Casamentos podem ser efêmeros, mas separações são eternas. Todavia, casais não se preparam para o desenlace. Aliás, nem para o casamento. Tantos não dão certo! Talvez a preparação seja inútil. Diz-se que o casamento é cogitação que, hoje, só surge depois que o amor se entranhou. Nos dois cônjuges. Num pelo outro. Mas o senso comum diz que não se prepara, e nunca se está preparado, para o amor. Ele surge espontaneamente. Às vezes, atropela o bom senso e a lógica, e surpreende todos, inclusive os amigos, que não intuíam aquela química entre eles. É a famosa química, ciência oculta e experimental, que se pode aprender, mas não se sabe ensinar. A química inescrutável cria a energia e o frescor do bom relacionamento. Desejado e festejado, o bom relacionamento é essencial, dizem casais experientes. Para alguns, é até mais importante que o próprio amor. Para esses, havendo um bom relacionamento, pode-se viver com alguém que não se ama. O que é impossível quando o convívio é ruim, mesmo amando muito. No casamento é que se descobre que o paraíso pode ser vizinho do inferno. Enfim, não nos preparamos para o amor, nem para o casamento ou a separação. Mas não é de se estranhar. Tampouco estávamos preparados para a vida ao nascer. A prova é o vagido inaugural do bebê, assustado de ter de iniciar a vida num mundo desconhecido, após o terno aconchego de um útero suave, quente e aquoso. Daí em diante, tudo é surpreendente, inesperado e imprevisível. Inútil tentar se preparar. Instituiu-se que amar se aprende amando. Correndo-se o risco de dar certo ou não.
O que o poeta já advertia: “A paixão é uma flor que se colhe à beira do abismo.” Dois enamorados informam ao Estado que querem coabitar ao abrigo da lei, e passam a ser identificados como cônjuges. Se adiante o casal não alcança o relacionamento desejado, ou o amor acaba, instala-se a crise. Incapaz de resolvê-la com equidade, cogita a separação. E, súbito, entramem cena pessoas estranhas ao casal, e não preparadas para lidar com dificuldades afetivas: os advogados e o juiz. Com poder outorgado pelo Estado, os estranhos assumem a responsabilidade de decidir sobre o que deve ser feito para proteger eventuais filhos e assegurar que seja cumprida uma lei que o casal, em geral, desconhece. E o Estado, ao atender a solicitação, invade a intimidade do casal. A judicialização dos afetos é um vício de mão dupla. Este livro trata do momento em que o casal, ou um dos cônjuges, busca o apoio do Estado, na pessoa do juiz da Vara de Família, para se separar segundo as exigências da lei. O clima é de um sonho que virou pesadelo. As circunstâncias emocionais que envolvem o desenlace amoroso deixam o casal abalado, decepcionado, tenso e vulnerável. Com as fragilidades à flor da pele, encara o juiz, o estranho cuja personalidade, formação e sensibilidade orientam suas percepções e atitudes. O humanismo e a consciência social legitimam a sua liberdade para interpretar a lei. Como fiscal da execução da lei, o juiz pode focar-se nos atos de ofício: conduzir, com racionalidade, a anulação do contrato conjugal, nos termos legais, mantendo-se olimpicamente distante das emoções e limitações humanas, alheio aos condicionantes educacionais, culturais, sociais e econômicos do país. Mas não é o que faz a autora e juíza Andréa Pachá. A vida não é justa é uma seleção de separações judiciais, narradas pela autora, que é também a juíza incumbida de legalizar o rompimento dos casais. Ao dar forma literária ao que é o seu trabalho diário, Andréa Pachá revela-se uma profunda conhecedora da legislação, que não se resigna à sua mera aplicação. Metabolizou as frias letras da lei, que parecem circular nas suas veias com o pulsar da vida e das emoções. Em vez de operadora da lei, um ser humano atento, sensível e informado, que ausculta a percepção, a intenção e o desejo do casal, tentando entender o que pensam da vida e buscando aquilatar suas possibilidades e limites de viver o fim e superar sequelas. Não oculta dúvidas, discordâncias e inseguranças sem, contudo, perder a lucidez ou se afastar dos deveres e limites da sua função. Mas o peso da toga não pode dobrar a sensibilidade da pessoa. As crônicas da autora interessam a todo tipo de leitor. Ao que se comove com histórias de amor — tema imbatível na preferência humana desde a pré-história —, mesmo sem happy end, embora o fim de um amor enseje o início de outro. Ao que esfrega as mãos de curiosidade pelo que ocorre do outro lado dos sombrios portais do Judiciário: da intimidade conjugal aos motivos da separação, com infidelidades, ciúmes, raivas e brigas; da divisão dos bens à pensão alimentícia; da proteção dos filhos aos deveres dos pais. Ao que quer evitar atitudes e comportamentos que levem a um fim idêntico.
