Eu não faria um convite daqueles a qualquer um. Eliane Brum já era uma repórter consagrada, um dos melhores textos brotados em quatro décadas de Zero Hora, quando a convoquei a minha sala numa tarde de fins de 1998 para lançar o desafio a uma jornalista que ansiava por desafios todos os dias. – Eliane, que tal extrair crônicas reais de pessoas comuns e situações corriqueiras? – propus, eu próprio um ansioso diretor de redação em busca de inovações e inovadores para marcar a história do jornalismo brasileiro. A ideia estava ancorada na convicção de que tudo – até uma gota de água – pode virar uma grande reportagem na mão de um grande repórter. A questão era achar alguém com os sentidos à flor da pele para dar forma a um misto de crônica, reportagem e coluna. Não foi preciso procurar mais. Eliane não só capturou a ideia de escrever uma série de reportagens sobre personagens e cenas corriqueiras em forma de crônicas da vida real: ela a moldou a seu talento exuberante e a transformou numa extraordinária coletânea de 46 colunas que por quase 11 meses vitaminaram a edição de sábado do principal jornal do país fora do eixo Rio-São Paulo. Celebradas pelo Prêmio Esso de Jornalismo – Regional Sul de 1999, Eliane e suas A vida que ninguém vê foram como o encontro do cálice com o vinho. Fenômeno de percepção jornalística, Eliane iluminou um mundo recluso, obscurecido pela emergência da notícia ou pela máxima de que, em jornalismo, a história só existe quando o homem é quem morde o cachorro. A série provou o contrário. Ao extrair reportagens antológicas de onde outros só enxergariam a mesmice, Eliane deu a zés e marias do sul do Brasil a envergadura de personagens de literatura tolstoiana e reverteu um dos mais arraigados dogmas da imprensa. Um dia, quem sabe, algum desses acadêmicos da comunicação que se debruçam sobre aquelas teses herméticas deslocadas da vida real das redações tambémencare a tarefa de trazer à luz como Eliane traçou uma parte da história do jornalismo brasileiro ao escrever notáveis reportagens (ou seriam crônicas?) extirpadas das ruas anônimas. O talento de Eliane, de fato, merece uma investigação científica. Sabe-se que, no caminho até sua página de sábado, a jovem repórter (ou seria colunista?) defrontava-se com três momentos decisivos. No primeiro, talvez o mais crítico por requerer um exercício de precisa inspiração e sensibilidade, recrutava seu tema e definia seu personagem – o vinho raro à espera de ser descoberto e degustado. Em seguida, vinha a tarefa mais espinhosa para muitos jornalistas e seus entrevistados, mas provavelmente o momento mais natural para quem conhece Eliane: deixar-se devassar diante da repórter de voz suave, olhar terno e sensibilidade extrassensorial. Sim, aqui se revela um dos segredos de Eliane para compilar suas histórias: a empatia enigmática que ela estabelece com suas fontes. Não são modos e gestos afetados, não são truques impessoais para relaxar o entrevistado. Eliane é assim, confiável e profissional ao mesmo tempo. Olhos, ouvidos e, principalmente, coração aberto diante da informação em estado bruto. Era graças a esta combinação rara que a vida de quem milhares iriam conhecer no sábado seguinte rasgava-se diante do bloco de anotações da repórter. A última etapa da página guardava a tarefa mais simples para Eliane – escrever magistralmente – e a mais tenebrosa das missões: conter seu próprio ímpeto de narrar além, de percorrer escaninhos da vida dos entrevistados que as limitações de espaço de um jornal não conseguiriam jamais conter. Em permanente ebulição jornalística, Eliane vivia no fechamento da coluna o drama de enquadrar emsomente uma página o retalho de vida que para outros repórteres não valeria uma nota. Foi com tal talento sensitivo, somado à característica própria dos grandes jornalistas capazes de identificar lados inesperados de situações esperadas, que, já em 1993, Eliane havia ensaiado sua vida que ninguém vê numa histórica série de reportagens sobre a Coluna Prestes – ou melhor, sobre a Coluna Prestes que ninguém via. Ao percorrer 25 mil quilômetros empoeirados do Brasil, Eliane nutriu suas anotações com a matéria-prima das melhores reportagens: a gente comum.
