Frankie foi o primeiro a saber. Frankie foi o primeiro a saber a maior parte das coisas — mas, como ele não falava desde os seus oito anos, não importava o que ele sabia. Não contaria a ninguém. Não que os outros fossem mesmo ouvir. Sentou-se à mesa de jantar, beliscando as batatas e a carne assada, quando um som ecoou na vasta extensão da campina. Uma única nota aguda, como um sino. O restante da família jantou, limpou a boca e deixou a mesa. Eles não perceberam o som. Frankie repousou a mão esquerda sobre o emaranhado de cicatrizes que tomava conta da metade de seu rosto. Ninguém sabia quem ou o que fora responsável por elas, ou o que acontecera com ele quando fora levado aos oito anos de idade e voltara marcado e mudo, dois meses depois. Frankie não iria, não poderia contar. Depois de todos aqueles anos, as cicatrizes permaneciam em alto-relevo, inflamadas e muito, muito vermelhas. As crianças na cidade chamavam-no de Cicatriz ou de Aberração. Sua mãe dizia que seu rosto parecia um campo de rosas. O que ela não sabia era que as cicatrizes guardavam lembranças. Elas sabiam coisas. Está chegando, diziam elas. Está voltando, sussurravam. Não, pensou Frankie, balançando a cabeça. Isso não. Ele. Ele está chegando. Nós sabíamos que ele voltaria. Naquela noite, a irmã gêmea de Frankie, Wendy, acordou de um sonho com sinos. Sentou-se, ofegante, na cama, os olhos arregalados.
A noite estava silenciosa, exceto pelo canto precoce dos grilos se aquecendo para o coro do verão no quintal dos fundos. Mas ela sentiu um odor. Algo adocicado e estranho que não sentia desde que ela e o irmão tinham oito anos de idade — o ano em que Frankie desaparecera e retornara. — Que cheiro é esse? — perguntou à mãe durante o café da manhã. — Bacon — respondeu ela, entregando-lhe o prato. — Não, não é esse. O outro. Adocicado. — Bacon é adocicado — disse sua mãe, em um tom de voz cansado, enquanto derramava o café puro e fumegante em uma xícara azul lascada e o bebia em dois goles rápidos. Ela estremeceu. —Coma o seu bacon — disse. — Eu gostaria que você fosse pontual ao menos no seu último dia de aula. Talvez a gente consiga convencer seus professores a aumentarem as expectativas deles em relação a você para o próximo ano. Sem chance, Wendy queria dizer, mas ficou calada. Sua mãe pegou um saco pesado de ração de cachorro e levou-o para o quintal, fazendo com que os três cães, muito grandes, muito barulhentos e muito, muito bobalhões salivassem de alegria. — Ah… — disse Wendy, de boca cheia. — Bacon não é adocicado. — Mas sua mãe já havia saído do cômodo e não a escutou. Já vestido, de banho tomado, penteado e pronto para sair, Frankie desceu calmamente a escada. Típico, pensou Wendy, dando um gole em seu suco de laranja. Ele se sentou ao lado da irmã e pegou a mão dela. — Frankie — Wendy começou a falar, embora soubesse que ele não responderia —, você está sentindo esse…? — Frankie levantou a mão da irmã até o seu rosto, repousando-a sobre a bochecha deformada. — Frankie, é sério, eu não quero tocar as suas cicatrizes, eu… — Ela perdeu o fôlego. As cicatrizes queimavam e zuniam sob seus dedos. Frankie olhou para a irmã, os olhos calmos e sem piscar.
