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A vida louca da MPB – Ismael Caneppele

Das formas mais diversas e por diferentes motivos, a heterogênea constelação da MPB, comestrelas (e alguns cometas) que vão dos anos 1930 aos 2000, teve vida louca. Vidas muito loucas e, quase sempre, abreviadas por mortes precoces. Personagens reais, que agora se encontram neste livro principalmente pelas carreiras brilhantes, atuações e obras que inspiramtantas outras vidas. Em meio ao turbilhão de emoções, pressões, turbinados/detonados por drogas (legais e ilícitas), enfrentando preconceitos, amando e sofrendo muito, quebrando barreiras, esses dezessete artistas viveram intensamente, fundaram escolas, revolucionaram estilos, encantarammultidões e continuam sendo referência para qualquer um interessado na diversificada música popular brasileira. São histórias, muitas com mais de uma versão na cada vez maior bibliografia musical brasileira, recontadas a partir de uma perspectiva distanciada, sem dourar as pílulas ou esconder os vexames. Podem mudar as estações, as modas e as tecnologias, mas a essência complexa do ser humano continua a mesma, como mostra nesta obra o jovem escritor (e, tudo embaralhado, ator, roteirista, músico) Ismael Caneppele. Gaúcho cosmopolita, no início do século XXI, entrando em seus vinte anos, trocou a Lajeado natal por uma vaga numa peça que Gerald Thomas montava em São Paulo. Uma década e meia depois, novamente baseado no Rio Grande do Sul após temporadas em São Paulo e Berlim, ele roda o mundo, fisicamente e/ou através da carreira. Entre outros feitos, publicou quatro livros de ficção, textos em blogs e colunas na grande imprensa e foi roteirista (além de um dos protagonistas) do longa-metragem Os famosos e os duendes da morte (lançado em 2009, vencedor de dez prêmios no Brasil e no mundo, dirigido por Esmir Filho). Desafiado a perfilar esses vidas-loucas, Ismael tanto mergulhou na história de algumas personalidades que fizeram a trilha de sua adolescência e juventude – contemporâneos como Cássia Eller, Renato Russo, Cazuza e Itamar Assumpção – quanto foi atrás de gente da qual tinha menos referências, algumas vagas ou caricatas. Da hollywoodiana Carmen Miranda ao playboy assexuado carioca Mario Reis, passando pela antitética soturna e iluminada Maysa, pelo múltiplo e contraditório Vinicius de Moraes, pelo sambista protopunk Noel Rosa, pelo sambista-blues Nelson Cavaquinho, pelo fenomenal cantor e lamentável aliado da ditadura militar Wilson Simonal… O retrato desses artistas, segundo Ismael, não cai na apologia da loucura pela loucura, sequer investe na condenação. Para o caso da droga, por exemplo, vale o ditado popular de que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Seja legal ou ilegal, o segredo é saber usar. Tim Maia foi um que, definitivamente, nunca soube. Mas esse exemplo ruim até para usuários, irresponsável, doidão sem limites, sempre exagerando na dose e que poderia ter virado número nos índices de deliquência juvenil antes de começar a criar tão intensa e musicalmente, não é maior do que o artista. Estamos falando dele porque brilhou como o primeiro brasileiro a fundir samba e baião com o soul e o funk dos negros norte-americanos. De Racionais MCs a Criolo ou Emicida, não há quem esteja fora de seu raio de influência. Como Cazuza no pop brasileiro, que de mais uma dose de tudo, claro, sempre esteve a fim, até que seu trajeto cada vez mais ousado na arte e na vida foi podado pela aids. Aos 32 anos, o autodenominado Exagerado foi uma das vítimas da “tuberculose do fim do século XX”, numa possível conexão com Noel, que, nos anos 1930, ainda sem a penicilina, teve sua “peste cinzenta” potencializada pelo cotidiano de orgias. No entanto, muito além desse paralelo natural e mórbido, Noel e Cazuza devem ser reverenciados como agudos cronistas de suas realidades, levando a poesia das ruas para as canções. Noel emburacou em noitadas regadas a muito álcool, alguma cocaína (que até ser proibida no Brasil em 1921 era vendida como remédio) e muito samba. Ou melhor, foi um dos inventores do samba urbano carioca, feito que, em outra quebra de paradigmas, ocorreu graças ao estreito convívio com artistas afro-brasileiros como Cartola e Ismael Silva. Algo impensável para um jovem da classe média branca no Rio de Janeiro daqueles tempos. Como estamos cansados de saber, a combinação de tuberculose e compromisso zero com uma vida regrada transformaram o Poeta da Vila no precoce (aos 26) precursor do Clube dos 27 – que reúne os roqueiros mortos nessa idade, numa lista que inclui Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, JimMorrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse. Sob a ótica da política de guerra às drogas (cada vez mais contestada no mundo contemporâneo), Cazuza, Tim Maia, Renato Russo, Júlio Barroso e Raul Seixas estariam entre as típicas vítimas do tráfico.