Ao que gosta das intensas emoções dos desenlaces. Ao que quer detalhes da última audiência: tensão, raiva, ciúme, paixão e ressentimento. E também a quem, com alívio e alegria, pode, enfim, livrar-se do inferno cotidiano. Embora escrito com leveza, às vezes com sutil ironia, mas sempre com compaixão, é possível que algum leitor sinta densidade na leitura pela sucessão de rompimentos. Mas vale lembrar que todos esses fins tiveram inícios felizes. Paixões e amores, correspondidos ou não, são o que de melhor e pior pode acontecer na nossa vida. Eis a verdade metafísica da qual não podemos escapar: a vida é ruim, mas é boa. Parte I Amores líquidos É assim no final? – Ésó isso? — Só isso sim, Aline. Se vocês quiserem esperar um pouco, podem aguardar no corredor para levar o documento de averbação do divórcio. Mas Aline não se levantava. André também parecia não ter pressa para deixar a sala. — Surpresa com a rapidez? — perguntei, tentando esvaziar o espaço para a pauta que começara há pouco. Ela não estava surpresa. Não conseguia encontrar a palavra que definisse o que sentia naquele instante. Na impossibilidade de sintetizar com um substantivo abstrato, precisava de longas orações coordenadas, subordinadas às lembranças que brotavam sem ordem cronológica compreensível. — É isso, então, o que acontece no final? — ela repetia, olhando para André, como se ele tivesse a resposta. Aline e André não tinham uma história dramática para contar. Nem sequer precisavam de um acerto de contas. Não se olhavam com ressentimento, tampouco deixavam transparecer que ainda nutriam alguma expectativa para retomar a vida a dois. Viveram juntos 22 anos. Conheceram-se do outro lado do oceano. Ela, em um curso de especialização, ele, de mochila nas costas, em uma viagem ferroviária sem rota ou destino. As coincidências e as afinidades eram a certeza de que um nasceu para viver ao lado do outro. Ele ancorou naquele porto seguro e decidiu esperar o fim do curso da moça. Não perderia o trem de volta ao seu lado.
Podia ser apenas mais um romance definitivo, daqueles que começam nas férias e terminam tão logo aterrissam na vida real. Mas não foi assim na história de Aline e André. Agora, ali na sala de audiências, Aline estava visivelmente abalada. Eu não queria deixá-la se expor, sem necessidade, naquele ambiente. Interrompi: — Aline, vocês já terminaram. Não preciso saber dos motivos da separação, nem acho legal você ficar revolvendo suas lembranças… Antes que eu concluísse a frase, ouvi a voz de André: — Lembra do sufoco, Aline, quando seu namorado apareceu lá, de surpresa? Comovidos e emocionados, os dois não só queriam, como precisavam contar a profunda experiência de amor que vivenciaram durante mais de duas décadas. Os filhos, o trabalho, as divergências familiares, as muitas viagens, os livros, os filmes. Em pouco tempo, montaram a colcha de retalhos costurada pela estrada. Choravam de mãos dadas. O casamento acabou. O amor, provavelmente, também. A tristeza com que experimentavam o luto se espalhava pela sala. Parecia desrespeitoso interrompê-los. Se o ritual do nascimento do amor fazia todo o sentido, o mesmo não se podia dizer do seu fim. Pode ser que os amores sejam todos iguais: começam com o coração aos pulos, migram para a banalidade do cotidiano, dispersam-se no tempo e, um dia, chegam ao fim. As exceções estão aí para confirmar a regra. No entanto, Aline, André e tantos outros que passaram por aquela sala acreditavam que, com eles, a história seria outra. O herói romântico tinha um destino trágico, como todos os heróis. Nas tragédias, o fim estava traçado. Não tinha jeito de mudar rota ou rumo, embora os heróis dediquem a vida a lutar contra o destino inexorável. No amor, contrariando todas as estatísticas, experiências, pesquisas científicas, cada casal tinha a pretensão de reverter o peso do cotidiano e aprisionar aquele estado inicial de encantamento e paixão na gaiola da eternidade. Quando não conseguiam, como qualquer herói, enfrentavam a tragédia do fim. Também no caso de Aline e André o distanciamento foi lento. O amor não acabou de uma hora para outra. Não houve um fato, um desencontro, uma falha de comunicação que pudessem ser apontados como a causa.