Manteve a mão dela em seu rosto. — Oh! — exclamou Wendy, sentindo seu estômago se contrair. Virando-se para a janela que dava para o oeste, sentiu os joelhos começarem a tremer. — Oh, não. Fora da cidade, Anders, o melhor amigo de Wendy, sentiu algo que não conseguiria explicar de imediato. Ele passara a maior parte da manhã com quatro de seus irmãos mais velhos, recostado na lateral ensolarada do celeiro cinza, enquanto seu pai e seu irmão mais velho, Lars, carregavam o trator e o caminhão. Os garotos da família Nilsson haviam entregado bilhetes aos seus professores dizendo que precisariam estar no campo e que se ausentariam na última semana de aula. Agricultura, graças a Deus, nunca fizera parte da grade escolar, e os meninos foram dispensados dos livros e colocados para trabalhar. Menos Anders. Já que tinha apenas treze anos, ele estava um ano abaixo do permitido para trabalhar. No próximo ano, dissera o pai. — Seja um bom garoto, irmãozinho — zombaram os irmãos, de dentro do caminhão. — Estude bastante. — Eles riam enquanto partiam. Anders os observava à medida que seguiam pela estrada esburacada, as rodas traseiras do caminhão formando uma cortina de poeira. Por um momento, suas cabeças louras cintilaram em meio à nuvem marrom de terra, até que restou somente a nuvem, e Anders ficou sozinho. O que seus irmãos e o pai não sabiam era que Anders não tinha a menor intenção de ir à escola. Quando o caminhão desapareceu, ele se virou para o campo aberto e para a floresta ao longe, e tirou os sapatos. O solo estava fresco, bem assentado e úmido, ainda que o dia estivesse quente e provavelmente esquentasse ainda mais. Anders começou a andar, sem saber aonde iria. Sabia que seus pés o levariam a algum lugar interessante. Era sempre assim. No sexto passo, porém, sentiu algo diferente. Uma sensação de agitação no gramado. No sétimo, ela se intensificou.
Por volta do trigésimo passo, o solo parecia formigar sob seus dedos como uma corrente elétrica. Ele já havia sentido aquilo antes. Fazia muito tempo. — Então — disse em voz alta. As abelhas zumbiam, o chão zumbia, até seus ossos e sua pele zumbiam e zumbiam. — Então está voltando. Agora. Certo? — Aguardou, como se alguém fosse se importar em responder: o milho crescendo, a floresta emaranhada, o enorme e límpido céu. Ninguémrespondeu. De qualquer forma, ele estava certo de que a resposta era afirmativa. Tirou o boné verde de cima dos cabelos louros e esfregou a borda esfarrapada entre o pescoço e o couro cabeludo. O vento soprou ao longo dos campos, que mais pareciam uma colcha de retalhos rodeando as vastas e planas propriedades até onde pareciam tocar o horizonte. A brisa cheirava a terra revolvida, sementes secas e fertilizantes. Também cheirava a algo mais. Um odor adocicado e, ao mesmo tempo, ruim, como veneno de rato misturado com balas. Anders voltou correndo e pegou seus sapatos. Então, escola, decidiu. Só mais um dia. E mais. Tinha de falar com Wendy. Capítulo 2 Mais Alguém Percebeu Clayton Avery, um garoto de treze anos, alto e musculoso, morava na melhor casa da cidade. Todos a conheciam. Ficava em uma pequena colina no Centro, com o gracioso campus da escola, à esquerda, e o longo e estreito parque, que se estendia até a prefeitura, à direita. Tinha janelas com vitrais, uma enorme porta de carvalho e um ornamento dourado que delineava toda a borda do telhado. A casa, a prefeitura, a escola e todos os demais edifícios importantes da cidade tinham sido construídos havia muito tempo pelo tataravô de Clayton.
Desde então, cada sr. Avery subsequente fora rico, poderoso e estivera no comando absoluto. Ser o filho do sr. Avery, o homem mais importante da cidade, significava muito para Clayton. E ele fazia questão de que todos soubessem disso. Na casa dos Avery, havia um cômodo conhecido como Quarto Reservado. Ninguém além do pai de Clayton tinha permissão para entrar lá: nem Clayton, nem sua mãe, nem os parentes que vinhamvisitá-los. Ninguém. E ainda assim, algumas vezes, quando Clayton passava pelo corredor, acreditava ouvir uma voz do outro lado da velha porta de carvalho. Uma voz baixa, como se estivesse sussurrando, tão leve quanto uma semente de dente-de-leão. E, outras vezes, ainda mais baixo, seu pai sussurrar emresposta. Clayton passou a maior parte daquela manhã e o início da tarde tentando ganhar coragem para chegar perto da porta. Nunca havia perturbado o pai. Bateu à porta. O sr. Avery surgiu, escancarando-a. Inspirou fundo, e a pele flácida ao redor de seus lábios finos e do queixo pontiagudo se retraiu, como se estivesse sugando o próprio rosto narinas adentro. — O que é. — Ele não perguntou. Ele disse. O sr. Avery nunca fazia perguntas. Clayton sabia que isso significava estar no comando. — Pai, tem algo errado com o meu ouvido — disse o menino. A orelha de Clayton estava vermelha de tanto que a esfregara e coçara com os nós dos dedos.
