O já habitual grito matinal de horror era o som de Arthur Dent ao acordar e lembrar-se de onde estava. O que o perturbava não era apenas a caverna fria nem o fato de ser úmida e fedorenta. Era o fato de que ela ficava bem no meio de Islington e que o próximo ônibus só iria passar dentro de dois milhões de anos. O tempo é, por assim dizer, o pior lugar onde ficar perdido, como Arthur Dent havia descoberto. Ele já tinha se perdido várias vezes, tanto no tempo quanto no espaço. Pelo menos estar perdido no espaço mantém a pessoa ocupada. Estava ilhado na Terra Pré-Histórica como resultado de uma complexa seqüência de eventos envolvendo o fato de ele ter sido alternadamente detonado ou insultado em regiões da Galáxia mais estranhas do que poderia sonhar. Por conta disso, ainda que sua vida no momento fosse extremamente monótona, continuava se sentindo muito assustado. Fazia cinco anos que ninguém o detonava. Como não tinha encontrado ninguém desde que ele e Ford Prefect se separaram quatro anos antes, também não havia sido insultado durante todo aquele tempo. Exceto uma vez. Aconteceu numa tarde de primavera cerca de dois anos antes. Ele estava voltando para sua caverna, pouco depois do entardecer, quando percebeu estranhas luzes piscando através das nuvens. Virou-se para observar, sentindo seu coração encher-se de esperança. Resgate. Uma saída. O sonho impossível de todo náufrago: uma nave. Observou, fascinado e animado, uma nave prateada e comprida descer em meio à brisa morna da tarde, em silêncio, delicadamente, suas longas e esguias hastes desdobrando-se em um suave bale tecnológico. Assentou-se suavemente no terreno e o pequeno zumbido que havia gerado sumiu, como se fosse embalado pela calma da tarde. Uma rampa estendeu-se. Surgiram luzes pela abertura. Uma silhueta alta apareceu na portinhola, desceu a rampa e parou bem na frente de Arthur. ― Você é um idiota, Dent ― foi tudo o que disse. Era um alienígena, do tipo bem alienígena. Tinha uma altura peculiarmente alienígena, uma cabeça achatada peculiarmente alienígena, pequenos olhos em fenda peculiarmente alienígenas, estava vestido com uma roupa elaboradamente desenhada e usava um colar peculiarmente alienígena, e tinha uma cor pálida cinza-esverdeada de alienígena que reluzia com um brilho lustroso que a maioria das faces cinza-esverdeadas só podia conseguir por meio de muitos exercícios e de sabonetes absurdamente caros.
Arthur olhou-o, atônito. O alienígena olhou-o de volta. O sentimento inicial de esperança e excitação havia sido completamente superado pelo espanto, e pensamentos de todos os tipos estavam, naquele momento, brigando pelo controle de suas cordas vocais. ― Qqqu…? ― disse ele. ― Mmms… ah… aahn… ― acrescentou em seguida. ― Qqqm… eeeerrr… ehh… quem? – conseguiu finalmente dizer e depois caiu numa espécie de silêncio frenético. Estava sentindo os efeitos de não ter dito nada a ninguém por mais tempo do que podia se lembrar. A criatura alienígena franziu o rosto brevemente e consultou uma espécie de prancheta que estava segurando com sua mão fina e esguia de alienígena. ― Arthur Dent? ― disse ele. Arthur assentiu, balançando a cabeça. ― Arthur Phillip Dent? ― prosseguiu o alienígena, com um tom de voz de firme. ― Ahhh… ah… sim… éééé… éééé ― confirmou Arthur. ― Você é um idiota ― repetiu o alienígena ―, um bundão completo. ― Ehhh… A criatura pareceu ter ficado satisfeita com aquilo. Balançou a cabeça levemente, depois fez uma marquinha peculiarmente alienígena em sua prancheta e virou-se bruscamente, caminhando emdireção à nave. ― Ehhh… ― disse Arthur, desesperado. ― Ehhhh… ― Ah, não me venha com esse papo! ― retrucou o alienígena. Subiu a rampa, passou pela portinhola e desapareceu dentro da nave. A portinhola se fechou, a rampa foi recolhida e a nave começou a emitir um leve zumbido grave. ― Ehhh, hei! ― gritou Arthur, correndo logo em seguida na direção da nave. ― Espere aí! ― disse. ― O que foi isso? O quê? Espere! A nave elevou-se no ar, removendo seu peso como quem joga uma capa no chão, e pairou brevemente. Balançava estranhamente no céu da tarde. Passou pelas nuvens, iluminando-as brevemente, e depois se foi, deixando Arthur sozinho, naquela imensidão de terra, dançando uma pequena dança patética e sem sentido. ― O quê? ― gritou Arthur.
