Deixo minhas lentes de contato de molho durante a noite numa xícara de café e acordo de manhã para descobrir que o Marido de Pavio Curto as bebeu de madrugada. Pela segunda vez em menos de umano. — Mas eu disse que elas estavam ali — protesto. — Você não pode querer que eu me lembre desse tipo de detalhe — ele diz. — E eu não vou tentar vomitar desta vez. Use os óculos. Tom está sentado na cama, com os cabelos desalinhados, usando um pijama listrado amassado abotoado até o colarinho e os braços cruzados na defensiva. Estou com um pijama de flanela, comalguns botões faltando. Eu me pergunto: quando os dois começam a usar pijama na cama significa o começo ou o fim de alguma coisa num relacionamento? Ele se estica para empilhar três livros na mesa de cabeceira por ordem de tamanho e para alinhar a caneca que antes continha minhas lentes de contato de modo equidistante do abajur que está do outro lado. — Eu simplesmente não entendo por que você põe as lentes numa xícara de café. Há milhões de pessoas em todo o país que realizam o mesmo ritual todos os dias, e elas nunca recorrem a uma caneca para guardar algo tão essencial à sua rotina diária. Isso é uma forma de sabotagem, Lucy, porque você sabe que existe o risco de eu querer beber alguma coisa durante a noite. — Mas às vezes você não tem vontade de viver um pouco perigosamente? — pergunto. — De tentar o destino um pouco, sem machucar ninguém que você ama no processo? — Se eu achasse que havia questões filosóficas não respondidas por trás disso, em vez de uma garrafa vazia de vinho e uma consequente amnésia, estaria preocupado quanto ao seu estado mental. Eu poderia ser mais compreensivo se você demonstrasse alguma preocupação comigo. Isso podia ser uma emergência — responde ele, petulantemente. — Mas da última vez não deu em nada — eu o interrompo rapidamente, para tentar impedir a inevitável queda na hipocondria. Resisto à vontade de dizer que no momento há coisas mais importantes, como a necessidade de deixar nossos filhos na escola na hora certa no primeiro dia de aula do semestre. Tenho uma vaga lembrança de ter deixado uma lente de contato cair no carpete há uns dois meses e começo a examinar meticulosamente o chão do meu lado da cama. Numa inspeção quase casual, encontro, não necessariamente nesta ordem: uma lente que o caçula tirou dos meus óculos na semana anterior, um biscoito comido pela metade de tanto tempo atrás que está petrificado e uma multa de estacionamento não paga que rapidamente enfio de volta embaixo da cama. — Você precisa de alguns sistemas de organização, Lucy — diz o Marido de Pavio Curto, sem saber o que está acontecendo a poucos metros de distância dele. — Com eles, a vida fica muito mais simples. Enquanto isso, por que você não usa os óculos velhos? Você não precisa impressionar ninguém, afinal. — Ele sai da cama e vai para o banheiro para a próxima parte de seu ritual matinal. Uma década atrás, no sopé do nosso relacionamento, esse tipo de conversa teria sido qualificado como uma briga completa, uma daquelas violentas erupções que tinham o potencial de acabar comtudo.
Mesmo há cinco anos, aproximadamente na metade do nosso casamento, seria considerado umdesacordo significativo. Agora não passa de uma nota de rodapé na narrativa da vida de casados. Enquanto subo a escada até o último andar para acordar as crianças, penso que relacionamentos são como pedaços de elástico nos quais uma pequena tensão é permitida, até desejável, caso se queira que as duas pontas se mantenham unidas. Se ficam soltos demais, tudo desmorona, como aqueles casamentos em que as pessoas dizem que nunca discutem e então, da noite para o dia, se transformamem nada, nem mesmo recriminação. Se há tensão demais, eles se rompem. É tudo uma questão de equilíbrio. O problema é que normalmente não há um aviso sobre quando se está prestes a perder esse equilíbrio. Digo um palavrão ao tropeçar num modelo de Lego deixado na escada que se parte em pedacinhos, unindo forças a alguns carrinhos de