Mas, para todos eles, o abuso do legalizado álcool teve papel tão ou mais nocivo. Já a partir do Poetinha, que, imerso no uísque e similares, muito viveu, amou e criou: “O melhor amigo do homem, o cachorro engarrafado”, segundo a máxima de Vinicius, também fez muitos estragos. Limpa, e careta até para o álcool nos primeiros anos de sucesso, Carmen Miranda é umexemplo de como a medicina usada sem critérios pode ser letal. Já nos Estados Unidos, no auge do estrelato, quando se tornou a artista mais bem-paga do mundo, a fim de suportar o volume de trabalho a Pequena Notável passou a viver movida a drogas legais. Era remédio para dormir, acordar, emagrecer ou ter apetite, prender ou soltar o intestino, numa rotina macabra que antecipou em décadas a similar dependência e degeneração física que abreviou a vida louca de Elvis Presley e Michael Jackson. Por sinal, Carmen foi o primeiro caso de “impersonator” na cultura pop, fenômeno que depois prosseguiu com os mesmos The Pelvis (em sua fase final e mais caricata) e Jacko. Como Ismael escreve, revolucionária em muitos aspectos de sua carreira, atropelando preconceitos raciais e sexuais, Carmen continua viva em sua obra ou na pele de milhares de drag queens ao redor do mundo. No campo do comportamento, outras três mulheres escaladas neste livro romperam muitos tabus. Dondoca destinada a viver sufocada no luxo de um casamento infeliz, a adolescente Maysa chutou o balde (e o sobrenome pseudo-aristocrático) para se firmar como a fabulosa intérprete imortalizada em disco. E ainda, quebrando um hiato de décadas, despontar como uma das grandes compositoras populares do Brasil. Mesmo tendo Chiquinha Gonzaga como pioneira – “Ô abre alas”, lançada em 1899, literalmente abriu caminho para as marchinhas carnavalescas –, só nos anos 1950, com o surgimento de Maysa, a canção popular brasileira ganhou nova compositora de sucesso e relevância. Para aguentar o tranco e se adequar aos padrões do star system, entornou quantidades industriais de droga legal, ingeriu infinitas pílulas nos 50 tons de tarjas pretas, abusou de remédios de emagrecimento e cirurgias. Outra vítima de uma sociedade pra lá de machista, Dalva de Oliveira rompeu com o marido infiel (e parceiro nos palcos e estúdios) para cair na boca do povo. Roupa suja lavada empúblico através de muitas canções feitas sob medida para ela e contestadas pelas do ex, Herivelto Martins, antecipando para o bem e para o mal nossa época de reality shows. Escândalo e arte caminhando juntos, regados a porres e ressacas sem fim. Mesmo vivendo numa sociedade bem mais aberta, na qual pôde assumir sem véus a homossexualidade, Cássia Eller também não segurou a barra. Em dezembro de 2001, apesar do sucesso comercial e artístico, o coração frágil de nascença parou de bater, em parte devido a tantos abusos químicos e pressões emocionais. Mas seu exemplo de vida e arte só cresce desde então. A vitória de sua companheira, Eugênia, na disputa pela guarda definitiva do filho natural de Cássia com o avô materno do garoto criou jurisprudência para casos similares. Chicão foi criado pela mãe afetiva, reforçando os anseios de tantos casais homossexuais. Drogas legais ou ilegais não foram o maior problema na vida de Itamar Assumpção. Ele sofreu mais com preconceito racial, que, cotidianamente, destrói o mito do homem cordial brasileiro, e com a rejeição do mercado à sua revolucionária música. Uma arte que, como acontece nesses casos, desde sua morte por câncer em 2003, não para de ser admirada. Talvez, como Ismael relata, a maior loucura do Nego Dito tenha sido a última década de vida, cercado da mulher e das filhas numa casa na periferia de São Paulo onde, além da música, cultivava inocentes e belas orquídeas. Vale destacar ainda o foco que Ismael dá para personagens que tiveram sucesso restrito na vida, mas foram influências decisivas para seus contemporâneos e continuam sendo redescobertos pelas novas gerações.