― O quê? Quê? Ei, o que foi? Volte aqui e repita isso! Pulou e dançou até suas pernas começarem a tremer, gritou até seus pulmões arderem. Ninguém respondeu. Não tinha ninguém para ouvir ou falar com ele. A nave alienígena já cruzava em alta velocidade as camadas mais altas da atmosfera, a caminho do vazio aterrador que separa as poucas coisas que existem no Universo umas das outras. No interior da nave, seu ocupante, o alienígena com a pele milionária, estava esticado no único assento. Seu nome era Wowbagger, o Infinitamente Prolongado. Um homem com um objetivo. Na verdade, não era um objetivo muito nobre, como ele mesmo seria o primeiro a admitir, mas ao menos tinha um objetivo e isso o mantinha ocupado. Wowbagger, o Infinitamente Prolongado, era ― na verdade, é ― um dos pouquíssimos seres imortais do Universo. Aqueles que já nascem imortais sabem como lidar com isso instintivamente. Contudo, Wowbagger não tinha nascido imortal. Não. Passou a desprezar os imortais, aquela corja de babacas tranqüilões. Tinha se tornado imortal por um infeliz acidente envolvendo um acelerador de partículas irracionais, uma refeição líquida e um par de elásticos. Os detalhes exatos do acidente não são importantes, porque ninguém jamais foi capaz de duplicar as circunstâncias exatas em que as coisas aconteceram e, ao tentarem, muitas pessoas acabaram ficando com cara de idiotas, morreram no processo, ou ambas as coisas. Com uma careta e uma expressão de cansaço, Wowbagger fechou seus olhos, colocou uma música de fundo no som da nave e pensou que até poderia ter conseguido… Se não fosse pelas tardes de domingo, teria conseguido. No início tudo parecia engraçado: havia se divertido muito, vivendo perigosamente, se arriscando ao extremo, enriquecendo com investimentos de longo prazo e altas taxas de retorno e, no geral, permanecendo vivo enquanto os outros morriam. Contudo, no final foram as tardes de domingo que se tornaram insuportáveis: aquela terrível sensação de não ter absolutamente nada para fazer que se instala em torno das 14h55, quando você sabe que já tomou um número mais que razoável de banhos naquele dia, quando sabe que, por mais que tente se concentrar nos artigos dos jornais, você nunca conseguirá lê-los nem colocar em prática a nova e revolucionária técnica de jardinagem que eles descrevem, e quando sabe que, enquanto olha para o relógio, os ponteiros se movem impiedosamente em direção às 16 horas e logo você entrará no longo e sombrio entardecer da alma. A partir daí as coisas começaram a perder o sentido. Os sorrisos alegres que costumava distribuir durante os funerais dos outros começaram a sumir. Aos poucos, começou a desprezar o Universo em geral e cada um dos seus habitantes em particular. Foi então que concebeu seu objetivo, aquilo que o faria prosseguir e que, até onde podia compreender, iria fazê-lo prosseguir para todo o sempre. Era o seguinte: Iria insultar o Universo. Isto é, iria insultar todos no Universo. Individualmente, pessoalmente e ― esse foi o ponto no qual realmente decidiu se empenhar ― em ordem alfabética.