brinquedo e a um braço que costumava pertencer a um boneco. Meu queixo vai parar no último degrau e, enfiado ao lado do carpete, vejo um minúsculo sabre de luz, de menos de um centímetro de comprimento, que pertence a um dos bonecos de Guerra nas Estrelas de Joe. Havia desaparecido fazia uns dois meses em circunstâncias suspeitas depois que nosso agitado bebê, Fred, montou uma operação secreta no quarto do irmão nas primeiras horas da manhã. Quantas horas perdi procurando por esse sabre de luz? Quantas lágrimas foram derramadas por causa de seu desaparecimento? Por um breve instante, descanso a cabeça no tapete, sentindo algo parecido com satisfação. Paro do lado de fora do quarto de Sam e Joe e empurro a porta devagarinho. Sam, o mais velho, está na pole position, dormindo na cama de cima do beliche. Joe está na cama de baixo, e Fred está no chão. Como um club Sandwich. Não importa quantas vezes eu leve Fred para seu próprio quarto durante a noite, ele tem um GPS inato que o leva ou de volta ao quarto dos irmãos ou para nossa cama, onde frequentemente o encontramos dormindo de manhã. Fico olhando maravilhada para meus filhos dormindo, com os braços e as pernas atravessados nas camas e no chão, e minha irritação desaparece. Durante o dia, eles estão em movimento contínuo, e é impossível congelar qualquer instante por mais que alguns segundos. Com eles dormindo, há a possibilidade de observar a exata inclinação de um nariz ou uma constelação de sardas. Toco a mão de Sam para acordá-lo, mas, em vez de ele acordar, seus dedos envolvem os meus. Seus relógios internos ainda estão em ritmo de férias. Sou instantaneamente transportada de volta para aquele primeiro instante logo depois que ele nasceu, quando fez isso pela primeira vez e aquela onda absoluta de amor maternal transbordou, e eu soube que nada mais voltaria a ser o mesmo. Sam tem quase 9 anos. Não consigo mais levantá-lo há mais ou menos dois anos. Está grande demais para sentar no meu colo, e não tenho mais permissão de beijá-lo quando o deixo na escola.
Logo estará completamente perdido para mim. Claro que haverá reservas de afeição que ele poderá usar durante os sombrios anos da adolescência, quando nos verá com todos os nossos defeitos. Observando-o deitado na cama, com o já desajeitado corpo de pernas e braços compridos, com a adolescência logo ali, dou-me conta de que estou olhando para os últimos vestígios de infância. Tenho certeza de que é por isso que algumas mulheres nunca param de ter filhos, para que sempre haja um receptáculo desejoso de seu amor. Joe se vira primeiro. Tem o sono leve, como eu. — Quem vai ajudar o Major Tom? — ele pergunta, antes de abrir os olhos, e sinto meu coração afundar um pouco. Tocar David Bowie no caminho para Norfolk durante as férias de verão havia parecido uma grande evolução no duro mundo do entretenimento automobilístico. Pensamos que a qualidade narrativa das letras das músicas apelaria para a imaginação dos meninos. E apelou mesmo. Mas nunca passamos da primeira faixa de Changes. — Por que o foguete deixou ele? — Joe pergunta agora, espiando de debaixo do edredom. — Ele se soltou — respondo. — Por que não tinha outro piloto para ajudar ele? — Joe pergunta. — Ele queria ficar sozinho — eu digo, acariciando seus cabelos. Aos 5 anos, Joe é feito à minha imagem, com os cachos castanhos revoltos e os olhos verde-escuros, mas o temperamento foi herdado do pai. — O foguete deixa ele para trás? — Sim, mas tem uma parte dele que quer fugir — explico. Joe faz uma pausa. — Mamãe, você quer fugir da gente às vezes? — ele pergunta. — Às vezes, mas só para o quarto ao lado — respondo, rindo. — Não tenho planos de ir para o espaço. — Mas às vezes quando eu falo com você, você não escuta. Onde você está nessas horas? A essa altura, Sam desceu sua escada e já está vestindo o uniforme da escola. Peço a Joe que faça o mesmo. Fred, de 2 anos e meio, será vestido no último minuto, porque no instante em que viramos as costas ele simplesmente tira tudo.
