— Não, vovô — responde o mais jovem. — Mortos não movimentam contas bancárias na Suíça. — Você conseguiu penetrar nos segredos bancários suíços? É difícil acreditar… — duvida o velho. — Mas acredite. Afinal, o senhor me disse que não poupasse esforços nem dinheiro para descobrir o paradeiro dele. — Muito bem… Agora, temos de descobrir para onde ele foi. — Vê este mapa? — diz o neto, desdobrando uma folha de papel que tirou de uma pasta de couro preta. — Ele está aqui — e assinala com o dedo indicador um ponto mínimo no mapa. O velho recoloca os óculos, força a vista, já muita fraca, e lê o nome escrito naquelas coordenadas. Um sorriso se esboça em sua face muito enrugada. Sorriso que logo se transforma emriso largo, em gargalhada rouca, em acesso de riso, em verdadeira crise histérica… O neto se assusta. O velho começa a tossir. O outro tenta ajudá-lo, mas ele faz com a mão sinal de que permaneça sentado. Levanta-se com dificuldade. Apoiado numa grossa bengala, dá uma volta pela sala. Depois, aproxima-se do outro e lhe diz: — Você terá à sua disposição todo o meu dinheiro, está ouvindo? Todo o meu dinheiro para realizar finalmente a minha vingança… Quem diria… Tive de esperar você nascer, crescer e se tornar homem para poder me vingar… O neto vai ouvindo com avidez. Tão ambicioso quanto o avô, prontificou-se a ajudá-lo a tramar sua vingança pessoal. Em troca, recebeu a promessa de ser nomeado o único herdeiro de toda a fortuna acumulada pelo velho. — Não se preocupe, vovô. O senhor terá sua vingança. E não vai demorar… 1. Placa de São Paulo Num lugar pequeno feito Ocaporã, no interior de Minas Gerais, qualquer coisa diferente logo chama a atenção. Por isso é que Nino, antes de entrar no Albergue Casa Bonita, detém-se um momento depois de encostar a bicicleta junto ao meio-fio. Admira o carro reluzente e grande, estacionado diante do único hotel da cidade. É azul-escuro, tem quatro portas e vidros pretos que não deixam a gente ver o interior.
Placa de São Paulo. Nino procura algum nome e encontra, entre os dois faróis, no meio exato da frente do carro, a pequena chapa redonda com as três letras BMW. Muito bem. De quem será? Nino entra na portaria. Vê dona Dalva ao balcão de madeira escura da recepção. Sorri para ela, que retribui o cumprimento e diz: — Bom dia, Nino. Já chegou tão cedo? — Já, dona Dalva. A senhora sabe que eu não gosto de atrasar nenhuma entrega. Além disso, tenho que passar em outros lugares ainda hoje. Dona Dalva recebe do rapaz o pequeno pacote envolvido em papel pardo. Desembrulha-o: é uma caixa de papelão. Retira a tampa, confere o conteúdo. Depois, guarda-a sob o balcão. Emseguida, abre uma gaveta e pega algum dinheiro. — Guarde o troco, Nino — diz ela, com voz simpática. — Obrigado, dona Dalva — agradece ele. — E a Mariinha? Já está de pé? — Já. Ela deve estar lá na cozinha terminando de tomar o café da manhã. Dona Dalva responde e finge não perceber que Nino está esperando que ela diga mais alguma coisa. Mariinha é a filha mais nova de dona Dalva. Ajuda a mãe no albergue, ocupando-se dos papéis, das contas e de outras providências. É da mesma idade de Nino. Os dois se gostam muito, e dona Dalva sabe disso. — Por que você não vai lá dentro dar bom-dia a ela? — sugere a mãe de Mariinha, piscando um olho matreiro para Nino. Nino sorri para a dona do albergue e aceita a sugestão.