Aline e André não brigavam. O ninho vazio dos filhos que ficaram adultos e foram viver suas vidas era a explicação para o afastamento. Algumas vezes, percebiam o incômodo ou a insatisfação do outro, como naquela vez em que ele, chegando tarde de um jantar com os amigos, encontrou a mulher chorando na sala escura. Abraçaram-se, carinhosamente, para aplacar a sensação de abandono que não era verbalizada, mas experimentada, em silêncio, pelos dois. O amor nunca acaba de uma hora para outra. Vai gastando, lentamente, no tempo arbitrário da vida. Se o começo de tudo tinha uma história, uma hora, um roteiro e um ritual, se eram garantidos aos amantes uma festa, promessas, flores, música e todo um cenário para sacramentar a sorte e a coincidência do encontro, nada mais justo que o fim do amor também pudesse ser vivido com a cerimônia necessária. Não era o caso de uma celebração. Também não podia ser tão simples quanto duas assinaturas numa sala gelada de um tribunal e mais nada. Aline tinha razão. Vinte e dois anos de vida não podiam terminar em cinco minutos. Ouvi as histórias que quiseram contar. Não me preocupei com o atraso das demais audiências. Aline e André precisavam combinar a melhor maneira de ele retirar as suas coisas da casa. Ainda precisavam acertar a divisão das pequenas lembranças e dos objetos grávidos de significado. Nada disso era tratado no processo. Mas decidiram que a solução seria encontrada sob meu olhar. Não era culpa de ninguém. A frustração era dos dois. A tristeza do luto era de todos nós que assistimos à expressão concreta do fim de um ciclo. Não adiantava falar que eles tiveram uma vida linda. Não adiantava falar que era raro umrelacionamento acabar de mãos dadas. Não adiantava mostrar que o que plantaram no caminho era definitivo. Mesmo acostumada a observar e decidir dezenas de separações diárias, com o distanciamento profissional possível, eu me vi, naquele momento, envolvida pela tristeza profunda experimentada pelo casal. Não conseguia enxergar aquele destino como um fenômeno banal e cotidiano.
A individualização da dor, estampada nas faces de Aline e André, fazia com que eu compreendesse cada processo como uma tragédia única. Desejei boa sorte aos dois. Eles saíram de mãos dadas. Olhei para a cena como se estivesse observando um milagre da transformação do amor para outra de suas muitas formas. Acostumada com os finais felizes das obras de ficção, antevi a possibilidade da retomada daquela relação. Mas não era assim na vida real. Não era, também, o fim do mundo. A vida tem múltiplos caminhos e diversas possibilidades. O ritual do luto era necessário para seguir adiante. Casamento não é emprego Não era para ser uma audiência complicada. Consensualmente, dividiram o patrimônio, fixarampensão para a filha única e não havia outros problemas a serem solucionados. Tudo estava dentro do quadro previsível, exceto a reação de Patrícia, que, sob o protesto do advogado que representava o casal, se recusava a assinar o acordo. — Não é justo e não assino. Então, ele faz tudo o que quer, e eu saio assim, no prejuízo? Eu não tinha a menor ideia dos motivos que levaram aquele casal à separação. Pela reação de Patrícia, imaginei que outra mulher se interpusera entre os dois e que sua manifestação nada mais fosse do que uma demonstração do volume da tristeza que remanescia ou da quantidade do ressentimento que ainda deveria ser revolvido, até que pudessem se olhar sem rancor. Engano. A indignação era apenas patrimonial. Sua amiga se separou há poucos anos e o ex-marido, além da pensão para os filhos, continuou responsável pelas despesas