Volto ao banheiro atrás de Tom — o marido, não o major. Houve um tempo em que as abluções de Tom me fascinavam, mas muito embora elas ainda sejam impressionantes em sua meticulosidade, a familiaridade diminuiu a sensação de novidade. Resumidamente, ele entra no banheiro e prepara tudo o que precisa para fazer a barba: pincel, espuma e lâmina ficam sobre uma mesinha ao lado da pia. Ele abre a torneira fria da banheira por exatamente três minutos e depois desvia a atenção para a torneira quente. Dessa forma, diz ele, não há desperdício de água. Sempre argumentei que a lógica funcionaria melhor ao contrário, mas ele nunca aceitou o desafio. “Por que mudar o que está funcionando, Lucy?” Enquanto prepara o banho, liga o rádio e escuta o programa Today. O processo do banho só é interessante pelo fato de que ele passa uma quantidade desmedida de tempo esfregando o sabonete com a esponja. Normalmente, durante essa parte dos procedimentos ele conversa. Mesmo depois de estarmos morando juntos por uns dois anos, eu às vezes ainda avaliava mal o momento em que brincar era permitido. Interrompê-lo na hora errada podia levar a humores difíceis de serem dispersos, mas o timing perfeito o fazia expansivo e generoso. Assim, a dança do casamento foi se aperfeiçoando. Enquanto vasculho as gavetas do banheiro, tento explicar que os óculos azuis-claros do Serviço Nacional de Saúde dos anos 1980 não são o tipo de acessório que se usa para levar os filhos à escola, mas ele já se retirou para a fase seguinte, que envolve a submersão até a ponta do nariz e o fechar dos olhos embaixo d’água numa pose meditativa da qual nenhum volume de gritos infantis é capaz de tirá-lo. Agora ele está fora de alcance, e sou deixada sentada numa cadeira com as pernas cruzadas, os cotovelos apoiados nos joelhos, a palma da mão no queixo, conversando sozinha, uma metáfora do nosso relacionamento. Sou brevemente transportada de volta para a primeira noite que passei com Tom no apartamento dele em Shepherd’s Bush, em 1994. Acordei de manhã, decidi ir embora rapidamente e saí pé ante pé procurando pelas minhas roupas no quarto. Como não consegui encontrá-las, refiz meus passos até a sala de estar, porque me lembrava com alguma clareza de que havíamos passado um bom tempo no sofá antes de finalmente irmos para o quarto. Mas as roupas não estavam lá. Eu estava completamente nua, e então me lembrei de alguma menção a colegas de apartamento. Corri de volta ao quarto na ponta dos pés para não acordar ninguém e comecei a me perguntar se aquilo era alguma brincadeira. Ou se, apesar das recomendações em contrário, havia um lado sombrio de sua personalidade que envolvia manter cativas mulheres que dormiam com ele no primeiro encontro. Quando voltei para o quarto, ele havia desaparecido, e realmente comecei a entrar em pânico. Chamei pelo nome dele, mas não ouvi resposta. Então, vesti cuidadosamente um velho roupão que encontrei atrás da porta para fazer uma busca em todos os cômodos. Quando entrei no banheiro, dei um berro.
Ele estava debaixo d’água, de olhos fechados, completamente imóvel. Pensei que tivesse caído no sono e se afogado. Tive uma grande sensação de perda por nunca mais poder fazer sexo com aquele homem de novo, já que tinha sido tão bom. Então pensei em ligar para a polícia e tentar explicar o que havia acontecido. E se eles pensassem que eu estava envolvida de alguma maneira? Todas as provas apontariam nessa direção. Por um instante, pensei em fugir. Então lembrei que estava sem roupa. Lentamente, tentando manter a respiração sob controle, fui até a banheira, olhei fixamente para ele durante alguns segundos, notando o tom pálido de sua pele, e apertei bem forte com o indicador na parte macia entre as sobrancelhas para ver se ele estava consciente. O alívio da força da cabeça dele empurrando minha mão de volta foi rapidamente substituído por choque quando ele agarrou meu braço com tanta força que pude ver a pele ficando branca entre seus dedos e gritou: — Meu Deus! Você está tentando me matar? Porque eu achei a noite muito boa. — Achei que você tivesse se afogado — falei. — Não consegui encontrar minhas roupas. Ele apontou para uma cômoda no baú do lado de fora do banheiro, onde minhas roupas estavamdispostas numa pilha bem-arrumada. A calcinha do dia anterior, adoravelmente dobrada no meio em cima de um sutiã que teve dias melhores e uma velha Levi’s 501. — Você fez aquilo? — perguntei, nervosa. — Atenção aos detalhes, Lucy — ele disse. — Isso é tudo. — E voltou a afundar debaixo d’água. A conversa tinha acabado, mas não dava para dizer que eu não soubesse o que viria pela frente. E, sim, nós voltamos para a cama. Enquanto ele se esparrama no banho e eu escovo os dentes, faço um inventário crítico do corpo dele, começando por cima. Os cabelos ainda estão escuros, quase negros, com uma leve calvície, mas apenas para olhos atentos. Rugas de sorriso e de preocupação brigam pela supremacia ao redor dos olhos. Um leve franzido entre as sobrancelhas que aumenta e diminui dependendo do progresso de seu projeto da biblioteca em Milão. Está com um pouco de queixo duplo, porque come mais quando está preocupado. Há menos ângulos, está com a barriga e o peito mais macios, mas surpreendentemente encantadores.
