O quadro das muitas superstições, que ainda se toleram em diversas partes da Europa, não deixará por certo de dar vasto assunto à pública curiosidade. É principalmente na Hungria, na Morávia, no Épiro, e nas ilhas da Grécia, onde se acham mais arreigadas estas crenças ridículas: ali se acredita com cegueira obstinada nos vampiros, nesses entes misteriosos, que, não pertencendo, nem à morte, nem à vida, se acham contudo ligados a uma e a outra; a esses canibais do sepulcro, que possuídos dum infernal apetite, que antes não tinham, se deleitam em sorver o sangue humano, para contentar a horrível sede que os devora, e para trazer mesmo ao seio de suas próprias famílias o terror e a desolação! Os vampiros, segundo aquelas crenças, são conhecidos desde a mais remota antiguidade: não foi decerto nas épocas modernas que se inventaram. Os antigos, para satisfazerem o apetite dos mortos, colocavam nos cemitérios quantidade de mesas, cobertas de diversos manjares, e de vinhos esquisitos: grande número de autores gregos e latinos o confirma. Os primeiros cristãos ainda conservaram por muito tempo esta ridícula usança, que Santa Mónica, mãe do célebre bispo de Hipona, ainda quis (depois da morte de seu filho) propagar pela Itália. Tertuliano, no seu tratado de Resurrectio. Initio, censura asperamente os pagãos por acreditarem, que os mortos tinham precisão de comer. É indubitável, que ainda hoje se encontramnas escavações dos antigos jazigos, onde descansavam os idólatras, e os mesmos cristãos da antiga igreja, diversos vasos de porcelana, ou de vidro, contendo as ossadas de alguns quadrúpedes e de diferentes aves, que sem dúvida tinham sido oferecidas aos finados, para seu regalo! Essa opinião supersticiosa, de que muitos cadáveres conservavam ainda alguma porção da sua existência, data por consequência de tempos muito remotos: ainda hoje, em quase todos os povos do mundo, se acha ela mais ou menos inveterada; contou, e ainda conta entre elevados personagens, numerosos partidários, que pretendem apoiar-se em quantidade de ótimos documentos, que (dizemeles) se acham revestidos de todos os carateres de autenticidade! Permita-se-lhes muito embora que assim o acreditem; mas o certo é, que o número dos incrédulos é muito mais considerável. Entre os mais célebres vampiros, que apareceram nos primeiros tempos da religião revelada, o mais conhecido, ou para dizer melhor, a mais conhecida, porque era uma mulher, foi aquele de quem Flégon nos oferece a extravagante história no seu tratado das Coisas maravilhosas. Pretende ele que em Trallés, na Ásia, abandonara uma rapariga a sua derradeira morada, para vir passar todos as noites com Machates, seu amante; que este trato continuara até ao momento emque sua mãe a surpreendera: foi então que caindo por terra, havendo-lhe reprochado a ventura que perdia por causa da sua aparição, soltou definitivamente o último suspiro! Correram logo ao mausoléu, onde a tinham encerrado; estava vazio; mas acharam dentro uma taça de ouro e um anel de ferro, que Machates tinha dado a Filinniun na véspera do seu trespasse! Flégon pretende ter sido testemunha ocular dum tão extraordinário acontecimento; e ainda que depois o escrevesse para oferecer ao imperador Adriano, nós não podemos admiti-lo sem o mais profundo exame. Em tempos mais modernos, também se pretendeu certificar a existência dos vampiros. Eis aqui alguns exemplos que D. Calmet nos oferece, a este respeito, no seu tratado das Aparições e Duendes, que tanto têm assolado a supersticiosa Hungria. «No princípio do mês de setembro de 1737, faleceu na vila de Kilílova, a três léguas de Gradiska, um velho de sessenta e dois anos de idade. Três dias, depois de ser enterrado, apareceu uma noite a seu filho, pedindo-lhe de comer; e obedecendo-lhe este, ainda que horrorizado, viu-o desaparecer logo que concluiu a sua comida! No seguinte dia contou o filho aos vizinhos, o que lhe acontecera: nessa noite não tornou o pai a aparecer; mas na seguinte, apresentou-se-lhe de novo, pedindo-lhe satisfizesse outra vez o seu apetite! Ignora-se se o filho lhe obedeceu ou não; mas o certo é, que no dia seguinte foram encontrar o infeliz morto na sua cama, caindo ao mesmo tempo mais cinco ou seis pessoas gravemente enfermas, que todas morreram pouco tempo depois! O oficial ou balio do lugar, sendo informado deste desastroso sucesso, o comunicou imediatamente ao tribunal de Belgrado, que lhe mandou logo dois oficiais e um