da mulher por tempo indeterminado. Eles tinham o mesmo padrão de vida e não era correto que a mesma solução não lhe fosse concedida. Há casais que escolhem viver numa vitrine e se comportam como modelos de perfeição aos olhos do público. Só conseguem sobreviver em grupo. Normalmente um grupo homogêneo, tambémformado por outros casais, todos com filhos da mesma idade, histórias similares, condições econômicas parecidas. Partilhar as insatisfações e reclamações parece ser a maneira encontrada para suportar a existência a dois, como se fosse natural viver mal, conformar-se com a mesmice imposta pelo cotidiano e sepultar as várias possibilidades oferecidas pela vida a cada esquina. A história de cada um, nesses casos, é multiplicada pela história de todos, como se, num quadro comparativo de inferioridade, procurar alívio e justificativa para a própria dor, naquele cenário, fosse sempre menos pior que a dor do outro. O divórcio da amiga foi a peça do dominó que desabou, lançando ao chão as outras peças arrumadas de modo aparentemente seguro e que, num átimo, se transformaram em escombros, pondo fim à brincadeira.
A separação recente da amiga Silvinha desarranjou toda a estabilidade dos dois, revelando o que já se devia saber: a vida nunca é um porto seguro, e casamento algum tem a estabilidade de um serviço público. Muito menos uma aposentadoria justamente remunerada. O marido de Silvinha a deixou para casar com outra. Os casais daquele grupo anteviram a serenidade morna ameaçada. Pela primeira vez se enxergaram como possíveis vítimas do fim de umprojeto coletivo de segurança. A partir desse fato, não passava um dia sem que Patrícia atormentasse Fernando com suas crises de dúvidas e desconfianças. A lógica que sustentava aquele relacionamento desabara. Paulatinamente, os confrontos causados pela insatisfação eram potencializados e amplificados. Sem disposição, naquele novo ambiente, para jantares ou viagens, a solidão confrontou Patrícia e Fernando, quase num confinamento a dois. Não havia qualquer vestígio de afeto que justificasse a manutenção da vida em comum. O motivo — óbvio para ela — só podia ser outra mulher. Fernando negava e, ao que parece, não havia mesmo outra. Mas todas as brigas e discussões partiam dessa hipótese. Ao término de quase dois anos de desacertos, ofensas e insatisfações, chegaram ao fim. Não se amavam havia muito tempo. Não tinham dúvidas da necessidade de caminhar cada qual para o seu lado. A resistência de Patrícia e a pretensão de receber pensão alimentícia revelavam um modelo de casamento que, longe do afeto e da solidariedade, foi edificado sobre os frágeis pilares do interesse social, das aparências, da imagem de perfeição e do domínio econômico. A arrogância insistente com que ela tentava me convencer de que era justo receber dinheiro pelos anos dedicados à família e ao marido suscitou o que eu tenho de pior: a impaciência. Tenho total limitação para conseguir respeitar argumentos que transformam a experiência humana num negócio lucrativo. Deve ser esse o motivo que me levou a escolher o trabalho numa Vara de Família. Sou capaz de esperar algumas horas, em processos pouco complexos, quando percebo que as angústias, tristezas e indignações precisam ser verbalizadas. Assisto, pacientemente, aos rompantes de desespero que desfilam na minha frente há tantos anos, como espectadora privilegiada das contradições humanas. Sinto um profundo respeito pelas tragédias que se abatem sobre as famílias que procuram a justiça. Lucrar e não encerrar o negócio sem prejuízo. Era esse o projeto de Patrícia para o fim do casamento.