Quando as pessoas reclamavam cora ele, como algumas vezes já o tinham feito, que o plano não somente era mal-intencionado como também completamente impossível, devido ao número de pessoas que nasciam e morriam sem parar, ele simplesmente as encarava com um olhar gélido e dizia: ― Um homem tem o direito de sonhar, não é? Foi assim que tudo começou. Construiu uma nave feita Para durar, com um computador capaz de lidar com a infinitude de dados necessário para manter o controle de toda a população do Universo conhecido e calcular as complicadas rotas envolvidas. Sua nave atravessou as órbitas internas do sistema estelar Sol, preparando-se para ganhar impulso ao circundar sua estrela e depois partir para o espaço interestelar. ― Computador. ― Presente ― respondeu o computador. ― Para onde vamos? ― Vou calcular. Wowbagger observou por alguns instantes o intricado colar de brilhantes da noite, bilhões de pequenos diamantes polvilhando a infinita escuridão com sua luz. Cada um deles, absolutamente todos, estava em seu itinerário. Iria passar milhões de vezes pela grande maioria deles. Imaginou brevemente sua rota, conectando todos os pontos do céu como um desenho infantil de unir os pontos. Torceu para que, visto de algum lugar do Universo, aquele traçado soletrasse uma palavra extremamente obscena. O computador emitiu um bipe chocho para indicar que havia terminado seus cálculos. ― Folfanga ― disse. E bipou novamente. ― Quarto planeta do sistema Folfanga ― prosseguiu. E bipou mais uma vez. ― Duração estimada para a viagem: três semanas ― disse depois. Bipou de novo. ― Vamos encontrar uma pequena lesma ― bipou ― do gênero ARth-Urp-Hil-Ipdenu. ― Acredito ― acrescentou, após uma breve pausa na qual bipou ― que você decidiu chamá-la de “bundona descerebrada”. Wowbagger resmungou. De sua janela, observou a grandiosidade da criação por mais alguns instantes. ― Acho que vou tirar um cochilo. Por quais redes de transmissão vamos passar durante as próximas horas? O computador bipou. ― Cosmovid, Thinkpix e Home Brain Box ― disse.
Então bipou mais uma vez. ― Vai passar algum filme a que eu ainda não tenha assistido umas 30 mil vezes? ― Não. ― Ah. ― Bem, tem Angústia no Espaço. Este você só viu 33.517 vezes. ― Me acorde para a segunda parte. O computador bipou. ― Durma bem ― disse. A nave deslizava pela noite. Enquanto isso, na Terra, caía uma chuva fina. Arthur Dent sentou-se em sua caverna e teve uma das noites mais tenebrosas de sua vida, pensando em milhares de coisas que poderia ter dito ao alienígena e matando mosquitos, que também tiveram uma noite bem tenebrosa. No dia seguinte, decidiu fazer uma sacola usando uma pele de coelho porque achou que seria útil para colocar coisas dentro. Capítulo 2 Dois anos depois disso ter acontecido, a manhã estava doce e calma quando Arthur saiu da caverna que chamava de “casa” até conseguir encontrar um nome melhor para aquilo ou então encontrar uma caverna melhor. Sua garganta estava novamente irritada devido a seu grito matinal de horror, mas ainda assim ele estava de ótimo humor. Enrolou firmemente seu roupão esfarrapado ao redor do corpo e sorriu, feliz, olhando aquela linda manhã. O ar estava claro e cheio de aromas suaves, a brisa acariciava levemente a grama alta que cercava a caverna, os pássaros gorjeavam uns para os outros, as borboletas borboleteavamlindamente ao seu redor e toda a natureza parecia conspirar para ser tão gentil e agradável quanto possível. Não eram, contudo, aquelas delícias bucólicas que haviam deixado Arthur tão feliz. Ele acabara de ter uma ótima idéia sobre como lidar com o terrível e solitário isolamento, os pesadelos, o fracasso de todas as suas tentativas de horticultura e a completa ausência de futuro e a futilidade de sua vida ali, na Terra pré-histórica. Tinha decidido enlouquecer. Sorriu de novo, feliz, e mordeu um pedaço de perna de coelho que havia sobrado de seu jantar. Mastigou alegremente durante algum tempo e então resolveu anunciar formalmente sua decisão. Ficou de pé, endireitou o corpo e olhou de frente para os campos e montanhas. Para dar mais peso às suas palavras, enfiou o osso de coelho na barba. Abriu bem os braços e disse: ― Vou ficar louco! ― Boa idéia ― disse Ford Prefect, descendo com cuidado de uma rocha onde estivera sentado.
