EU SOU AQUELA QUE, quando cruza a sala a caminho da xerox ou levanta para pegar café na garrafa térmica, ouve dois colegas do escritório falando em voz supostamente baixa: “Entre a Tu e a morte, quem você escolheria?” Eu sou o que todo mundo chama de mulher feia. Não muito feia, tipo de mulher que, segundo alguns, tem lá os seus encantos. Cansei de ler que Cleópatra era muito feia, e ainda assim teve Júlio César e Marco Antônio e mais centenas de homens que quis. Mas claro que ser rainha devia facilitar um pouco as coisas. Nas festas de fim de ano da empresa, quando todas as garotas ganham algum prêmio, A Melhor Bunda, A Melhor Boca, Os Melhores Peitos, As Melhores Coxas e outros reconhecimentos que não dependem de dedicação ou esforço — só de Deus e, eventualmente, de um professor de ginástica —, eu sou aquela que nunca leva nada. O Melhor Pescoço já me deixaria satisfeita. Ou então As Melhores Orelhas. O Melhor Nariz eu jamais ganharia, o meu é um tanto grande para os padrões da sociedade atual. Talvez as coisas fossem diferentes se eu tivesse nascido na época da Cleópatra. Eu sou aquela que muda o cabelo e sempre fica pior, que sai de roupa nova e ninguém repara, que passa festas inteiras fingindo que dança com os amigos, quando na verdade está dançando sozinha. O que poucos sabem é que, para mim, tudo isso tem uma finalidade científica: já faz algum tempo que estudo a sexualidade da mulher feia, assunto que, até onde posso lembrar, jamais foi abordado pelas revistas femininas, pelos programas para donas de casa no meio da tarde, pelos livros de auto-ajuda. É importante deixar claro que o objeto das minhas observações sou eu mesma, embora existampontos em comum entre as experiências aqui descritas e as de outras mulheres, todas feias, evidentemente. Histórias que ouvi desde pequena nas conversas da minha família, nas confidências das amigas, nas vezes em que escutei sem querer e quando fiz força para escutar, nos banheiros públicos, nos ônibus estourando de gente e nos bares lotados de moças e velhas tristes. Os capítulos a seguir se referem a tudo isso e me levaram a concluir, ao fim do meu estudo, que a mulher feia não é apenas uma deformação da estética. A mulher feia é um estado de espírito. 2. AS TESES DA MULHER FEIA 2.1 O nome OS PAIS DE uma menina recém-nascida não podem imaginar que um dia ela e transformará em mulher feia. Mas talvez seguindo algum instinto, eles dificilmente darão à filha um nome bonito. Não existe mulher feia chamada Nicole e raramente uma delas atenderá por Júlia, Letícia, Bárbara, Yasmim. Em compensação, são incontáveis as Crisleines, Rosineides, Greicelanas, Claudiomaras e todos os nomes que unem outros dois, ou até três, num único, e inédito, substantivo próprio. Eu mesma fui registrada como Jucianara e, nas vezes em que reclamei com a minha mãe por me chamar assim, ela respondeu: —Não poderia haver nome que combinasse mais com você. 2.2. A criação Começo este capítulo ignorando minha infância por considerar que toda criança é bonita, embora não parecesse ser essa a opinião de meus colegas, amigos, parentes em geral, irmãos e pais.
