pouca gente, portanto, e menos ainda sob a neve, quando todos foramacompanhar os animais sob o sol da Puglia. Ficam na aldeia camponeses resistentes à lavoura, que cultivam essas lentilhas escuras que só crescem em solo pobre, e mulheres valorosas que, no frio, tomam conta das crianças, das devoções e das granjas. Mas se vento e neve esculpem as pessoas dessas terras em forma de arestas de rocha dura, elas também são moldadas pela poesia de suas paisagens, que faz os pastores comporem rimas nos nevoeiros gélidos das pastagens montanhosas e produz as tempestades em lugarejos suspensos à tela do céu. Assim, a velha senhora, cuja vida se passara entre os muros de uma aldeia atrasada, possuía na voz uma seda que lhe vinha dos faustos de suas paisagens. A menina tinha certeza disso: era o timbre daquela voz que a despertara para o mundo, embora lhe garantissem que, na época, ela não passava de um bebê faminto no degrau mais alto da escadaria da igreja. Mas Clara não duvidava de sua fé. Havia um grande vazio de sensações, uma ausência debruada de brancura e de vento; e havia a cascata melodiosa que transpassava o nada e que ela encontrava toda manhã quando a velha criada lhe desejava bom-dia. Na verdade, a menina aprendera italiano na velocidade do milagre, mas o que deixava em seu rastro um perfume de prodígio, Paolo, o pastor, compreendera de outra maneira, e numa noite de serão, bem baixinho, lhe sussurrara: é a música, hein, menina, é a música que você ouve? Ao que, levantando para ele seus olhos tão azuis como as torrentes da geleira, ela respondera com um olhar no qual cantavam os anjos do mistério. E a vida corria sobre as ladeiras do Sasso coma lentidão e a intensidade das paragens onde tudo exige sofrimento e, da mesma maneira, se arrasta na calma, no curso desse sonho que se foi e em que os homens conheceram entrelaçadas a languidez e a aspereza do mundo. Trabalhava-se muito, rezava-se muito também, e protegia-se uma menina que falava como se canta e sabia conversar com os espíritos dos rochedos e das várzeas. Num fim de tarde de junho bateram à porta da casa da paróquia e dois homens entraram na cozinha enxugando a testa. Um deles era o irmão caçula do padre, o outro, o carroceiro que conduzira desde Aquila o grande reboque de dois cavalos onde se via uma forma maciça aparelhada de cobertores e correias. Clara seguira com os olhos o comboio que avançava pela estrada do norte; era depois do almoço, e ela estava no morro acima da aldeia, de onde se podia abarcar a visão dos dois vales, e também, em dia claro, Pescara e o mar. Quando o comboio estava prestes a alcançar a última subida, ela desabalara pelas ladeiras e chegara à casa paroquial com o rosto iluminado de amor. Os dois homens deixaram a carroça defronte ao pórtico da igreja e galgaram até o jardim das ameixeiras onde todos se beijaram e tomaram um copo do vinho branco fresco e doce que se servia nos dias quentes, e ao qual se tinham acrescentado algumas vitualhas reconstituintes — e depois, adiando a ceia, enxugaram a boca com o pano de suas mangas e foram para a igreja, onde esperava o padre Centi. Foi preciso o reforço de mais dois homens para instalar na nave a grande forma e empreender a soltura de seus laços, enquanto a aldeia começava a se espalhar entre os bancos da igrejinha e sentia-se no ar uma doçura que coincidia com a chegada desse legado inesperado vindo da cidade. Mas Clara se afastara, imóvel e muda, para a sombra de uma coluna. Essa hora era sua hora, como ela sabia pelo que sentira no momento em que descobrira o ponto movente na estrada do norte, e se a velha criada percebera em seu rosto uma exaltação de noiva, era porque ela se sentia no limiar de núpcias familiares e estranhas. Quando a última correia foi solta e se conseguiu enfim ver o objeto, houve um murmúrio de satisfação seguido de uma salva de palmas, pois era um belo piano, preto e tão brilhante como um seixo, e quase sem arranhões embora já muito tivesse viajado e vivido.
Eis a sua história. O padre Centi vinha de uma família abastada de Aquila cuja descendência se estiolava pois ele se ordenara padre, dois irmãos seus tinham morrido precocemente e o terceiro, Alessandro, que expiava na casa da tia os abusos de uma vida romana dissoluta, jamais se decidira a se casar. O pai dos dois irmãos morrera antes da guerra, deixando para a viúva um inesperado contingente de dívidas e uma casa luxuosa demais para a mulher pobre que ela se tornara em um só dia. Quando os credores terminaram de bater à sua porta, depois de vender todos os bens ela se retirou para o mesmo convento onde morreria alguns anos mais tarde, antes que Clara chegasse à aldeia. Ora, no momento de trocar a vida secular pela reclusão definitiva no convento, ela mandara entregar na casa da irmã, uma solteirona que vivia perto das muralhas, o único vestígio de sua glória passada, que ela conservara apesar dos abutres, e lhe pedira que cuidasse dele, para os netos que lhe viriam talvez nesta terra. Não vou conhecê-los mas eles o receberão de mim, e agora me vou, e lhe desejo boa vida, retranscrevera fielmente a tia em seu testamento, legando o piano, no dia em que morresse, àquele de seus sobrinhos que tivesse descendência, e acrescentando: faça como ela desejava. E foi o que o tabelião, que ouvira falar da chegada de uma órfã à paróquia, pensou realizar ao pedir a Alessandro que escoltasse a herança até a residência de seu irmão. Como o piano ficara no sótão durante a guerra, sem que ninguém pensasse em descê-lo novamente de lá, o mesmo tabelião avisou por carta que seria preciso afiná-lo quando ele chegasse, ao que o padre respondeu que o afinador que fazia uma vez por ano a ronda dos burgos da vizinhança fora convocado para um desvio pela aldeia nos primeiros dias do verão.
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