carrasco para investigarem sobre o facto. Procederam à abertura dos túmulos, daquelas pessoas, que neles tinham sido recentemente enterradas. Quando chegaram ao do velho, encontraram-no com os olhos abertos, avermelhado, coma respiração natural, mas, sem movimento algum; o que lhes fez acreditar que era um assinalado vampiro! O carrasco enterrou-lhe aguda estaca no coração; fez-se uma fogueira, e nela reduziram a cinzas o hediondo cadáver…» «Em 1729 ou 1730, um certo soldado húngaro, habitante de Medreiga, foi esmagado por uma carrada de feno. Trinta dias depois da sua morte, faleceram de súbito quatro pessoas, com todos os sinais (segundo pretendiam os moradores daquele lugar) de haverem sido cruelmente molestadas pelos vampiros! Lembraram-se então, que Arnold Paul (o mesmo de quem acima falámos), contava muitas vezes, que nos subúrbios da Cassoura, sobre as fronteiras da Sérvia turca, fora tambématormentado por um vampiro turco (acreditam igualmente aqueles povos, que as pessoas, que durante a vida são vampiros pacíficos, se tornam em ativos depois da morte; isto é, que aqueles que chuparam alguma coisa enquanto vivos, ainda pretendem chupar depois de mortos!); mas, dizia o tal Arnold, que achara um remédio infalível para se curar, que consistia em comer uma porção de terra, pertencente ao sepulcro onde o vampiro fora enterrado, untando-se, ao mesmo tempo, com o sangue do monstro; todavia esta precaução não pôde livrá-lo de que, sendo exumado, quarenta dias depois da sua morte, se descobrissem sobre seu cadáver todos os sintomas dum arquivampiro! O seu corpo estava purpurino; seus cabelos, unhas e barba tinham-se renovado; e suas veias estavam prenhes de um sangue fluido, que gotejava de todos os seus membros sobre o lençol em que estava amortalhado! O hadnagy ou balio do lugar, na presença do qual se fazia a exumação, e que era experimentado na arte do vampirismo, mandou se cravasse no coração do defunto Arnold Paul, como era costume, uma aguçada estaca, que o trespassou de lado a lado, e que (segundo dizia aquela pobre gente) o fizera soltar espantoso grito, como se realmente tivesse vida… Concluída esta operação, deceparam-lhe a cabeça, e reduziram tudo a cinzas!…» «Em 1813, um soldado que se achava aquartelado em casa de um paisano haldamaque, na fronteira da Hungria, pretende que vira entrar, na ocasião em que se achava à mesa com o patrão, um desconhecido, o qual se assentou junto a ele, principiando também a comer sem a menor cerimónia! O dono da casa ficou aterrado, assim como as mais pessoas que se achavam presentes. O soldado estava como interdito, ignorando a causa de tanta confusão; mas, havendo falecido no seguinte dia o mesmo dono da casa, soube o soldado que o desconhecido, que se assentara ao lado deste, era seu pai, que tinha sido enterrado havia dez anos, sendo ele quem causara a morte de seu filho! O soldado espalhou logo esta notícia pelo regimento, a qual chegou pouco depois aos ouvidos do general, que ordenou ao conde de Cabreras, capitão do regimento de infantaria de Alandetti, para o informar circunstanciadamente sobre o facto. Transportando-se pois este oficial sobre o sítio indicado, em companhia de outros camaradas, de um cirurgião, e de um auditor, trataram logo de colher o depoimento de todas as pessoas da família, que unânimes atestaram, que o ressuscitado era com efeito pai do dono da casa, e que tudo quanto dissera o soldado era verdade! Em consequência fizeram desenterrar o corpo deste espetro; encontraram-no como um homemque acabava de expirar, e seu sangue como se ainda estivesse vivo! O conde de Cabreras fez-lhe cortar a cabeça, e ordenou que assim tornasse a ser enterrado! Fez depois o seu relatório ao general: este o transmitiu à corte do imperador, o qual ordenou que se enviassem logo àquele lugar oficiais de guerra, de justiça, médicos, cirurgiões, e alguns sábios, a fim de examinarem com toda a atenção as causas de tão extraordinários acontecimentos.» Porém todos esses vampiros de quem temos falado, devem ceder a palma a outro, de quem o venerável D. Calmet, nos transmitiu os malefícios, e sobretudo a insolência. Terminaremos pois narrando a sua história. «Um pastor da aldeia de Blou junto à vila de Shadan, na Boémia, apareceu durante algum tempo depois da sua morte: falou com diversas pessoas, que nenhuma delas viveu mais de oito dias! Os camponeses de Blou desenterraram o corpo deste pastor, e por meio de uma estaca com que o passaram de lado a lado, o cravaram sobre a terra; mas ele zombava daqueles que assim o tratavam, dizendo-lhes, que muita mercê lhe faziam em lhe dar uma estaca para com ela se defender dos animais que o perseguissem! Nessa mesma noite tornou a levantar-se; atemorizou muitas pessoas, sufocando ainda muito maior número delas, do que até ali havia feito! Entregaram-no depois ao carrasco, que o colocou sobre um carro para ser conduzido fora do lugar, onde deveria ser queimado. O cadáver berrava com fúria infernal; estrebuchava com pés e mãos, como se ainda estivera vivo!