Essa era a solução que eu abominava. Resolvi abreviar a audiência. Os dois entraram com um processo de separação consensual e, se não quisessem se separar, assinando o acordo, não haveria nenhum obstáculo. Ou suspendia o processo, ou o encerrava ali mesmo. Patrícia insistiu: — A senhora acha mesmo correto ele comprar um Mercedes e não me pagar nada de pensão? — Embora minha opinião não seja relevante, Patrícia, acho certo, sim. Ele trabalha e pode comprar o carro que quiser. Você também trabalha, e, se tiver vontade, troca o seu carro. Casamento não é emprego e não tem indenização para rescisão com ou sem justa causa. Suspeitei que pudesse ter sido grosseira e tentei aliviar: — Vocês são muito jovens e, seguramente, viverão outros relacionamentos. Vale a pena refletir sobre o que vocês esperam de um casamento. Se quiserem lucro e rentabilidade, é melhor procurar uma franquia bem-sucedida. Casar, do ponto de vista econômico, é o pior investimento que alguém pode fazer. Só perde para a separação. O que entra para uma casa tem que ser dividido por dois. Não tem matemática que transforme isso num bom negócio. O casamento não é um projeto de vida em condomínio. Como qualquer aplicação de altíssimo risco, não tem seguro que cubra o seu fim. Patrícia e Fernando deixaram a sala de audiências, separados, com a sensação de terem investido no pior empreendimento de longo prazo das suas vidas. Brincando de casinha – No começo eu não queria, não. Mas tudo bem. Onde é que eu assino? Impaciente, consultando o iPhone a cada dois segundos, Marquinhos não via a hora de deixar o fórum. Evitava o encontro com o olhar agressivo de Mariana. Precisava trabalhar e não tinha tempo a perder. Jovens, com pouco menos de 25 anos, Marcos e Mariana não tinham filhos. Seria um divórcio simples.
Não havia patrimônio a ser partilhado, exceto uma dívida de alguns milhares de reais acumulada em cartões de crédito e na instituição bancária em que tinham conta conjunta. — Quer separar, eu separo. Agora, otário eu não sou. Pode esquecer que esse prejuízo não é meu. Olha aí o extrato do cartão, doutora. A senhora vai ver quem gastou o quê. Prosseguiu: — E tem mais! Ainda faltam 38 prestações do carro que ela usa. Imediatamente, Mariana replicou: — Compensa com a festa, o filme e as fotos que ainda nem ficaram prontos e já foram pagos pelo meu pai. Os dois namoraram desde os 14 anos. As famílias eram amigas e estimularam a brincadeira no começo. Os sogros eram chamados de tias e tios. A excelente condição financeira propiciou aos pombinhos, durante quase dez anos, a fantasia de um mundo perfeito. No começo, as viagens eram na companhia das famílias, ora para Angra, ora para Búzios. O prêmio pelo ingresso de ambos na faculdade foi uma viagem de seis meses para a Europa sob o pretexto de aprofundarem a fluência no inglês. Com gastos ilimitados nos cartões, pagos pelos respectivos pais, as despesas eram motivo de risadas entre os familiares, que, com orgulho, exibiam e ostentavam as faturas em lojas de marca, restaurantes caríssimos e boates frequentadas pelo jet set e jogadores de futebol. — Ah, se no meu tempo eu tivesse essa moleza… ia casar pra quê? — dizia o pai de Mariana, na ausência da filha. Os planos para o casamento tomaram forma na volta para o Brasil. Teriam mais de quatro anos para organizar a festa. Casariam no ano da conclusão dos cursos de direito e administração, escolhidos por Mariana e Marcos, respectivamente. Tranquilos, bons alunos, não davam trabalho ou preocupação, o que poderia ser um indício de problema. Qual o adolescente que cresce e se torna independente sem confronto ou sem, ao menos, tentar vencer alguns limites e errar outras tantas vezes? Não aqueles dois. Eles pouco conviveram sozinhos. Saíam em bando, com os amigos, ou na companhia dos pais. Estavam sempre ocupados com a reforma do apartamento que ganharam de presente, com os preparativos para o casamento, com os planos para o futuro. A vida, no presente, se resumia ao que estava por acontecer.