Preciso me lembrar de lhe dizer isso. É um homem confiável, que promete conforto e sexo convencional inspirado num repertório bem praticado. É atraente, dizemminhas amigas. Tira a cabeça da água e pergunta o que eu estou olhando. — Há quanto tempo nos conhecemos? — pergunto. — Há mais ou menos 12 anos — ele responde. — E três meses. — Em que ponto do nosso relacionamento nós dois começamos a usar pijama na cama? Ele pensa cuidadosamente na pergunta. — Acho que foi no inverno de 1998, quando estávamos morando na zona oeste da cidade e acordamos numa manhã com a janela congelada do lado de dentro. Na verdade, você costumava pegar o meu emprestado. Ele tinha razão. No começo, eu havia adotado uma abordagem íntima e fácil de compartilhamento que acreditava refletir a profundidade e a amplitude do nosso relacionamento. Mas depois do primeiro ano juntos, ele me fez sentar com ele na cozinha e me disse que aquilo não funcionaria se eu não parasse de usar a escova de dentes dele. — Você tem noção de quantos germes temos na boca? Qualquer dentista de respeito vai dizer que temos mais na boca do que na bunda. A saliva transmite várias doenças. — Não acredito — falei, sem saber o que dizer. — Hepatite, AIDS, ebola… todas podem ser transmitidas oralmente — ele insistiu. — Mas você as pegaria de qualquer maneira, porque fazemos sexo — racionalizei. — Não se estivermos usando camisinha. Quando você lambe as lentes de contato antes de botar nos olhos, é como se as estivesse passando na bunda antes de usá-las. Aparentemente, aquela conversa vinha se formando fazia algum tempo. Concordei com ambas as questões, e elas nunca mais voltaram a ser um problema. Eu ainda uso a escova de dentes dele e lambo minhas lentes de contato, mas nunca na frente dele, embora às vezes ele passe o dedo sobre as cerdas à noite e me olhe com ar desconfiado, imaginando por que estão úmidas. — No que você estava pensando embaixo d’água? — pergunto com sincera curiosidade. — Eu estava calculando quanto tempo economizaríamos de manhã se deixássemos os sucrilhos nas tigelas na noite anterior.
Poderíamos ganhar até quatro minutos — ele diz, antes de afundar novamente. Mas reaparece depois de alguns segundos para anunciar, como forma de pedido de desculpas pela explosão de mais cedo, que vai levar Fred para a nova creche. — Eu gostaria muito de levá-lo — diz ele. — Além disso, você pode se perder. E eu fico contente, porque, embora devesse sentir alívio por Fred estar começando a ir à creche e pela primeira vez em oito anos eu tenha a perspectiva de algum tempo para mim mesma, o dia está marcado por uma pesada sensação de perda, e eu sei que posso chorar. Então ocorre que, meia hora mais tarde, eu me flagro caminhando pela calçada com a mão no ombro de Sam de um jeito que espero que pareça maternal. — Estamos atrasados? — ele pergunta, já sabendo a resposta, porque exatamente quando estávamos prestes a sair pela porta Joe passou correndo pela mesa da cozinha e derrubou uma caixa de leite sobre o uniforme dele e minhas calças jeans, provocando um crítico atraso de dez minutos. Apesar dos planos cuidadosos, dos almoços preparados na noite anterior, do uniforme dobrado sobre as cadeiras, dos sapatos alinhados ao lado da porta da frente, da mesa do café já deixada arrumada, das escovas de dentes deixadas ao lado da pia da cozinha, não se pode desconsiderar desastres imprevisíveis. Chegar à escola na hora é um processo de sintonia tão fina como o controle de tráfego aéreo no aeroporto de Heathrow: qualquer leve mudança pode levar todo o sistema ao caos. — Nada desastroso — respondo. Fico absolutamente impressionada com o fato de que eu costumava conseguir aprontar o segmento principal do programa Newsnight em menos de uma hora, mas seja tão singularmente incapaz de vencer o desafio de aprontar meus filhos para a escola todas as manhãs. Parece inacreditável que eu conseguisse convencer ministros de Estado a ir ao estúdio tarde da noite para serem fritos por Jeremy Paxman, mas não consiga convencer meu filho mais novo a ficar vestido. — Deus é maior que um lápis? — pergunta Joe, que se preocupa demais para um menino de 5 anos. — Se não é, ele poderia ser comido por um cachorro? — Não pelo tipo de cachorro que anda por essas ruas — respondo, num tom tranqüilizador. — Eles são muito bem-educados. E é verdade. Estamos caminhando pelo território de maior renda per capita da região noroeste de Londres. Não há garotos pálidos de cabeças raspadas passeando com pit bulls por aqui. Não há apostas esportivas. Não há merendas industrializadas. Não há gravidez adolescente. Estamos no coração da terra dos banquetes. É o primeiro dia de aula do semestre, e os padrões já decaíram. Caminhando pela calçada, as crianças complementam pedaços de torrada com punhados de cereais tirados de alguns daqueles pacotes de sabores variados. Minha visão está reduzida pela miopia a pinceladas extremamente impressionistas, e me lembro de um momento duas semanas atrás numa praia em Norfolk, quando fiquei parada diante do mar do Norte com um chapéu de lã enfiado até as sobrancelhas e um cachecol enrolado no pescoço até pouco abaixo dos olhos.