Das testemunhas anciãs da passagem da Coluna, a quem passou chamar de “o povo do caminho”, obteve o mais surpreendente e fiel relato sobre a marcha de homens que a parte do país com voz – 70 anos depois – considerava heroica mas que, na verdade da repórter, se delineava também como uma procissão de roubos e atrocidades. Ao contrapor seu “povo do caminho” à história oficial da esquerda, Eliane despertou a ira de quem erguia mitos com pés de barro, mas fez deitar em paz o maior patrimônio de um jornalista: sua própria consciência. Quando Eliane ouviu o canto da sereia da imprensa paulista e deixou Zero Hora, A vida que ninguém vê achou-se repentinamente órfã. Não havia como substituí-la. Até – é preciso confessar – sondei possíveis candidatos a embalar a coluna, mas, sabiamente, todos declinaram da hipótese de serem comparados aos textos de Eliane Brum. Com sua personalidade única, A vida que ninguém vê, de fato, criou vida própria, singular como a oportunidade oferecida por esta coletânea a partir de agora. Boa viagem pela vida. Marcelo Rech Maio de 2006 História de um olhar O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva. Inclui. Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva. Esta é a história do olhar de uma professora chamada Eliane Vanti e de um andarilho chamado Israel Pires. Um olhar que nasceu na Vila Kephas. Dizem que, em grego, kephas significa pedra.
Por isso umnome tão singular para uma vila de Novo Hamburgo. Kephas foi inventada mais de uma década atrás pedra sobre pedra. Em regime de mutirão. Eram operários da indústria naqueles tempos nada longínquos. Hoje, desempregados da indústria. Biscateiros, papeleiros. Excluídos. Nesta Kephas cheia de presságios e de misérias vagava um rapaz de 29 anos com o nome de Israel. Porque em todo lugar, por mais cinzento, trágico e desesperançado que seja, há sempre alguém ainda mais cinzento, trágico e desesperançado. Há sempre alguém para ser chutado por expressar a imagem-síntese, renegada e assustadora, do grupo. Israel, para a Vila Kephas, era esse ícone. O enjeitado da vila enjeitada. A imagem indesejada no espelho. Imundo, meio abilolado, malcheiroso, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe morta, vivendo em uma casa cheia de fome com a madrasta e uma irmã doente. Desregulado das ideias, segundo o senso comum. Nascido prematuro, mas sem dinheiro para diagnóstico. Escorraçado como um cão, torturado pelos garotos maus. Amarrado, quase violado. Israel era cuspido. Era apedrejado. Israel era a escória da escória. Um dia Israel se aproximou de um menino. De nove anos, chamado Lucas. Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo.
Bom de bola. Bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar. Aconteceu neste inverno. Eliane, a professora, descobriu Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la. Eliane viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. E o que se passou naquele olhar é ummilagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não umescombro. Capturado por essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola. E, quando viram, Israel estava na janela da sala de aula da 2ª série C. Com meio corpo para dentro do olhar da professora. Uma cena e tanto.
Israel na janela, espiando para dentro. Cantando no lado de fora, desenhando com os olhos. Quando o chamavam, fugia correndo. Escondia-se atrás dos prédios. Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto apanhar ficou ressabiado, foi pegando primeiro um lápis, depois umafago. E, num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora. E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos de crianças. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel. Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas. Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles. E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel. E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel. Israel, não importa se alguém não gosta de você. O que importa é que você siga a vida, aconselha Jeferson, de oito anos.