Casar não era simples. Não bastavam os noivos, o desejo de construir uma vida juntos, o amor que sentiam um pelo outro e algum trocado pra dar garantia, como cantava Cazuza. Casamento passou de sacramento e ato jurídico para a categoria de projeto especial. Impossível realizar uma cerimônia sem iluminação, figurino, decoração, degustação, calígrafo, gráfica, bemcasados, docinhos, enxoval em Nova York, coral, daminhas, roupa das daminhas, cabeleireiro, maquiagem, lua de mel no Taiti, chá de panela, jantar com os padrinhos, DJ, buquê, fotógrafo, cineasta, gravações quase diárias do making of, site na internet, lista de presentes, reuniões, compromissos, para enumerar o mínimo. Nesse mar de necessidades fabricadas e urgentes, o que menos importava era a finalidade da união. A falta de qualquer dos itens impostos pelo cerimonialista era o passaporte para o fracasso. Nem três meses depois do megaevento, que reuniu mais de quinhentos convidados, ali estava o casal, querendo o divórcio porque o casamento não era bem o que esperava. Mesmo descrente da capacidade de reflexão dos dois, resolvi provocar um pouco, na tentativa de instigar algum questionamento, principalmente pela maneira infantil com que se comportavam desde o início da audiência: — O que vocês esperavam? Café na cama todos os dias de manhã? Trilha sonora ao acordar, a casa arrumada, o bom humor permanente? Uma fada que recolhesse a roupa espalhada no chão, as toalhas molhadas? Um duende que arrumasse a cozinha e a louça? Os olhares blasés e as caretas arrogantes indicavam que não se sentiam obrigados a ouvir nenhuma orientação. Só admitiam a interferência do Estado para garantir os seus desejos. Nunca para contrariá-los. Conclui: — Tenho uma péssima notícia para vocês: quando a gente cresce, se não comprar café e papel higiênico, não vão brotar da despensa. Mimados, refratários às dores e às contradições próprias da humanidade, Mariana e Marcos eramo reflexo de uma geração forjada no espetáculo e no consumo e também rasa nas manifestações de afeto, desprovida de densidade. Cresceram naquele ambiente de felicidade obrigatória, e brincar de casinha, aos vinte e poucos anos, traduzia um hiato entre a realidade e a idade biológica. Ainda tinham alguma chance de assumir, no futuro, as escolhas das suas vidas. Sem capacidade para assimilar as grandes dores, ficariam blindados, também, das grandes alegrias, faces opostas da mesma moeda. Encerrei a audiência homologando um acordo no qual eles dividiram as dívidas para pagamento pelos pais. Fiquei com a sensação de ter participado de um faz de conta, sem um final de felizes para sempre. Doença inventada não cura “Que coisa boa reencontrar vc. Não vamos mais nos perder. Ainda bem que a gente era feliz e sabia. Bj.” Se aquela mensagem tivesse sido postada na página do Facebook do seu marido, por uma exnamorada da adolescência, há poucos anos, a reação não seria tão excessiva. Quarenta anos de idade e vinte de casamento deixaram efeitos devastadores na vida de Marília. A dura percepção de que, das leis da física, a mais concreta, no seu caso, era a da gravidade, empurrando tudo para baixo, a transformava na mulher mais insegura do mundo, embora não tivesse motivos racionais para tanto. O filho foi para a faculdade em outra cidade.
Otávio vivia a maturidade profissional, e uma promoção à diretoria o obrigava a viagens frequentes. Com a casa vazia, Marília tinha tempo para se dedicar aos seus projetos de jardinagem. Sempre reclamou do excesso de movimento e de obrigações domésticas. Sonhava com o dia em que poderia ocupar, sem culpa, o seu ateliê, sem hora para almoço, supermercado ou problemas com a empregada. Fosse a vida previsível e os desejos humanos estanques, aquele seria o seu momento mais perfeito. No entanto, o silêncio era ensurdecedor. A falta de desculpas para começar o que tinha planejado deixava Marília responsável pelo seu destino. Era insuportável não ter para quemterceirizar suas insatisfações. O mau humor, no começo pontual, passou a crônico. Por mais compreensivo e generoso que Otávio fosse, ainda não havia sido canonizado. Vez ou outra perdia a paciência com as intervenções inoportunas da mulher. Tão logo ele se descontrolava, Marília assumia o comando com acusações do tipo “você anda muito grosseiro comigo” ou “precisa disso tudo por causa de uma bobagem?”. Comentários que aprofundavam mais e mais a insatisfação. Ainda fibrilando com a explícita declaração de amor de outra mulher, mais acelerada ficou quando realizou que a postagem no Facebook podia ser vista por todos os conhecidos. Sentia-se velha, muito mais próxima dos sessenta do que dos vinte anos, desnecessária para o filho, ranzinza com o marido. Ele não tinha o direito de expô-la daquela maneira. Viviam uma crise, é verdade, mas jamais imaginou a possibilidade de ser traída. Sem qualquer reflexão, pegou o telefone e “desmascarou” Otávio para as amigas mais próximas. Insensível, traíra, desleal. No momento em que ela se sentia mais frágil, ele decidira se lançar numa aventura do passado. As amigas mais ponderadas sugeriam que ela conversasse com calma antes de qualquer decisão. As outras cobravam uma atitude imediata. “Ela sempre foi mulher demais para ele.” “Era previsível que isso fosse acontecer.” Como Otávio só retornaria em três dias, Marília achou melhor não tocar no assunto de longe.