Um vento leste, incomum para a época do ano, soprava em meu rosto, fazendo os olhos lacrimejarem. Eu precisava ficar piscando para não permitir que a vista borrasse. Era como se eu estivesse olhando através de um prisma. Bastava focar o olhar numa gaivota ou em alguma pedra particularmente bonita, que a cena se partia num espectro de diferentes formas e cores. Ocorreu-me então que era exatamente assim que eu me sentia em relação a mim mesma. De alguma forma, ao longo dos anos eu havia me fragmentado. Agora, diante da perspectiva de meu filho mais novo começar a frequentar a creche três manhãs por semana, está na hora de me reconstruir, mas não lembro mais como todas as peças se encaixam. Tem o Tom, as crianças, a minha família, os amigos, a escola, todos esses elementos diferentes, mas nenhum todo coerente. Nenhum fio ligando tudo. Em algum lugar no redemoinho doméstico, eu me perdi. Consigo ver de onde vim, mas não estou segura quanto a para onde estou indo. Tento me agarrar ao quadro maior, mas não consigo mais lembrar o que ele deve ser. Desisti do emprego que amava como produtora de um telejornal oito anos atrás, quando descobri que jornadas de 13 horas e maternidade eram uma parceria instável. Quem quer que tenha sugerido que trabalhar em tempo integral e ter filhos significava ter tudo não era muito bom em matemática. Sempre havia algum dos lados no negativo. Incluindo nossas contas bancárias, porque não sobrava muito depois que pagávamos à babá. E, além disso, eu sentia muita falta de Sam. O que eu deveria fazer aqui e agora, com o pátio da escola se aproximando, era pensar em algumas respostas padrão para aquelas bobagens amigáveis que marcam o início de um novo ano escolar. Algo resumido, porque a maioria das pessoas não está realmente interessada nos detalhes. “O verão foi difícil, culminando numa desastrosa viagem de férias a um acampamento em Norfolk, porque estamos com pouco dinheiro, durante a qual assumi meu espírito introspectivo atual, reavaliando áreas-chave da minha vida, incluindo — sem uma ordem em particular, porque meu marido tem razão, eu não sei priorizar — minha decisão de parar de trabalhar depois que tivemos filhos, o estado do meu casamento e nossa falta de dinheiro”, eu me vejo dizendo, imaginando as palavras e usando a mão direita para ilustrar a profundidade do meu sentimento. “Ah, e eu contei que meu marido quer que aluguemos a nossa casa e moremos com minha sogra durante um ano até nossa situação financeira melhorar?” As férias foram um divisor de águas, e ambos sabíamos disso. Mas as repercussões eram menos imediatamente evidentes. — Mãe, mãe, você está me ouvindo? — pergunta Sam. — Desculpe, eu estava sonhando acordada — respondo, e ele me pergunta se ele é como um cãoguia. — Algo parecido — eu digo, olhando mais adiante na rua.
Localizo o contorno embaçado de um dos pais da escola caminhando em nossa direção. Ele está falando ao celular e passando os dedos pelos fartos cabelos escuros num gesto que me era familiar do ano letivo anterior. É o Pai Sexy Domesticado, com suas sensatas opiniões sobre o que constitui uma lancheira nutritiva e uma atração pelos cafés matinais das mães. Mas não são essas características que o fixam em minha mente. É a aparência dele e o jeito como ele se move. Algo muito mais primário. Na verdade, quanto menos ele fala, mais me atrai. Mesmo a distância posso reconhecer sua forma. Nessa estranha justaposição de pensamentos aleatórios, de repente me ocorre que, ao aparecer, ele inadvertidamente se tornou parte do quadro mais amplo em que eu estava pensando. Amaldiçoo a roupa que vesti rapidamente: calça de pijama de flanela por baixo de um casaco comprido e desengonçado, no que eu esperava que fosse passar por casual chic numa moda “pijama para sair”. Mas é tarde demais para me esconder atrás das cercas vivas com meus filhos, de modo que confiro disfarçadamente a maquiagem do dia anterior que eu não havia tirado no retrovisor externo de uma caminhonete 4×4. Dou um salto quando o vidro automático desce e alguém se estica por cima do assento do passageiro para perguntar o que estou fazendo. — Meu Deus, você está parecendo um panda—diz a Mãe Gostosa N° 1, minha nêmesis em termos de estilo. Ela abre o porta-luvas, revelando conteúdos típicos de um spa, incluindo meia garrafa de Moêt, uma vela Jo Malone e lenços de remoção de maquiagem. — Como você faz isso? — pergunto, limpando os olhos com gratidão. — Você tem sistemas de organização? Ela parece intrigada. — Não, só empregados — responde. — Teve um bom verão? — pergunto. — Maravilhoso. Toscana, Cornuália. E você? — Ótimo — respondo, mas ela já está olhando para a rua, batucando no volante. — Preciso ir, senão vou me atrasar para minha aula de ashtanga. Aliás, você está vestindo flanela? Que prático. O Pai Sexy Domesticado caminha lentamente pela rua em minha direção. Posso vê-lo acenando e não tenho escolha a não ser falar com ele.