Cometas que deixaram rastros luminosos. Entre eles, Sérgio Sampaio, o capixaba que botou seu bloco em todo o Brasil, e o carioca planetário Júlio Barroso, que se perdeu de sua Gang 90 na selva de Sampa. Mas chega de spoilers. É hora de mergulhar nessas vidas loucas e apaixonantes! Antônio Carlos Miguel, crítico musical, jornalista e poeta. APRESENTAÇÃO Entre muitos comentários e olhares sobre a música popular brasileira, poucos atentamespecificamente à loucura de suas histórias. Nesse contexto, a trajetória das adições é convenientemente apagada, ou naturalmente esquecida. Temas focados no desenvolvimento específico dos vícios são raríssimos, por mais que, em vida, porres, escândalos e quedas tenham rendido farto material para a construção de mitos. A ousadia de se debruçar sobre o lado escuro da vida na música brasileira partiu de Nelson Motta. Foi ele quem, preciso como Juliet Taylor, elencou essas dezessete figuras, misturando medalhões e malditos, todos gênios, para traçar um panorama etílico da música popular brasileira moderna. Nunca mortos em vida, mas todos ainda vivos depois de mortos. A zombie walk da MPB. Dezessete figuras que não contemplaram qualquer barreira entre a música e o vício, que mergulharam de cabeça na vida e perpetuaram um testemunho tatuado em cifras que ainda não desapareceram de nossos ouvidos, mesmo depois de mortos. Mergulhei nessas vidas por meio de consultas a biografias, teses acadêmicas, revistas de fofoca, programas de rádio, histórias de ouvido, notas de jornais, vídeos no YouTube, e por aí vai. Investiguei um ponto de repetição. Uma mesma nota na polifonia dessas vozes. Haverá umlugar – ou um devir – onde todas essas vidas loucas se encontram? Além de geniais, são todos etílicos. Todos bebendo o último copo, talvez já sabendo que o último copo será sempre o próximo. Nessas vidas loucas, permanece a fuga arquitetada a partir da bombástica combinação entre bebida e talento. Apesar da quantidade de pó, heroínas pontuais e caixas e mais caixas de comprimidos, o que persevera neles é o fascínio pelo álcool. Todos fizeram questão de escolher o mais traiçoeiro dos cavalos. Impossível dizer quem venceu a batalha, se o homem ou o bicho. Mas quem mais saiu ganhando foi, sem dúvida, a música. E nossos ouvidos. Gênios, fixaram novos paradigmas na cultura brasileira. Todos inventaram um novo jeito de cantar: o seu.

Mergulhar nessas vivências é acompanhar o processo de luz, sempre com uma atenção especial às sombras. Escrever este livro foi catalogar, a partir de uma farta produção já realizada, a hora em que a luz se apaga, o microfone é desligado e DO NOT DISTURB é colocado na porta. Mais do que a dor, fica a delícia dessas dezessete vidas, dessas dezessete obras fundamentais para se entender e pensar o Brasil a partir da sua música e dor. Meu agradecimento especial vai ao amigo Antônio Carlos Miguel, que teve a ousadia de me colocar nesse lugar e a generosidade de acompanhar a escrita. Se Vinicius estava mesmo certo quando disse que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, encontrar Antônio Carlos e, através dele, Maria João Costa e Martha Ribas, foi a confirmação da frase do poeta. Aos leitores, que leiam sem moderação. Mais de cem anos após seu nascimento, em 1909, essa falsa baiana continua viva no imaginário popular. Em algum lugar do mundo, exatamente agora, deve haver uma bicha velha ou um little monster imitando Carmen Miranda em frente ao espelho. Ícone da cultura pop, sua persona abriu caminho para Elvis Presley, Michael Jackson, Madonna e, obviamente, Lady Gaga. Todos são suas crias. Primeira referência musical brasileira a rodar o planeta, Carmen foi também um ícone fashion. Praticamente inventou o salto plataforma, e além de popularizar o uso dos turbantes e da maquiagem pesada entre as recatadas it girls norte-americanas. Tornouse um meme muito antes de o termo existir. Quase uma drag queen, o visual que ela mesma criou, e muitas vezes costurou, a transformou em um valioso produto de exportação. Mas essa figura caricata e ao mesmo tempo genuína sempre dividiu os brasileiros, que até hoje vivem uma relação de amor e ódio com sua maior estrela. Carmen pode ser encarada tanto como um símbolo de afirmação e liberação da mulher quanto de submissão. Apesar de jamais ter esboçado qualquer opinião política, foi usada como instrumento de propaganda pelo Estado Novo e pela Política da Boa Vizinhança. Assim como Elvis e Michael, a pop star passou os últimos anos de vida dependente das anfetaminas para manter o pique, e dos soníferos para conseguir apagar. Morreu intoxicada. Todos os dias, sete dias por semana, Carmen trabalhava e também se drogava. Com supervisão médica, foi vítima da emergente indústria farmacêutica. Pouco a pouco, a criatura sufoca a criadora. A fantasia brejeira e sacana de baiana estilizada se torna uma prisão estética. Filme após filme, show após show, repete ad nauseam as mesmas piadas. Apesar de perfeitamente inserida na sociedade norte-americana, diante das câmeras persiste a personagem da imigrante recém-chegada, deslumbrada com o mundo novo, mas incapaz de falar inglês.