O cérebro de Arthur fez piruetas. Seu maxilar fez flexões. ― Eu fiquei louco por um tempo ― disse Ford ― e isso me fez muito bem. Os olhos de Arthur começaram a dar cambalhotas. ― Sabe… ― disse Ford. ― Por onde você andou? ― interrompeu Arthur, agora que sua cabeça havia parado com a ginástica. ― Por aí ― respondeu Ford ―, aqui e ali. ― Ele sorriu de uma forma que julgou (corretamente) ser absolutamente irritante. ― Tirei minha mente de circulação por uns tempos. Achei que, se o mundo precisasse muito de mim, ele viria me chamar. E veio. Pegou em sua mochila, agora completamente em farrapos, seu Sensormático Subeta. ― Pelo menos ― prosseguiu ― acho que veio. Isso aqui tem se mexido bastante. ― Sacudiu o Subeta. ― Se for um alarme falso, vou enlouquecer. De novo. Arthur sacudiu a cabeça e sentou-se. Olhou para cima. ― Achei que você estivesse morto… ― disse, perplexo. ― Foi o mesmo que eu pensei durante algum tempo ― disse Ford ― e depois decidi que eu era um limão durante algumas semanas. Me diverti bastante nessa época, pulando para dentro e para fora de um gim-tônica. Arthur limpou a garganta, depois repetiu: ― Onde ― disse ele ― é que você…? ― Onde encontrei gim-tônica? ― disse Ford, animado. ― Encontrei um pequeno lago que pensava ser um gim-tônica, então fiquei pulando para dentro e para fora dele. Bem, pelo menos creio que ele achava que era um gim-tônica.
― Eu poderia ― disse com um sorriso que faria qualquer homem são procurar abrigo nas árvores ― ter imaginado tudo isso. Esperou alguma reação de Arthur, mas este já o conhecia demasiadamente bem. ― Continue ― disse ele, sem se alterar. ― Como você pode ver ― disse Ford ―, o sentido disso tudo é que não há sentido em tentar enlouquecer para impedir-se de ficar louco. Você pode muito bem dar-se por vencido e guardar sua sanidade para mais tarde. ― E isto é seu estado de sanidade, não é? ― disse Arthur. ― Estou perguntando apenas por curiosidade. ― Fui até a África. ― disse Ford. ― É? ― É. ― E como foi lá? ― Então esta é sua caverna, não é? ― disse Ford. ― Ehh, sim – respondeu Arthur. Sentia-se muito estranho. Após quase quatro anos de isolamento, estava tão feliz e aliviado por reencontrar Ford que tinha vontade de chorar. Por outro lado, Ford era uma pessoa que se tornava insuportável quase instantaneamente. ― Muito legal ― disse Ford, falando da caverna de Arthur. ― Você deve odiá-la. Arthur sequer se preocupou em responder. ― A África foi bem interessante ― prosseguiu. ― Me comportei de forma bem estranha por lá. Olhou para longe, pensativo. ― Resolvi ser cruel com os animais ― disse, meio aéreo. ― Mas apenas por diversão. ― Não me diga ― respondeu Arthur, cauteloso. ― É verdade ― afirmou Ford.
― Não vou perturbá-lo com os detalhes porque eles iriam… ― O quê? ― Perturbá-lo. Mas você pode achar interessante saber que sou o integralmente responsável pela evolução do animal que, dentro de alguns séculos, vocês irão chamar de girafa. Também tentei aprender a voar. Acredita? ― Conte-me. ― Eu conto depois. Só vou mencionar que o Guia diz… ― O quê? ― O Guia do Mochileiro das Galáxias. Você se lembra, não? ― Sim, lembro-me de tê-lo jogado no rio. ― Ê, mas eu o pesquei de volta depois ― disse Ford. ― Você não me contou isso. ― Não queria que você o jogasse fora de novo. ― Tudo bem ― respondeu Arthur. ― E o que ele diz? ― O quê? ― O que o Guia diz? ― Ah. O Guia diz que há toda uma arte para voar ― respondeu Ford. ― Ou melhor, um jeitinho. O jeitinho consiste em aprender como se jogar no chão e errar. ― Deu um sorrisinho. Apontou para as marcas em suas calças na altura dos joelhos e levantou os braços para mostrar os ombros. Estavam arranhados e machucados. ― Até agora não dei muita sorte ― disse. Depois estendeu a mão. ― Estou muito feliz em vê-lo novamente, Arthur. Arthur sacudiu a cabeça em um acesso súbito de emoção e perplexidade. ― Há anos que não vejo alguém ― disse. – Absolutamente ninguém. Mal me lembro de como se fala.