Então percebo que o outro braço está engessado. Ah, que felicidade, um óbvio tema de conversa. — Você quebrou o braço — digo, com um pouco de entusiasmo demais. — Sim — diz ele. — Caí de uma escada na casa de um amigo na Croácia. Ele fica me olhando com expectativa. Então sorri, e ouço a mim mesma falando com uma estranha lentidão. — Deve ter sido muito… relaxante. Só que digo isso com um tom rouco que faz com que eu fale parecido com a apresentadora Mariella Frostrup. O sorriso dele se fecha levemente. Aquilo não estava de acordo com o previsível padrão de gentilezas entre pais que ele estava esperando. — O que pode haver de relaxante em quebrar um braço? Principalmente na Croácia? Sam olha para mim, igualmente perplexo. — Ele tem razão, mãe. — Na verdade, Lucy, é muito… dolorido. — O Pai Sexy Domesticado está imitando minha voz. — E não acho que minha mulher concordaria que seja algo relaxante. Não ando sendo muito útil no momento. Não consigo fazer nada, digitar dói muito. — Ele sorri. De repente, penso nos encontros casuais antes do casamento e suas infinitas possibilidades, e imagens de uma vida anterior invademmeus pensamentos. Meias listradas na altura dos joelhos com os dedos separados, walkmans da Sony, botinhas modernas. Lembro-me de ter comprado um disco do The Cure em Bristol de um garoto que usava uma calça jeans skinny preta muito justa e um casaco de angorá e cheirava a óleo de patchuli. Lembro inclusive da letra da maioria daquelas canções. Lembro-me de um voo para Berlimem que um homem me perguntou se eu queria ir para o hotel com ele e eu aceitei, e então a mulher dele se virou da poltrona da frente e sorriu. Lembro-me de estar apaixonada na universidade por um cara que nunca desfez as malas e tinha três calças jeans Levi’s idênticas e três camisas brancas que revezava todos os dias.
Tom o aprovaria. Por que aquelas lembranças ficaram comigo enquanto outras estão perdidas para sempre? Se é disso que me lembro agora, do que me lembrarei dentro de vinte anos? A menção da super mulher do Pai Sexy Domesticado me traz de volta à realidade, porque nunca pensei nele no plural, e deixo minha expressão com um ar amigável, mas profissional. — E como está ela? Conseguiu descansar? — Ela nunca consegue fazer isso direito, tem muita energia. Escute, você quer tomar um café depois de deixar os meninos? — Ótimo — digo, tentando parecer contida diante daquela inesperada incursão em meus devaneios. Então noto que ele está olhando com ar desconfiado para meus pés. — Você está usando um pijama de flanela embaixo desse casaco? — ele pergunta. — Talvez seja melhor deixarmos o café para outra hora. 2 “Sombras de acontecimentos futuros chegam antes” Apesar das mensagens confusas e das pequenas humilhações, aquele encontro provoca algummovimento geológico dentro de mim. Placas agitadas depois de um longo período de inatividade. De que outra forma explicar os renovados sentimentos de entusiasmo que experimentei ao longo dos dias subseqüentes? Acho que é assim que acontecem os desastres naturais. Uma série de movimentos imperceptíveis no cerne, culminando com uma catástrofe ao final. Sinto-me do mesmo jeito como me sinto quando fumo um cigarro filado enquanto as crianças não estão vendo, reconectando-me momentaneamente com sentimentos de liberação associados com um período diferente da minha vida, em que o prazer estava lá para ser usufruído. Ao longo dos dias seguintes, eu começava o dia com a esperançosa expectativa de encontrar o Pai Sexy Domesticado e então repreender a mim mesma por me sentir irracionalmente decepcionada quando ele não aparecia. Talvez ele esteja trabalhando novamente e a mulher leve os filhos à escola, embora eu saiba que ela tenha um Grande Emprego na Cidade, o que significa que ela precisa estar em sua mesa às 8 horas. Talvez eles tenham uma au pair que esteja levando as duas crianças para a escola. Dou-me o direito de me entregar a um inocente devaneio e o imagino na British Library fazendo uma pesquisa para o livro que está escrevendo. Ele poderia fazer isso com um braço engessado, mas quase certamente não conseguiria digitar. Ele então me ditaria, e eu faria a digitação. Ele ficaria sentado numa velha poltrona confortável, com os antebraços descansando nos braços da poltrona, puxando pedaços de estofamento durante os momentos silenciosos em que ficaria me contemplando. Passaríamos longos dias trancados no escritório dele (as crianças estão fora deste quadro), eu lhe ofereceria conselhos precisos e moldaria a estrutura de sua biografia. Então eu me tornaria indispensável, ele não conseguiria trabalhar sem mim. Não que eu soubesse sobre o que ele está escrevendo até procurar no Google numa noite depois de as crianças lerem ido dormir e descobrir que ele está atrasado para entregar um original sobre a contribuição da América Latina para o cinema internacional. Muito específico. E um assunto sobre o qual eu não sei nada. De modo que aí termina minha fantasia.