Os anos avançam, e ela insiste no mesmo. Figurinos, gestual, maquiagem. Nada muda. Ainda assim, ou talvez por isso, o mito sobrevive. * * * Portuguesa de nascença, Maria do Carmo Miranda da Cunha chega ao Rio de Janeiro comapenas um ano, em 1910. A mãe, abandonada pelo marido que partiu para a América em busca de uma vida melhor, pega as duas filhas pequenas, Carmen e Olinda, e embarca rumo ao Brasil. Disposta a reunir a família, retoma o casamento e dá luz a nada menos do que seis crianças. O pai, seu José Maria, precisa se virar trabalhando como barbeiro. Dona Maria Emília, constantemente grávida, lava roupas para a vizinhança da Lapa. Em 1925, no centro do Rio, o enorme casarão onde a família mora se transforma durante o dia em um restaurante que serve refeições para os trabalhadores da região. Carmen tem 16 anos, atende as mesas e ajuda na cozinha. Quer fazer sucesso, mas ainda não sabe como. Logo cedo, seguindo os passos da irmã mais velha, começa a trabalhar em um ateliê de costura e toma contato com o maravilhoso mundo das linhas, tecidos e bordados. É um universo do qual jamais se afastará, desenhando e, muitas vezes, costurando os próprios figurinos. Depois, troca o ateliê pelo emprego de balconista na luxuosa loja A Principal, voltada ao comércio de artigos finos para cavalheiros endinheirados. Nessa época, a Fox do Brasil anuncia um concurso para eleger uma atriz e um ator brasileiros que ganharão contrato com Hollywood. Carmen, aos 18 anos, se inscreve, mas é desclassificada logo na primeira eliminatória. Seu rosto não tem o perfil roliço procurado pelos produtores. Também tenta uma vaga no filme Barro humano, dos cineastas Adhemar Gonzaga e Paulo Benedetti, novamente sem sucesso. Relatos da época contam sobre uma moça habituada às grossas camadas de maquiagem para esconder as espinhas. A jovem e obstinada Carmen Miranda consegue um teste com o respeitado compositor Josué de Barros. Munida de audácia, canta para o próprio autor a música “Chora violão”, e Josué fica deslumbrado com a pequena. O sambista conquista o pai de Carmen e obtém o aval para ser seu tutor artístico. A partir de então, quase todas as manhãs, no porão do restaurante, Carmen e Josué ensaiarão exaustivamente. Depois, se sentarão à mesa com o patriarca, com quemalmoçarão e discutirão os planos artísticos.

A parceria dá samba. Carmen logo fecha contrato com a recém-chegada gravadora alemã Brunswick, pela qual grava duas canções de Josué, “Não vá simbora” e “Se o samba é moda”. O disco de 78 rotações acaba não saindo, e o tutor bate à porta da RCA Victor. Com ajuda de Pixinguinha, funcionário da gravadora, Carmen Miranda emplaca um novo contrato, assinado pelo pai, já que ela ainda não completou 21 anos. Na divulgação, omitem sua nacionalidade portuguesa para evitar comparações com as cantoras de fado. Em janeiro de 1930, a RCA lança seu primeiro disco e, ainda naquele mês, Carmen retorna aos estúdios, gravando duas canções para o Carnaval. Entre elas, seu primeiro grande sucesso popular, “Taí”, de Joubert de Carvalho. Nas ruas do Rio, todos cantam a marchinha, que toca à exaustão nas rádios do Brasil. Pelo feito, a pequena recebe a enorme quantia de catorze contos de réis. O ano de 1930 será fechado com chave de ouro. Com mais de 28 músicas gravadas na RCA em apenas um ano de carreira, já recebe, ao lado do consagrado cantor Francisco Alves, o maior cachê do país. Carmen Miranda é um fenômeno. Não consegue dar conta dos pedidos de apresentações, fotos, reportagens e eventos. Quando perguntada sobre sua origem, decide não manter a mentira inventada pela gravadora e revela ser portuguesa. A declaração em nada abala a reputação da personalidade mais amada do Brasil.

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