Israel, não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares, promete Greice, de nove. Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vandinho, porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranquiliza Lucas, nove. Israel, tu me botas na garupa no recreio? E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu as ruas de pedra. Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou o respeito da vila, a admiração do pai. Vai ganhar uma vaga oficial na escola. Já consegue escrever o “P” de professora. E ninguém mais lhe atira pedras. A professora, depois que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de Israel foi a revolução da professora. Em 7 de Setembro, Israel desfilou. Pintado de verde-amarelo, aplaudido de pé pela Vila Pedra. [18 de setembro de 1999] Adail quer voar Ele se chama Adail José da Silva. E vive no portal do céu. Onde o Rio Grande decola para o mundo. E o mundo aterrissa no Rio Grande. Desembarcou ali, defronte ao Aeroporto Salgado Filho, 36 anos atrás. E a diferença se deu logo no início, nesse pouso atabalhoado. Porque chegou num ônibus de molas cansadas, emerso da serra gaúcha, onde tinha as mãos manchadas pelo sangue dos pinheirais. Chegou apavorado porque o único avião que vira na vida estava espatifado nas encostas de Canela, pássaro decaído que durante semanas hipnotizou uma legião de colonos que só voavam com os dois pés no chão. Chegou com a mala vermelha, de couro, meia dúzia de tarecos dentro, grudada no corpo. Estaqueou na porta do aeroporto, naquele tempo metade do que é hoje, mas já enorme para ele. E se recusou a entrar. Os colegas o empurraram. E Adail entrou aos tropeços.
Com a sua mala desajeitada, sem um bilhete de viagem. Iniciou ali, naquele alvorecer de outubro de 1963, uma jornada sem sair do chão que dura até hoje. E tornou-se o que seria para o resto de sua vida. Adail tornou-se “o negão” das bagagens. Descobriu assim a relatividade das distâncias. Porque ele, tão perto, esteve sempre tão longe. A menos de uma centena de passos das asas do avião, jamais conseguiu alcançá-las. Restou a Adail amar os perfis alados de seu destino à distância. Ele, que desde o primeiro dia jamais encontrou explicação para o voo de tal estardalhaço. Tanto ferro, tanta gente, tanta mala. Como é possível, virgem nossa? Enchendo a barriga dos pássaros de aço, Adail viu o mundo passar por ele num vaivém assustador. E desejou ser a bagagem que empanturra o avião. Viu todos os presidentes, de Jango a FHC. Viu Pelé, viu Roberto Carlos, envelheceu com Tônia Carrero, carregando a mala daquela que para ele ainda hoje é a mulher mais bela do Brasil. Adail viu o mundo e o mundo nem sempre viu Adail. Mudou o mundo e mudou Adail. Mas nem o mundo nem Adail mudaram o suficiente para encolher a distância entre o carregador e o avião. Porque, aos 62 anos, Adail segue sendo o que o doutor grita lá da porta do desembarque: “Ô, negão”. E o mundo segue sendo do doutor. Mas Adail, ah Adail, Adail não desistiu de voar. * * * – O senhor não queria entrar no aeroporto. Por quê? – Achava que não era serviço de homem. Passei mais de ano me escondendo no aeroporto. Aí me acostumei e virei vagabundo. – Vale a pena viver perto dos aviões? – Fiz casa que não é boa mas é minha, criei três filhos… Tudo na base da aviação.
Pra mim, a aviação caiu do céu! – O que é chato nessa vida? – Me chateia quando aquele povo exibido que vai pros Estados Unidos desembarca falando mal do Brasil. Aí é lacaio, né. Porque eu não conheço outros lugares, mas sei que não tem país melhor que o Brasil. Não conheço, mas ouço tudo o que falam no aeroporto. Os Estados Unidos podem ser cheio das democracia, mas vai ver como tratam os negão lá, vai ver. – E como os fregueses o chamam? – Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, Negão!” Eu acho até que é carinhoso. – O senhor chama eles de doutor? – Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor… – É esse o segredo do serviço? – Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque se eu fosse um cara importante não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar. – Qual o lugar mais longe que foi na vida? – Criciúma (em Santa Catarina). O vizinho me levou pra comprar roupa. Cheguei ali na divisa e disse: “Bah, saí fora do Brasil!” – O que acha mais bonito no avião? – A decolagem. Sempre que eu posso subo lá em cima e dô uma espiada. Até hoje não achei explicação. Parece que não vai sair do chão, aí levanta e fica parecendo um passarinho. Umurubu. – O senhor quer voar? – É o meu sonho. Mas perdi a esperança. Pobre não voa. – Queria voar para onde?
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