De forma benigna. — Com licença, a senhora gostaria de beber algo? Quer pedir alguma coisa? — De repente, tomo consciência de um garçom me dando tapinhas no ombro. Ele está usando um avental branco comprido, impecavelmente limpo e bem passado, amarrado com várias voltas em torno da cintura e um laço benfeito na frente, logo acima do estômago. Penso na guerra que está sendo travada emminha lavanderia, onde as pilhas de lençóis e camisas por passar estão ameaçando sitiar a cozinha. Nossa faxineira polonesa, que vai lá em casa uma manhã por semana, está artrítica demais para dar conta de qualquer coisa além de uma apressada tirada de pó e abandonou a pilha de roupas à sua própria sorte há meses. Penso em perguntar onde ele manda lavar suas roupas ou se ele toparia lavar as minhas. Será que dormir em lençóis macios e frios como cobertura de bolo industrializada devolveria meu equilíbrio? Resisto a um impulso de pousar a cabeça em seu avental e fechar os olhos. São esses os tipos de questões domésticas que costumavam fazer as amigas de minha mãe saírem em busca de Valium. Elas não importam mais, digo a mim mesma. De qualquer maneira, há novas armas no arsenal da vida doméstica: camisas fáceis de passar, fraldas descartáveis e massas congeladas. Há muito tempo a goma havia sido banida, junto com refrigerantes feitos em casa e o costume de bater tapetes. Além disso, o caos doméstico é uma condição genética. Sabiamente, minha mãe o transformou numa declaração intelectual, e eu cresci ouvindo que uma casa muito arrumada era antifeminista. As mulheres deveriam passar mais tempo sintonizando o cérebro e menos tempo organizando o armário de roupa de cama se quisessem romper os laços domésticos que as impediam de conquistar seus potenciais intelectuais, ela costumava me dizer quando eu era criança. O garçom me incita a olhar para uma longa e confusa lista de drinques. Todos prometem um amanhã melhor e têm nomes como “Sonhos Ensolarados” ou “Arco-Íris de Otimismo”. Não tem nenhumchamado “Trégua Desconfortável” ou “Tempestade em Formação”. Sinto-me uma estranha numa terra estrangeira e peço uma cerveja de gengibre, em parte porque parece familiar, mas principalmente porque as letras são tão pequenas que não consigo ler a lista de ingredientes das bebidas. Mais um ano, e vou precisar de bifocais. Estou esperando num clube privado do Soho para passar uma rara noite com minhas últimas amigas solteiras. Dentro dos antigos salões de jantar georgianos, as paredes são pintadas dc carmim-escuro, e mesmo sob a luz suave fornecem um brilho caloroso, uma intimidade convidativa e indiscrições sussurradas. As pessoas se agitam feito mariposas, em busca de rostos familiares. Protegidas pelo álcool, não parecem ter dúvidas quanto à qualidade de sua felicidade. Estou sentada sozinha no meio de um grande sofá imitando o estilo regência, com braços de madeira e estofado de veludo desbotado. De vez em quando, algumas pessoas se aproximam e perguntam se eu posso ir para um canto para que possam se sentar, mas minha necessidade de ficar sozinha transcende qualquer desejo de ser afável, e digo-lhes que estou esperando minhas amigas.