— Você me interrompeu por causa do ouvido — vociferou o pai. — Fale com a sua mãe. — Eu falei. Ela disse que não tem nada de errado com o meu ouvido e que estou inventando. — Bem. Vá para o seu quarto, então. — Mas eu não estou inventando. Acho que tem um inseto dentro do meu ouvido, ou algo do gênero. Coça muito e parece estar se contorcendo, e eu não consigo fazer voltar ao normal. Eu posso sentir. Fica fazendo um barulho esquisito sem parar. Como… sinos ou coisa assim. O pai ergueu as sobrancelhas. Se Clayton estivesse mais atento, talvez houvesse notado que as pálidas dobras da pele de seu pai tinham ficado ainda mais pálidas. — Isso está me enlouquecendo, pai — disse o menino, olhando com desespero para o homem, agarrando a orelha direita e puxando-a com força. — Isso começou hoje — disse calmamente o sr. Avery, como se estivesse se referindo a algo óbvio. — De manhã — respondeu Clayton, aliviado pelo fato de o pai não estar bravo com ele. — Mas está piorando ao longo dia. — Interessante — concluiu o sr. Avery, levando os dedos aos lábios. Se Clayton percebeu o leve tremor nas grandes e retorcidas mãos do pai ou nos lábios dele, não o mencionou. — Vá para o seu quarto. — Mas… — começou a falar o menino. — Agora! — gritou o pai.
Clayton fugiu correndo, como se tivesse se queimado. O sr. Avery esperou o filho desaparecer do corredor. Quando o ambiente ficou silencioso, fechou a porta do Quarto Reservado e se apoiou contra ela. Normalmente, a vista do quarto, com sua aura de opulência — as poltronas de veludo, a mesa de mogno e os cálices de cristal importados da Sibéria —, o teria acalmado. Mas não dessa vez. Ele precisaria de informação, pesquisa, relatórios. Provavelmente, de alguns espiões também. Não se permitiria cometer um erro. Não outra vez. Também precisaria de magia. De muita. Capítulo 3 Iowa Jack sentou-se no banco de trás de um carro alugado, com seu bloco de rascunho aberto sobre os joelhos, desenhando sinos. Sua mãe não falara com ele nas últimas quatro horas; não que isso fizesse alguma diferença. O que havia para se dizer, afinal? Ele já tinha discutido e chorado e ponderado, mas o resultado fora o mesmo: seus pais, após anos de briga, finalmente tinham se separado. Jack teria de passar o verão inteiro em Iowa, com parentes que não conhecia. Não dava para acreditar. Jack observava as plantações ondulando e crescendo, como um oceano verde estendendo-se da estrada até a linha do horizonte. Uma mancha escura surgiu bem no fim da longa e retilínea estrada. Ele apertou os olhos, tentando enxergar melhor. Havia algo familiar naquilo, pensou, enquanto a mancha ia ganhando lentamente a forma de uma colina, embora, mesmo tentando ao máximo, não conseguisse lembrar onde — ou se — já tinha visto aquele lugar. * * * Jack fechou o bloco de rascunho com força e enrolou-o bem apertado com um elástico, antes de deslizá-lo para dentro da mochila. Por um momento, sua mão tocou a superfície áspera do skate escondido no fundo. Se a mãe soubesse, jamais o deixaria ficar com ele. E mais, tinha sido umpresente de seu irmão mais velho — um presente inesperado, aliás —, a única coisa que teria a mínima chance de tornar suportável a sua estadia em Iowa, e não abriria mão dele.