Me esqueço de algumas palavras. Tenho praticado, sabe. Eu pratico falando com… falando com… como se chamam aquelas coisas que fazem os outros acharem que ficamos loucos quando falamos com elas? Como George III. ― Reis? ― tentou Ford. ― Não, não ― respondeu Arthur. ― As coisas com as quais ele costumava falar. Estamos cercados por elas, mas que droga. Eu mesmo plantei centenas delas. Todas morreram. Árvores! Eu pratico falando com árvores. Para que é isso? Ford continuava com a mão estendida. Arthur olhava, sem entender. ― Aperte ― sugeriu Ford. Arthur apertou a mão, meio nervoso no início, como se ela pudesse se transformar em um peixe. Então segurou-a vigorosamente com suas duas mãos, sentindo um enorme alívio. Apertou, apertou e apertou. Depois de um tempo, Ford achou que já bastava. Subiram em uma colina rochosa próxima e olharam o cenário em volta. ― O que aconteceu com os golgafrinchenses? Arthur deu de ombros. ― Muitos não sobreviveram ao inverno, três anos atrás. Os poucos que viveram até a primavera disseram que precisavam de umas férias e partiram em uma jangada. A História nos diz que devem ter sobrevivido… ― É ― disse Ford. ― Certo, certo. ― Ele colocou as mãos na cintura e olhou novamente emvolta para o planeta vazio. Repentinamente, Ford sentiu-se cheio de energia e perspectivas.
― Estamos de partida ― disse, animado. ― Para onde? Como? ― perguntou Arthur. ― Não sei ― disse Ford ―, mas posso sentir que chegou a hora. Vão acontecer coisas. Estamos a caminho. Falou em voz baixa, quase sussurrando. ― Detectei ― disse ele ― perturbações na corrente. Lançou um olhar decidido para o horizonte, como se quisesse que o vento soprasse em seus cabelos dramaticamente naquele momento. O vento, contudo, estava ocupado brincando com umas folhas não muito longe. Arthur pediu para Ford repetir o que acabara de dizer, porque não havia compreendido totalmente o sentido. Ford repetiu. ― A corrente? ― perguntou Arthur. ― A corrente do espaço-tempo ― disse Ford e, quando o vento soprou brevemente ao redor deles, abriu um largo sorriso. Arthur concordou, e limpou a garganta. ― Estaríamos falando ― perguntou, cautelosamente ― a respeito de alguma coisa que os vogons arrastam por aí ou o que exatamente? ― Há um zéfiro ― disse Ford ― no contínuo espaço-temporal. ― Ah ― concordou Arthur ―, onde ele está? Onde está? ― Colocou as mãos nos bolsos de seu roupão e perscrutou o horizonte. ― O quê? ― Bem, quem é esse tal de Zéfiro exatamente? ― perguntou Arthur. Ford olhou para ele, furioso. ― Você quer me ouvir, por favor? Não estou falando de uma pessoal ― Eu estava ouvindo ― disse Arthur ―, mas não acho que tenha ajudado muito. Ford agarrou-o pelas lapelas do roupão e falou com ele tão lenta, articulada e pacientemente como se fosse alguém do serviço de atendimento ao cliente de uma companhia telefônica. ― Parece… ― disse ― …haver alguns núcleos… ― disse em seguida ― …de instabilidade… ―continuou ― …na tessitura… ― prosseguiu. Arthur olhava abestalhado para o tecido de seu roupão, onde Ford o segurava. Ford soltou o roupão antes que Arthur transformasse seu olhar abestalhado em uma observação abestalhada. ― …na tessitura do espaço-tempo ― concluiu. ― Ah, é isso ― disse Arthur.
― Sim, isso ― confirmou Ford. Lá estavam eles, sozinhos sobre uma colina na Terra pré-histórica, olhando um para o outro intensamente. ― E isso fez o quê? ― disse Arthur. ― Isso ― respondeu Ford ― desenvolveu núcleos de instabilidade. ― É mesmo?? ― disse Arthur, sem piscar os olhos por um segundo sequer. ― Sim, de fato ― retrucou Ford, com o mesmo grau de imobilidade ocular. ― Que bom! ― disse Arthur. ― Entendeu? ― disse Ford. ― Não ― disse Arthur. Fizeram uma pausa silenciosa. ― A dificuldade desta conversa ― disse Arthur, depois que uma expressão pensativa havia lentamente subido por todo o seu rosto, como um alpinista escalando uma passagem traiçoeira ― é que ela é muito diferente das que tenho tido nos últimos tempos. Como expliquei há pouco, foram basicamente com árvores. Não eram assim. Exceto talvez por algumas conversas que tive com os olmeiros, que algumas vezes ficam um pouco desorientados. ― Arthur ― disse Ford. ― Sim? ― disse Arthur. ― Basta acreditar no que eu lhe disser e tudo será extremamente simples. ― Puxa, não sei se acredito nisso. Sentaram-se para tentar reorganizar os pensamentos. Ford pegou o Sensormático Subeta. Estava emitindo zumbidos variados e havia uma luz piscando, fraquinha. ― Pilha fraca? ― Não ― disse Ford ―, há uma perturbação em movimento na tessitura do espaçotempo, umzéfiro, um núcleo de instabilidade, e parece estar bem próximo de nós. ― Onde? Ford moveu o aparelho em um semicírculo, balançando-o ligeiramente. De repente a luz piscou. ― Lá! ― disse Ford, apontando com o braço.