Minha avó materna não cansava de elogiar minha meiguice, ao mesmo tempo que falava da beleza dos outros netos. Hoje entendo isso como um prêmio de consolação, semelhante à minha maior glória escolar, quando fui coroada Miss Simpatia. Categoria de premiação que conta muito mais com a compaixão dos jurados que com os atributos das concorrentes. Saí da infância levando todos os quilos que deveriam ter ficado nos parques e pracinhas por onde pulei e corri. Muitos se juntaram àqueles durante o meu desenvolvimento e, dos onze aos dezessete anos, posso dizer que aumentei muito mais em volume do que em estatura – padrão que conservaria ao longo da vida. Minha pele, meus cabelos, minha boca, minhas pernas nunca se pareceram com essas mesmas partes que, desde muito cedo, vi nos comerciais de sabonetes, cremes e shampoos. E ainda que, eventualmente, eu aplicasse os tais produtos, isso nunca melhorou minha aparência. Meu cabelo continuou indomável, crescendo para cima e para os lados. Minhas pernas não ficaram longas e lisinhas. Meus seios, que de incipientes logo passaram a inconvenientes numa época em que o silicone ainda não dominava o mundo, continuaram sofrendo a ação da gravidade dia após dia. Finalmente, minhas espinhas não desapareceram com os cosméticos oleosos que deveriam me deixar mais bonita. Talvez tenham mesmo aumentado e se tornado resistentes a todos os tipos de tratamentos, verdadeiras espinhas-mutantes, como eu as chamava. Complementando o quadro, um guarda-roupa sem nenhuma influência da moda determinava o meu estilo. As roupas escolhidas pela minha mãe, sempre calças e camisas, com certeza cairiam melhor em qualquer um dos meus irmãos. As demais eram doadas por uma prima mais velha, o que me obrigava a andar sempre um outono/inverno/ primavera/verão atrás das tendências em uso. Se as mulheres desfilassem pantalonas, eu estaria com as calças justas que minha prima não queria mais. Quando as garotas vestissem minissaias, eu, qual uma muçulmana radical, me cobriria com longas saias vindas diretamente da estação passada. Preciso acrescentar que o fato de a minha família de classe média baixa não ter condições financeiras ou mesmo informação para permitir que eu me vestisse com mais acerto não contribuiu, decisivamente, para piorar minha aparência. Lembro de uma colega de aula muito feia, Andremara, filha do dono de uma revenda de automóveis, que a cada dia desfilava modelos vindos diretamente das lojas que eu mais admirava. Longe de valorizar o investimento do pai, as roupas apenas realçavam o mau aspecto da garota atarracada e baixinha, atraindo, ainda, a inveja das outras colegas. Com exceção de mim, todas mais bonitas. Como eu, todas mais pobres que ela. No dia em que foi à aula vestindo um macacão de inspiração espacial, semelhante ao que uma atriz da novela das sete havia usado alguns dias antes, Andremara recebeu o apelido de Salsichão do Futuro. E, até sair da escola chorando, no fim do ano, nunca mais foi chamada por outro nome. 2.
3. A psiquê Em qualquer situação, a mulher feia é sempre aquela que mais rapidamente se sentirá à vontade. Este fenômeno, observado nos mais diferentes grupos, eventos, encontros e ocasiões sociais, pode ser explicado com a antítese do que o marketing e as revistas de celebridades proclamaram como norma principal nos nossos dias: a mulher feia não precisa cultivar a própria imagem. Tomemos o exemplo de uma festa. Enquanto a mulher bonita chega cercada por certo mistério, economizando nos sorrisos e nas palavras, a mulher feia se desvenda logo na entrada, cumprimentando os convidados um a um e distribuindo sorrisos até para os seguranças. É certo que ela se abraçará a vários dos homens e mulheres presentes, independentemente de seu grau de intimidade com eles, declarando seu apreço e gritando perguntas que exigiriam mais privacidade e proximidade para as respostas. Toda mulher feia se diverte como se cada festa fosse a última. Presença confirmada nas rodinhas, formações criadas para as sem-par e as sem-esperança-deconseguir-um dançarem até o amanhecer, ela não se furta a executar passos de mambo, salsa, samba, macarena, axé, pagode, remelexo, fandango, forró, boi-bumbá, frevo e demais danças populares. Nessa mesma ocasião, a mulher feia mostrará também outra das suas características, a generosidade, atraindo para a rodinha mais mulheres feias que, por alguma razão, ainda se mantenham sentadas. A solidariedade também é um traço marcante da espécie. Sempre disposta a ajudar, a mulher feia ocupa seu tempo livre executando tarefas de diversas naturezas para parentes, amigos, colegas, vizinhos e simples conhecidos: entrar em filas, pagar contas, visitar doentes que nunca viu, resolver pendências em bancos, crediários, companhias de água e eletricidade, lavanderias, sapatarias, lojas e afins, fazer carnês em seu nome para terceiros, acompanhar velórios e enterros de desconhecidos que ela chora como se fossem queridos, desembaraçar documentos, telefonar para obter informações e liberações, pedir graças e cumprir promessas. A não ser nos casos em que, ao fracasso estético, se associar também o amargor da alma, por certo decorrente do primeiro, a mulher feia será sempre descrita como prestativa, simpática, confiável, boa-praça, ser humano exemplar e grande companheira. 