Pelo menos, não sem uma briga. Fechou a mochila e olhou para fora. — É para lá que estamos indo? — perguntou ele, apontando para o alto da colina, mas a mãe estava ao telefone com o chefe e não o ouviu. Jack decidiu não se aborrecer. Que novidade, pensou. Ela raramente prestava atenção nele. Ou lhe dava ouvidos. Ou até o via, na maior parte do tempo. A mesma coisa com seu pai. Não que Jack culpasse algum deles. Afinal de contas, ambos eram muito ocupados. A mãe comandava o departamento de comunicação do prefeito de São Francisco, e o pai era arquiteto — um famoso arquiteto, Jack gostava de dizer, embora ninguém escutasse ou desse a mínima. Na maioria das vezes, sentia muito orgulho dos pais. Ser invisível não era tão ruim assim. Às vezes, a invisibilidade tinha seu lado positivo, mas Jack não conseguia evitar a sensação de que, desde o anúncio do divórcio, estava ficando mais invisível do que o normal. Ou de que o mundo ao seu redor tinha mudado o suficiente a ponto de sentir que não fazia mais parte dele. Tinha medo de que pudesse desaparecer completamente dos pensamentos dos pais. E, embora essa preocupação o perturbasse, tentava não lhe dar importância. Por que se preocupar com algo que não tinha como mudar? Além do mais, o carro estava diminuindo a velocidade, e ele não precisava de uma resposta. A cidade surgia por trás do emaranhado de árvores retorcidas em uma pequena elevação do terreno — a única colina em quilômetros, pelo menos que Jack tivesse notado. Havia uma placa de madeira na beira da estrada, levemente inclinada para a esquerda. BEM-VINDO A HAZELWOOD, dizia, em grandes letras pretas, embora a tinta estivesse desbotada e lascada em alguns pontos, revelando a madeira cinzenta sob o que parecia pequenas mordidas. — Alô? — disse a mãe de Jack, falando mais alto ao telefone. — Alô? Não consigo ouvi-lo, senhor. — Não tem sinal aqui, mãe? — indagou o menino.
— Não tem sinal aqui — repetiu sua mãe, balançando o telefone no ar como se desse para pegar o sinal como se pegam borboletas. Recompôs-se, então, já que o filho ficara calado. — Não foi exatamente isso o que eu acabei…? — E sempre no meio de algo importante — reclamou ela, desligando o telefone e suspirando. —Típico. Estava claro que sua mãe não queria conversa; então, Jack se virou para a janela, examinando a cidade sem sinal de celular. O lugar era limpo e silencioso. Totalmente silencioso. Nenhum carro passava, nenhum ônibus roncava, pessoas não se empurravam na rua. Nem ao menos havia cachorros latindo. Em vez disso, um quarteirão quieto, o gramado dos quintais perfeitamente aparado, onde cada placa verde de grama se encaixava como uma luva na seguinte, com uma fina borda de gerânios ou cascalho no meio. Impecáveis casas brancas enfileiravam-se umas ao lado das outras, com portões e jardins bemcuidados e, às vezes, um balanço. Embora Jack gostasse das coisas limpas e ordenadas e previsíveis, a mesmice da cidade o deixava nervoso. Era como se cada casa quisesse desesperadamente ser corde-rosa ou laranja ou verde-limão, mas não pudesse. Não seja idiota, disse para si mesmo. Casas não têm vontade própria. As únicas pessoas que viu foram três crianças — uma menina e dois meninos — paradas na esquina, em frente a um terreno baldio tomado de mato, na metade do caminho para a cidade. Três bicicletas estavam jogadas de qualquer jeito ao lado delas, como se tivessem acabado de ser largadas, pois as rodas da frente ainda giravam e giravam, bem devagar. As crianças observavam a estrada, seus ombros colados uns nos outros e as cabeças virando juntas ao olharem o carro alugado passar. Jack pressionou a testa no vidro da janela e juntou as mãos em forma de concha ao redor dos olhos, tentando ver o rosto delas, mas estavam encobertos por uma sombra e um pouco distantes. Não importava, disse a si mesmo, como elas eram — ou até se havia crianças na cidade. Ele não tinha mesmo amigos no lugar de onde viera, então não esperava fazer nenhum em Iowa. Mas a casa no fim da estrada… bem, aquela era diferente. Mais do que diferente. Ela se anunciava. Grandes flores brilhantes e plantas altas, emaranhadas, crescendo selvagens no jardim da frente, com a casa ao fundo, imponente, os beirais cintilando no calor.