Cruza a grande sala de entrada do velho casarão, atravessa um corredor comprido e escuro, com alguns cômodos fechados, e chega à porta da cozinha, que está aberta. Mariinha, alertada pelo som dos passos no corredor, fica em posição de espera. Ao ver quem chega, um sorriso brejeiro se estampa em seu rosto redondo e salpicado de sardas cor de ferrugem. — Ei — cumprimenta Nino, sentando-se na cadeira vazia perto da de Mariinha. — Ei — retribui ela. — Tem gente que a esta hora já está pelo mundo trabalhando — ironiza ele —, enquanto outros ficam tomando café a manhã toda… Ela nem se abala: — Pois é, mas tem gente que se levantou antes das seis, serviu o café da manhã a todos os hóspedes, tirou as mesas e varreu a sala de jantar… Nino gosta da inteligência rápida de Mariinha, que tem sempre respostas prontas e precisas na ponta da língua. — Quer um cafezinho? — oferece ela, apontando o bule enquanto morde uma torrada coberta de geléia. — Não, obrigado. Mas aceito um pedacinho desse queijo-de-minas com um pouquinho de doce de leite. Mariinha pega um prato de sobremesa, corta uma fatia do queijo muito branco e ao lado dele põe uma colherada generosa do doce de leite, que está numa bela compoteira de cristal azul. — Pode comer à vontade — diz, colocando o prato à frente de Nino —, você sabe que essas coisas são proibidas para mim. Mariinha preocupa-se com as formas. Afinal, não é muito alta e tem o corpo já bem “cheiinho”, como ela mesma diz. Nino acha-a bonita assim mesmo, e para agradá-la vive repetindo que não gosta desse tipo de mulher que anda na moda, alta e magra como um varapau. — De quem é aquele carrão aí na frente, Mariinha? Algum hóspede novo? — ele pergunta, saboreando devagar o doce. — Hum, hum… — confirma Mariinha, com a boca cheia. — E quem é? Ela engole o que estava mastigando: — Dois senhores muito alinhados, elegantes, bem-vestidos que precisa ver. Chegaram ontem pouco depois das duas da manhã. Tive de me levantar para atender eles. Você sabe que de madrugada a recepção fica fechada, e cada hóspede tem uma chave da porta da frente… Mas eles apertaram tanto a campainha que eu tive de ir ver… Nunca deixo que a minha mãe se levante à noite, coitadinha, já trabalha tanto… Por isso é que estou com essa cara linda de quem não dormiu direito… Acho que eles dois ainda devem estar dormindo. Mariinha levanta-se e começa a colocar pratos sujos na máquina de lavar louça. Nino apressa-se em terminar de comer o doce para poder ajudá-la. Enquanto vai passando os pratos para ela, continua perguntando: — E eles estão de passagem? — Parece que não. Trouxeram foi muita bagagem, viu? Pelo jeito como já foram arrumando tudo nos armários do quarto, acho que vão demorar por aqui… Mariinha fecha a máquina e a põe para funcionar. Nino quer saber ainda: — E de onde é que eles vêm? — Vêm de Brasília.
— De Brasília? — interessa-se o rapaz. — Foi o que eu entendi. Não li ainda a ficha que eles preencheram, estava com muito sono e preguiça. Mas pelo que ouvi minha mãe comentar, parece que são do governo… “Vai ver é mais uma das visitas para o padrinho”, pensa Nino. — E o Geraldo? Já começou a trabalhar lá com vocês? — pergunta Mariinha, mudando de assunto. — Xi, o Geraldo! — lembra-se Nino, de repente. — Já ia me esquecendo! Tenho que voltar logo para o sítio porque o Geraldo já deve ter chegado lá e eu prometi ao padrinho que ia ajudar a ensinar o serviço para ele… Mariinha acompanha Nino até a calçada. Despede-se dele, já montado na bicicleta, com dois beijinhos no rosto moreno do rapaz. Ele sorri, acena para ela e se vai, descendo pelos paralelepípedos da rua inclinada. Mariinha fica acompanhando a bicicleta com o olhar até ela desaparecer na primeira esquina. Depois, tira do bolso uma presilha de cabelo. Arruma os longos cachos vermelhos num rabo-decavalo e volta para dentro do albergue. 2. Manhã no laboratório Quando Nino chega de volta ao Sítio Liberdade, onde mora, vê que a bicicleta de Geraldo já está encostada junto à porta do laboratório, que fica um pouco afastado da casa. Deixa a sua, vermelha, ao lado da dele, azul, e entra no laboratório. Vê Geraldo e Otto conversando. — Oi, gente, desculpe o atraso! — diz ele, sorrindo. — Que bom que você chegou, Nino — diz Otto —, eu ia tentar eksplicar as coisas ao Geraldo, mas nem sabia por onde começar. — Deixa comigo, padrinho. Eu já sei direitinho o que o Geraldo vai fazer… Geraldo é um rapaz magro, de rosto ossudo e olhos grandes, pretos. É um ano mais velho que Nino, mas tem um jeito de menino que se esqueceu de crescer. O cabelo é curto e castanho-escuro, e a pele é muito branca. Fala baixo, é tímido, parecendo daquelas pessoas que detestam chamar a atenção sobre si mesmas. — Oi, Geraldo! — cumprimenta Nino, simpático. — Vamos deixar o padrinho aqui, estudando.