3.0 AMADURECIMENTO DA MULHER FEIA 3.1. A descoberta ANTES DE TOMAR consciência da sua feiúra, a mulher feia vai, invariavelmente, descobrir o amor. Fiz esta constatação ainda no pré-primário, primeira experiência de convívio com crianças da minha idade. Mais de trinta anos depois, lembro com exatidão das folhas com desenhos dos alunos coladas pelas paredes, do cheiro da sala — mistura de tinta, cola e uniformes suados —, da professora ruiva que quase não me dava atenção, sempre ocupada com as meninas bonitinhas da classe, da minha melhor amiga, uma gorducha estrábica chamada Lucilei. E dele, Artur. Artur era loiro, com olhos cor de mel, muito mais parecido com um príncipe que o ator mirimcontratado para este papel no quadro “Boa noite Cinderela”, do Programa Sílvio Santos. Numa época em que os Simpsons e Bob Esponja jamais seriam entendidos pelas famílias brasileiras, meus pais, irmãos e eu nos reuníamos na frente da televisão para ver uma garota pobre ganhar bonecas, bicicleta, vitrola, brinquedos e mais o que me parecia uma montoeira de prêmios, só não sei ao certo depois de fazer o quê. Nada que envolvesse pedofilia, acho. Pois Artur, o príncipe, sentava na mesma mesa que eu, a cadeirinha quase encostada na minha, e vê-lo sempre ali me fez perceber que a minha curta vida só tinha sentido perto dele. Comecei a pedir para chegar mais cedo ao colégio, e mais cedo, e mais cedo, a ponto de almoçar de pé, com a merendeira já nas costas, para sair tão logo o primeiro adulto cruzasse os talheres. Geralmente era meu pai, que, contrariado, levantava da mesa às pressas para me deixar na porta da escola ainda fechada.
Eu não me importava de esperar ali, sozinha, até que as crianças começassem a chegar, a maioria delas praticamente empurrada para dentro dos portões. Assim eu veria Artur desde que sua cabeça dourada surgisse na rua, e aproveitaria essa vista até a campainha que anunciava o fim das aulas ser tocada pela diretora da escola, mulher de feiúra indiscutível. E então Artur desapareceria, levado pelas mãos de uma mãe tão loira quanto ele. Mesmo antes de saber que o que eu sentia era amor, cumpri, passo a passo, a sina de uma feia apaixonada. Tentando conquistar Artur, passei a entregar a ele minha merenda, em um primeiro momento, e meus brinquedos, logo depois. Ioiô, bola de gude, pega-varetas, baralho do Batman, anel do Batman, cinto do Batman, dominó, cinco marias. Tudo que coubesse nos meus bolsos ou na minha merendeira foi transferido para Artur. Minha mãe pensou que eu, em um ataque de desatino infantil, tivesse quebrado todos os meus brinquedos e escondido as provas. Neguei até o fim, o que não evitou que ela me batesse com o Vermelhão, um chinelo gasto de borracha vermelha que ficava pendurado permanentemente na área de serviço, à espera de que algum dos filhos saísse da linha. Quando só sobraram algumas bonecas e panelinhas no meu quarto, recorri ao acervo dos meus irmãos para continuar presenteando Artur. Até mesmo uma revista de mulher pelada que Everton, o mais velho, escondia com todo o cuidado na gaveta do meio da cômoda virou propriedade de Artur. Lembro da surpresa do garoto quando recebeu o presente. —Para você. —O que é? —Sei lá, mas o meu irmão adora. Tem mulher pelada. —Mulher pelada? —Como a sua mãe é, sem roupa. Olhe e você vai entender. O resto da tarde Artur passou vendo a revista, por certo imaginando a mãe tão nua quanto a modelo das fotos. Às vezes penso no que pode ter acontecido a partir daí: Artur, de quem nunca mais tive notícias, desprezando as muitas mulheres que com certeza o quiseram, tenha ele continuado como o príncipe loiro do meu passado ou não, para sempre apaixonado pela imagem da primeira mulher de pernas abertas que viu. Em seu imaginário, a mãe. Numa tarde em que a turma fazia colagens com papel colorido, cortei caprichosamente um coração cor-de-rosa e escrevi nele a letra A, a única que eu sabia à época, por sorte a inicial do meu amor. Mostrei para Artur, que olhou de qualquer jeito e continuou fazendo seu próprio trabalho. Insisti. —É para você. —Eu não quero um coração rosa.