Por favor, não me diga que estamos indo para aquela casa, pensou Jack, desesperado. Arrepiouse de preocupação, e os pelos de seus braços se eriçaram. Achou que fosse vomitar, mas não sabia o motivo. O carro freou, e eles estacionaram em frente à casa. Sua mãe abriu a porta, com um suspiro enferrujado. Pressionou os lábios e cruzou os braços. — Não era assim que ela deveria ser — disse ela, balançando a cabeça. — Essa casa está toda errada. Capítulo 4 A Casa Errada Era uma antiga casa de fazenda, de madeira, com uma varanda ampla, janelas largas e uma vigia na parte superior do telhado. E era roxa. De um tom tão escuro e intenso que até parecia vibrar. Jack apertou os olhos. A porta de entrada era verde-limão, e a moldura de cada janela, pintada de uma cor diferente: vermelho, amarelo, laranja e azul. — Deveria ser branca — disse a mãe de Jack, protegendo os olhos com as mãos. —Impecavelmente branca. Jack olhou para a casa. Tentou imaginá-la branca, mas as cores brilhantes se impunham, mesmo na sua imaginação. — Talvez — disse ele — só queira… Sua mãe o interrompeu: — Meu pai se reviraria no túmulo se visse isso. — Por acaso você está ouvindo… — começou Jack, mas ela tornou a interrompê-lo: — E lá vêm eles — disse ela, sem olhar para o filho. A porta de tela se abriu e duas figuras saíram da casa. — Que surpresa! — exclamou o homem. Ele pressionou o peito com a mão e apoiou-se na balaustrada em busca de equilíbrio. — Clive — disse a mãe de Jack para o cunhado, com um rude e firme aceno de cabeça. — Mabel. Que bom… — Clairzinha! — disse a mulher, descendo os degraus na direção da mãe de Jack, envolvendo-a em um abraço.
Clair se retesou. A mãe de Jack não costumava abraçar as pessoas, mas a tia de Jack parecia não saber disso. O menino imaginou o que mais ela não sabia sobre a irmã. Provavelmente muita coisa, pensou. Tia Mabel beijou as bochechas de Clair. Assim como a mãe de Jack, ela era alta e magra, e tinha os mesmos olhos acinzentados com um brilho azulado. Mas, em vez de um tailleur bem-passado, Mabel vestia um jeans levemente surrado. Sandálias substituíam os sapatos caros, revelando as unhas dos pés pintadas de verde cintilante. E, mesmo sabendo que sua tia tinha quinze anos a mais do que sua mãe, Jack ficou surpreso em ver cabelos tão grisalhos — não exatamente grisalhos, mas prateados. Eles ondulavam e reluziam sob a luz. — Mas o que você está fazendo aqui? — perguntou Mabel, olhando para a irmã e o sobrinho. O queixo de Jack caiu. O que ela quer dizer com o que estamos fazendo aqui? Mabel virou-se para o marido. — Clive — disse com voz trêmula e olhou para a casa —, não estamos prontos — sussurrou. — Eu… — começou a mãe de Jack, mas parou. Ela fitou as próprias mãos e franziu o cenho emsinal de confusão. Era uma mulher incisiva, determinada. Nunca se confundia. Jack mordeu o lábio inferior. — Eu tenho certeza de que telefonei — disse ela. — Não, querida, você não telefonou. — Nós nos divorciamos. David e eu. O processo será concluído no fim do mês. Eu pensei que… bem, ele… — Clair apontou para o filho, com um semblante calmo e sonhador.