Sei que ainda vai demorar um pouco para alguém chegar, mas queria fugir do caos da hora do banho e da hora de dormir, então disse a Tom que precisava chegar às 19h30, só para poder ficar um pouco comigo mesma. Às vezes, interpreto tantos papéis num único dia que acho que estou sofrendo de uma forma de esquizofrenia materna. Cozinheira, motorista, faxineira, amante, amiga, mediadora. É como estar numa pantomima, sem saber se devo ser a parte de trás de um burrico ou interpretar o papel principal. Olhando para o relógio e bebendo calmamente minha cerveja de gengibre orgânica Luscombe, penso nas grandes falhas de sistemas que devem estar acontecendo em casa. Imagino Fred se recusando a sair do banho e se desvencilhando das mãos de Tom como uma enguia escorregadia. Seus irmãos vão se agarrar às pernas de Fred e gritar feito capetas. Tom vai xingar baixinho, e então os dois mais velhos ficarão repetindo “O papai falou palavrão” em tom provocativo até Tom perder a paciência. Amanhã ele certamente vai me responsabilizar pela anarquia. Mas há toda uma noite entre agora e amanhã. Muito embora seja a primeira vez que eu saia em quase um mês, não consigo deixar de me censurar. A culpa é a planta trepadeira da maternidade. As duas são tão inexoravelmente interligadas que é difícil saber onde termina uma e começa a outra. Meu irmão Mark, que é psicólogo, diz que as mães contemporâneas são vítimas inocentes do debate natureza versus educação. Segundo Mark, somos sobrecarregadas pelas recentes tendências do pensamento psicoterapêutico, que rejeita a idéia de que as crianças nascem com um conjunto único de características e, em vez disso, depositam a responsabilidade de todos os aspectos do desenvolvimento totalmente sobre os nossos ombros. “Assim, as mães culpam a si mesmas por qualquer falha na personalidade de seus filhos”, diz ele. “Jogos estimulantes, Bebê Einstein, lápis especiais, tudo é parte da crença de que se pode modelar os filhos como argila, quando a verdade é que, desde que se evitem os extremos, o resultado da criança será mais ou menos o mesmo.” Quero acreditar nele, mas quando penso no caos que é a vida dele, sempre volto à nossa infância em busca de respostas. — Importa-se se eu me sentar aqui? — pergunta um homem de aparência cansada levando uma pilha de papéis soltos embaixo do braço. — É só por meia hora. — Como fiquei em dúvida, ele continuou em tom exasperado: — Eu só quero ficar aqui o bastante para não ter de botar meus filhos na cama. — E então sei que ele está dizendo a verdade. Um companheiro desertor do front doméstico. Tiro um jornal da bolsa para lhe dar a ilusão de privacidade e uma chance de descansar com seus próprios pensamentos. Quase por impulso, decido voltar a fumar direito e pergunto ao homem se ele poderia guardar meu lugar por um instante.
Ele assente desanimadamente com a cabeça sem dizer palavra. Faz tanto tempo desde a última vez em que comprei um maço de cigarros que me flagro remexendo os bolsos do casaco atrás de troco quando vejo quanto eles estão custando. Então não consigo lembrar como usar a máquina. É para botar o dinheiro primeiro ou escolher a marca antes? No final, aperto o botão errado e acabo com um pacote de John Player. Acendo o primeiro cigarro e, muito embora ele tenha um gosto terrível e eu me sinta tão tonta que ache que vá desmaiar, continuo tragando teimosamente, como que para provar algo a mim mesma. Deveria ser como andar de bicicleta, mas não é. Realmente preciso sair mais. Como uma menina tentando terminar um cigarro antes de a professora me ver, eu me pego fumando tão rápido que a ponta fica desagradavel-mente quente, e a fumaça aumenta em volta da minha cabeça. Começo a tossir. Através da nuvem de fumaça, vejo a Amiga com a Improvável Carreira de Sucesso circulando pelo salão ao lado procurando por mim. Em vez de acenar ou chamar por ela, fico observando maravilhada enquanto ela vai de mesa em mesa olhando para os rostos e às vezes parando para cumprimentar alguém. A tranquilidade de Emma me espanta. Ela está usando uma calça skinny de cintura baixa reta Sass & Bide, botas de couro na altura dos joelhos e um fantástico top prateado comfranjas tão compridas que formam uma espécie de onda atrás dela. Mas não é apenas o que ela está vestindo, embora seja certo que o efeito mereça atenção. É mais a forma como ela ocupa o espaço ao seu redor com tanta autoridade. Da mesma maneira que não é apenas a fumaça que me deixa invisível. Nem o fato de que estou usando um casaco de couro da mesma cor do sofá, de modo que me fundo com a mobília. — Lucy — ela se ilumina, sentando-se ao meu lado. — Finalmente encontrei você. — As franjas finalmente se acalmam enquanto ela olha para os copos vazios à minha frente. — O que você está bebendo? — pergunta. — Cerveja de gengibre — respondo.
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