Apenas com ele, pois a família e os conhecidos já sabiam. Não satisfeita com o circo armado, sem que o palhaço imaginasse o enredo que encontraria no picadeiro, Marília fez mais. Ligou para o marido da fulana e, chorando, revelou o caso que ela estava tendo com seu companheiro. Na audiência, percebi que Marília não estava muito convicta da separação, embora tivesse ajuizado a ação. O tempo todo ele negara o caso, o reencontro, a traição. No começo, Otávio resistiu ao divórcio, mas, na falta de possibilidades de argumentar, acabou cedendo. Marília se apegou à hipótese que construiu e nada nem ninguém a demoveria das certezas acumuladas a partir da ligeira leitura de uma mensagem carinhosa numa página virtual. Constrangido, Otávio conversou com a amiga de infância e com o marido dela. Desculpou-se pela mulher, que estava passando por um período turbulento. Tentou restabelecer a normalidade doméstica. Não houve santo que desse jeito. Marília não podia perder a partida. Mobilizou todo mundo. A dor que ela sentiu era real. Uma faca enfiada na espinha a fez compreender o significado da dor de corno. Ela não podia voltar atrás. Ainda que tivesse vontade. Se ao menos não tivesse contado a ninguém o ocorrido… — Marília… — comecei assim que entendi que havia alguma possibilidade de abordar uma reavaliação. — O tempo todo, desde que você entrou aqui, tenho percebido que você tem dúvidas sobre a separação. O fato de ter contado essa história para os amigos e mobilizado a família não a obriga a seguir em frente com a decisão, exceto se for essa a sua vontade. Ninguém vai viver a sua vida por você. Ele estava disposto a continuar casado. Acreditava que aquela crise passaria e que era normal, depois de tanto tempo, tamanha insatisfação. Ela, embora também quisesse, não admitia perder o embate ou entender que a hipótese por ela mesma fabricada podia não ser real. Chegou a dizer que perdoaria Otávio se ele assumisse que a traiu.
Ele negou o tempo todo. Era uma bobagem a mensagem. Se fosse alguma coisa real, ele jamais permitiria tamanha exposição. Não consegui concluir, com clareza, se Otávio havia pulado a cerca, mas consegui captar, nitidamente, que não era desejo de nenhum dos dois uma separação açodada. Ponderei, então: — Por mais que tenha acontecido um encontro eventual, Marília, coisa que o Otávio jura que não aconteceu, você precisa avaliar se é tão grave a ponto de acabar com a vida que vocês construíramjuntos nesses vinte anos. Ninguém fica casado com ninguém por tanto tempo porque tem o monopólio da sexualidade do outro. Se rolou alguma coisa, o que não acredito — minimizei —, avalie se é possível esquecer e seguir em frente. Ela topou. Era o que queria desde sempre. Antes de sair, ainda a chamei e disse, sem que Otávio escutasse: — Essas coisas acontecem com muita gente. As pessoas costumam mentir que são perfeitas. Mas preste atenção! É para virar a página. Não vai atormentar esse homem com essa história! Durou pouco a sensatez. Voltaram depois de nove meses para o divórcio definitivo. A realidade não conseguiu suplantar a hipótese. Impossível vencer uma dor inventada.
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