Aos seis anos, não sei de onde tirei coragem para dizer. —Mas tem a letra A. de Artur. É porque eu gosto de você. —Não quero que você goste de mim. Você é feia. Artur encerrou o assunto e voltou à sua colagem, enquanto a gorda Lucilei interrompeu o recorte de uma flor toda torta para me informar: —Ele chamou você de feia. Rasguei o coração de papel e não disse mais uma palavra. Em casa, a cabeça apoiada no colo da minha mãe, falei o que atormentava meu coração de carne, igualmente rasgado. —O Artur da minha aula me chamou de feia… Minha mãe permaneceu quieta, a mão alisando os cabelos duros e crespos que me nasciam na testa. —Ele me chamou de feia… —E o que mais você fez na aula hoje? O silêncio constrangido da mãe ficou, em todas as minhas recordações, durante toda a minha história, pela minha vida inteira, como um atestado de feiúra assinado e reconhecido pela autoridade mais competente. Ou mais incompetente, considerando a parte fundamental que os genes dela desempenhavam na minha tragédia estética. —Ele me chamou de feia… —Shhhhhh, querida, a novela começou. A partir de então passei a me classificar como feia, não de maneira depreciativa, mas para retratar minha principal característica, da mesma forma que algumas garotas se descreviam como loiras, ou altas, ou com olhos azuis. Mas claro que eu teria preferido ser uma loira alta de olhos azuis, se me fosse dada a oportunidade de escolher. Estávamos perto do fim do ano e meus progressos com Artur se limitavam às palavras que eu dizia quando entregava a ele meus pertences. Um dia o garoto não foi à aula, e no outro também não, e nemno outro. Três ausências consecutivas que me deixaram ausente de tudo, sem vontade de pintar o ursinho peludo ou recortar o cãozinho mimoso, como queria a professora. Então a mãe de Artur apareceu para contar que a família estava de mudança para o interior e que o filho não voltaria à escola. Ela entregou para a professora ruiva uma grande sacola transparente em que todos os presentes dados por mim se mostravam e se misturavam, e agradeceu a gentileza da amiguinha que havia emprestado tantos brinquedos para Artur. Voltei para casa rebocada por nossa empregada, ela carregando os brinquedos, eu sem vontade de caminhar. Em casa, minha mãe espalhou o conteúdo da sacola no chão e aos poucos minhas antigas propriedades foram voltando a seus lugares nas prateleiras. Assim como as de meus irmãos. —Meu peão! Por que você levou meu peão para a escola? —Meu Matchbox {1} de corrida! Eu apanhei com o Vermelhão porque a mãe achou que eu tinha perdido! Aos gritos, meus irmãos foram reavendo os brinquedos que durante meses eu levei para Artur. Só faltou a revista de mulher pelada, que Artur não devolveu, e pensei na minha sorte, afinal, Se o pequeno pré-onanista não tivesse ficado com a revista, eu sofreria duplamente as conseqüências do roubo, na mão de meus pais e do meu irmão Everton.
Para encerrar o caso, minha mãe me bateu com o Vermelhão, mas só burocraticamente. Ou então fui eu que não senti, com tudo o que a minha alma doía.
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