― Bem atrás daquele sofá! Arthur olhou. Ficou completamente surpreso ao notar que havia um sofá Chesterfield, forrado de veludo paisley, no campo bem na frente deles. Olhou para ele com uma perplexidade inteligente. Perguntas perspicazes perpassaram sua mente. ― Por que ― perguntou ele ― tem um sofá naquele campo? ― Acabei de explicar! ― gritou Ford, irritado. ― Um zéfiro no contínuo espaçotemporal. ― E este sofá é do Zéfiro? ― perguntou Arthur, tentando se apoiar em seus pés e, apesar da falta de otimismo, também em seus sentidos. ― Arthur! ― gritou Ford com ele. ― Aquele sofá está ali por causa da instabilidade no espaçotempo que estou tentando incutir em sua mente terminalmente debilitada. Ele foi jogado para fora do contínuo, é um resíduo nas margens do espaço-tempo ― aliás, seja o que for, temos que agarrá-lo, pois é a única forma de sairmos daqui! Saltou até a base da rocha onde estavam e começou a correr pelo campo. “Agarrá-lo?”, pensou Arthur, depois levantou as sobrancelhas, espantado, quando viu que o Chesterfield estava balançando e flutuando lentamente pela grama. Com um grito de prazer totalmente inesperado, desceu saltitante da rocha e saiu correndo atrás de Ford Prefect e daquela peça irracional de mobília. Correram tresloucadamente pela grama, pulando, rindo e gritando instruções para levar aquela coisa para um lado ou para o outro. O sol brilhava ardentemente sobre a relva e pequenos animais saíam correndo para abrir caminho. Arthur sentia-se feliz. Estava profundamente contente porque, pelo menos uma vez, seu dia estava saindo exatamente como planejado. Há apenas 20 minutos havia decidido ficar louco e, pouco depois, lá estava ele, caçando um Chesterfield através dos campos da Terra pré-histórica. O sofá ondulava de um lado para o outro, parecendo ser ao mesmo tempo tão sólido quanto as árvores ao passar entre algumas delas e tão nebuloso quanto um sonho alucinado ao flutuar como umfantasma através de outras. Ford e Arthur corriam desvairadamente atrás dele, mas o sofá se desviava e se esquivava como se seguisse uma complexa topografia matemática própria ― era exatamente o que estava fazendo. Continuavam a perseguição, o sofá continuava dançando e girando, até que, subitamente, virou-se e mergulhou, como se estivesse cruzando o limite de um gráfico catastrófico, e se viram praticamente em cima dele. Dando impulso e gritando, subiram no sofá, o sol tremeluziu, caíram por um vazio doentio e apareceram inesperadamente no meio do campo de críquete conhecido como Lord’s Cricket Ground, em St. John’s Wood, Londres, perto do final da última partida [Test Match] da Série Australiana no ano de 198―, quando a Inglaterra precisava de apenas 28 runs para vencer. Capítulo 3 Fatos importantes extraídos da História Galáctica, número um: (Reproduzido do Livro de História Galáctica Popular do Síderial Daily Mentioner’s.) O céu noturno do planeta Krikkit é a vista menos interessante de todo o Universo. Capítulo 4 Era um dia lindo e agradável no Lord’s Cricket Ground quando Ford e Arthur foram casualmente jogados para fora de uma anomalia espaço-temporal e se estatelaram violentamente sobre o gramado perfeito.
A torcida aplaudia estrondosamente. Não eram eles que estavam sendo aplaudidos, mas se curvaram, em um gesto instintivo de agradecimento, o que foi uma grande sorte, já que a pequena e pesada bola vermelha que a torcida estava aplaudindo passou zunindo a poucos milímetros da cabeça de Arthur. Na multidão, um homem desmaiou. Eles se jogaram de volta no chão, que parecia girar de forma medonha em torno deles. ― O que foi isso? ― sussurrou Arthur. ― Algo vermelho ― sussurrou Ford de volta. ― Onde estamos? ― Ahn, sobre algo verde. ― Formas ― murmurou Arthur. ― Preciso de formas.
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