Ela apertou os olhos e estalou os dedos algumas vezes, como se tentasse lembrar-se de algo. Jack levou a mão ao peito. — Jack? — disse ele, encorajando-a. — Certo — confirmou ela, levando as mãos ao rosto e franzindo as sobrancelhas. — Jack. Honestamente, não sei onde eu tenho andado com a cabeça esses dias. — Clair sorriu e olhou para a irmã, com a expressão de que tudo estava sob controle, como sempre. Jack relaxou. — Ele precisa de um lugar para ficar. Por enquanto. Os tios trocaram olhares que Jack não conseguia entender. — Certo — respondeu Clive, passando a mão sobre a bochecha enrugada e alisando o queixo. —As coisas precisam se acertar. O pobre menino tem sido deixado de lado. Acontece. — Piscou para Jack e deu um sorriso, misto de bondade e tristeza. Jack tentou sorrir de volta, mas pareceu mais uma careta. — Ele precisa pertencer a algum lugar, certo? — completou o tio. — Claro que ele pode morar conosco — disse Mabel. Jack estava imaginando coisas ou o lábio inferior de sua tia de fato tremia? — Por enquanto — esclareceu sua mãe, olhando para o chão, em vez de olhar para o filho. Finalmente, Mabel limpou a garganta, andou até o sobrinho e deu-lhe um abraço. — Querido, é tão maravilhoso tê-lo de volta! — exclamou, apertando-o com força e pressionando sua bochecha contra a dele. Jack não conseguia se lembrar de ninguém que o tivesse abraçado daquela maneira antes. — Mas eu nunca… — começou ele, mas a tia o ignorou. Certamente, ela sabia que era a primeira vez que ele ia a Iowa.
Mabel apertou o ombro de Jack e, pegando a irmã pelo braço, levou-a para dentro da casa. O menino ficou para trás com seu tio Clive, um homem baixo e esquelético, com o rosto enrugado e umligeiro sorriso forçado. — Bem — disse Clive. — Que surpresa. — Mas… — respondeu Jack, sentindo-se levemente enjoado. — Meu pai disse que tinham falado com vocês. — É claro, é claro. Pais dizem todo tipo de coisas — concordou Clive, apoiando-se sobre os calcanhares como se estivesse pensando. — Eu imagino — disse ele devagar, mudando de assunto — que as damas estejam esperando que os cavalheiros carreguem as bagagens. — Ele balançou os dedos perto do rosto, mexeu os pulsos, e as chaves apareceram. Elas balançavam e tilintavam como sinos. — Vamos? — Como você…? — perguntou Jack. — Eu levo jeito com as coisas brilhantes — explicou o tio. — É de família. Apesar da baixa estatura, dos braços finos como gravetos e das costas estreitas, Clive ergueu a enorme e pesada mala do sobrinho, colocando-a no ombro, quase ultrapassando Jack ao subir a escada. Era como se tivesse molas nas pernas em vez de ossos. Isso, somado ao leve sotaque —britânico talvez, embora Jack não pudesse afirmar —, fazia com que ele lembrasse um elfo. Jack pegou sua mochila e seguiu o tio em direção à varanda da frente, apoiando-se no corrimão. Ao tocá-lo, parecia morno, e a temperatura aumentou até ficar muito quente. — O que… — balbuciou Jack, mas, antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, um choque intenso e doloroso percorreu todo o seu corpo, como se não tivesse tocado um corrimão de madeira, e, sim, um fio com corrente elétrica. — Ai! — gritou. — Algum problema? — perguntou Clive, parado na entrada, segurando com o pé a porta de tela aberta. Por um momento, a porta, a parede e o restante da casa pareciam tremular como uma bandeira ao vento. No entanto, antes que Jack pudesse mencionar ou mesmo pensar no que acontecera, a casa voltou ao normal, sólida e imóvel. Com certeza, tinha sido a sua imaginação.
Com certeza absoluta, pensou. — Não, quer dizer, não foi nada — disse rapidamente, esfregando a palma da mão no quadril e subindo os degraus com cautela. — É que eu… ai! — exclamou ao tocar a porta de tela e retrair a mão como se algo o tivesse queimado. Mas não exatamente queimado. Fora outro choque; Jack não conseguia explicar. — Está tudo bem — murmurou, passando pelo tio ao entrar na casa, com os ouvidos zunindo e tentando não tocar em mais nada. — Então, vou colocar essas coisas no quarto de hóspedes — disse Clive, com a voz abafada por causa da mala.
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