Eu quero que você me ajude a colocar os rótulos nos vidros. Vem cá comigo. Geraldo, mudo, acompanha Nino até uma grande mesa branca no fundo do amplo laboratório. Está coberta de pequenos frascos de vidro marrom. — Você vai me ajudar a colar os rótulos nesses frascos, tá? — começa Nino. Geraldo balança a cabeça afirmativamente. — Os rótulos já vêm prontos da gráfica. A gente só precisa escrever a mão o prazo de validade e colar no vidro. Fácil, né? Todo esse lote aqui é de “Saudades do Matão”. Geraldo sorri e fala com Nino pela primeira vez: — Eu sempre gostei dos nomes dos remédios do seu Otto. — Eu também. Ele sempre fez questão de fugir daqueles nomes de remédio que dão medo na gente. — Meu avô também gostava muito — comenta Geraldo, já sentado num tamborete e anotando com letra caprichada o prazo de validade que Nino lhe mostrou escrito num rótulo-modelo. Ocaporã é uma dessas centenas de cidadezinhas escondidas entre as montanhas de Minas Gerais. Mal aparece nos mapas. É muito antiga, tem um pequeno rio de água barrenta que a corta ao meio. O povo é tranqüilo, sem pressa para nada. Tinham razão os índios ao dar àquelas terras o nome de Ocaporã, “casa bonita”. A região é bela, com morros altos, cobertos de mata muito verde. Desse verde é que o doutor Otto Freimann colhe o material para seus milagres. Pois são verdadeiras maravilhas o que ele consegue fabricar com as folhas, flores, sementes e cascas das ervas e árvores da mata. Seus remédios naturais são produzidos artesanalmente no laboratório que construiu junto à casa do sítio, onde vive desde que chegou a Ocaporã. — Já tem mais de trinta anos que o seu Otto veio da Alemanha para o Brasil, não é, Nino? — pergunta Geraldo. — É — responde Nino. — Para você ter uma idéia, ele chegou aqui com quarenta anos e já está com setenta e quatro… — Meu avô dizia que quando o seu Otto apareceu aqui, falando com muito sotaque, com o cabelo grande e despenteado, o pessoal de Ocaporã se assustou.
Acho que pensaram que ele era algum cientista maluco… — conta Geraldo, sorrindo. — Ninguém podia imaginar que depois ele ia virar a pessoa mais querida da cidade —comenta Nino, lançando um olhar para o velho padrinho, que, numa outra mesa mais afastada, toma notas num caderninho de coisas que vai lendo num livro enorme. A magia de Otto Freimann, além da personalidade agradável, está na sua arte. Seu Otto é farmacêutico, como ele mesmo se apresenta. Mas não é um farmacêutico desses que a gente conhece. Não tem uma farmácia onde vende caixinhas de comprimidos e vidros de xarope. Seu Otto é umgrande cientista, um pesquisador dos poderes medicinais da flora. É impressionante o tanto que sabe das plantas da mata mineira. Quando chegou, já sabia muito, e os anos de estudo e experimentação só fizeram aumentar aquele conhecimento. Seus remédios naturais são todos saborosos, com cheiro de flor e gosto do mato. Aos poucos, as pessoas começaram a usar aquelas poções estranhas e foram conhecendo seus efeitos surpreendentes. Quase ninguém mais em Ocaporã quer saber dos remédios caros, que às vezes têm de ser comprados fora, nas cidades maiores da região. Até os médicos receitam os preparados do seu Otto Boticário, e a única farmácia de Ocaporã praticamente só vende o que ele produz. Além de fazerem bem à saúde, os medicamentos têm nomes deliciosos: Manhã de Sol, Luar de Abril, Meu Cheirinho, Lágrimas de Santo, Óleo do Amor, Saudades do Matão, Neblina Doce, Vovô me Ama, Sonhos de Sabiá, entre outros tantos. — De onde é que vêm essas pessoas que volta e meia aparecem aqui em Ocaporã atrás do seu Otto? — pergunta Geraldo. — De tudo que é canto: gente de Belo Horizonte, do Rio, de São Paulo e de Brasília já andou por aqui — responde Nino. — Uns vêm fazer entrevista para os jornais. Outros querem gravar programa de televisão. Teve gente até que veio para aprender com ele a fazer os remédios. — Que legal! — comenta Geraldo. — Isso para não falar dos convites, né? — Que convites? — Ah, convite para tudo…— responde Nino.— Curso em universidade, palestra em escola, lançamento de livro, viagem com tudo pago. Mas ele nunca aceita nada! — Por quê? — interessa-se Geraldo. — Coisa de cientista, eu acho. Ele diz que não há nada no mundo capaz de fazer ele arredar o pé de Ocaporã.
— Que engraçado… Quando as investidas da imprensa e dos curiosos começaram a se tornar demasiado insistentes, o doutor Otto decidiu não mais aceitar visitas de forasteiros, a não ser as que lhe parecessem realmente úteis para a divulgação de seu trabalho. Para justificar-se, alega estar muito velho e cansado e ocupado na publicação de um grande dicionário das plantas medicinais brasileiras, o que lhe toma muito tempo e exige muita pesquisa. — Como foi que você aprendeu alemão, Nino? — pergunta Geraldo, já mais à vontade. — Em casa. Foi meu padrinho que me ensinou. Você sabe que meu pai morreu quando eu tinha um ano, não é? — Sei. — Pois é. Meu pai trabalhava para o padrinho. Quando ele morreu, o padrinho me pegou para criar. Só falava comigo em alemão. Foi assim que aprendi. Até hoje, quando a gente está sozinho, os dois, a gente só conversa em alemão. — Já eu tenho pai, mas sempre fui muito mais ligado ao meu avô Gabriel — explica Geraldo, passando o dedo sobre um rótulo para fixá-lo bem no vidro. — Desde pequeno, acompanhava ele na farmácia, ficava lá brincando com as caixas de remédio vazias. Depois, fui aprendendo a trabalhar com ele. — Você deve estar sentindo muito a perda dele, não é? — arrisca Nino. — Nem te conto… — responde Geraldo, com voz triste. O velho Gabriel Raposo, dono da única farmácia de Ocaporã, a Drogaria Saúde & Paz, morreu há dois meses. Otto entristeceu-se muito: o dono da farmácia foi das primeiras pessoas a reconhecer a importância do trabalho do cientista alemão. O pai de Geraldo, seu Duílio, que passou a cuidar dos negócios, foi quem pediu a Otto que deixasse o rapaz trabalhar no laboratório. Disse que seria uma boa maneira de Geraldo aprender a profissão e superar a tristeza causada pela perda do avô. — Você vai ficar vindo só de manhã, não é, Geraldo? — certifica-se Nino. — É. À tarde eu fico na farmácia, pelo menos até as aulas começarem de novo. — Eu gostei muito da idéia de você vir para cá — diz Nino.
— Assim, posso dividir o trabalho com você e fazer as entregas sem tanta pressa. Tem vezes que eu passo um dia inteiro montado na bicicleta, fazendo entrega em tudo quanto é lugar…
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