… Quando de novo o trespassaram com agudas estacas, soltou terrível grito, derramando abundância de denegrido sangue!… As chamas o consumiram finalmente, e esta terrível execução pôs termo às aparições do medonho espetro!» Eis aqui mais do que seria necessário para instruir os leitores de que os vampiros, a que também chamam excomungados, lobisomens, duendes, etc., têm representado, e continuam talvez a representar, entre os povos supersticiosos, importantes cenas.
Desgraçadamente os séculos mais esclarecidos ainda não puderam banir de todo o fanatismo e a superstição. O espírito humano é sempre o mesmo; umas vezes nega a existência de um objeto, outras o acredita e reverencia; cético, a respeito dos principais dogmas da religião, acredita cegamente nas extravagâncias da astrologia, nas peloticas dos charlatães, e na infalibilidade da buena-dicha. Tudo se confunde dentro de nossos cérebros, admirável recetáculo de quanto existe de mais contraditório, assim como das conceções as mais extravagantes! É sobretudo nos campos, onde se depara grande número de crédulos, sempre dispostos a abraçar quanto lhes parece sair das verdadeiras regras da natureza. A simplicidade da rústica existência dos aldeões parece suscitar-lhes a necessidade de lançar a sua imaginação no meio desse oceano sem limites, de quanto há de mais fantástico e maravilhoso. Deleitam-se em simples quimeras, ouvindo a narração de contos terríveis e fabulosos! Ostentam grande soma de práticas supersticiosas, nas quais encontram a sua consolação e o seu apoio! Povoam os velhos castelos, as fundas cavernas, as florestas solitárias, os escarpados rochedos, duma multidão de fantasmas, de génios, de fadas, de feiticeiros, e de mágicos, que fazemmover a seu bel-prazer, e pelos quais sabem explicar, todos os acontecimentos, e todas as coisas, que eles mesmos não são capazes de definir. É por isso, que entre eles se acolhem com mais avidez as narrações em que figuram as almas do outro mundo, e outras inteligências superiores à humanidade! Os vampiros, por exemplo, nunca quiseram habitar as grandes cidades, ou outros lugares em que resida a alta sociedade; isto é, aqueles que possuem maior instrução e mais vastos conhecimentos; buscam pelo contrário os países mais selvagens e ignorantes, ou as aldeias mais remotas e miseráveis. É só ali, onde podem fazer afoitamente as suas excursões, sem receio de seremdesmascarados; é ali que sabem intimidar os espíritos fracos e pusilânimes; e é por este modo que conseguem iludir os homens, que se fossem mais instruídos, repeliriam com indignação suas ridículas imposturas; mas, desgraçadamente, para satisfazer certos interesses, convém que estes prejuízos ainda se tolerem!… E porque não acreditaremos nós também na existência dos vampiros? Porventura não foram eles acreditados por tantos personagens distintos? D. Calmet, por exemplo, não se comprazia emcomprovar a sua existência?… É verdade que Voltaire o escarneceu; e nós, costumados a imitar as macaquices dos estrangeiros, adotámos cegamente a opinião deste famoso escritor! Rimo-nos dos vampiros; e o mesmo lord Byron não pôde mudar a nossa opinião a este respeito!… Pois bem, caro leitor, não receamos dizê-lo, o autor de Mérope não tinha razão; o frade beneditino havia profundado mais esta matéria; nós nos lisonjeamos de assim o provar, chamando unicamente a vossa atenção para o que na época atual se passa entre nós. Não são porventura vampiros puritanos, insaciáveis do nosso sangue, esses famosos conquistadores, ruína das nações, flagelo da humanidade? Não deparamos a cada passo com homens ávidos de nossas fadigas e suor, que ainda acham muito ligeiro o peso enorme com que nos esmagam? Julgais vós, que esses miseráveis, que correm pelas vilas e aldeias, vexando os desgraçados habitantes, com suas injustiças e maus tratos, não sejam verdadeiros vampiros? E aquele que se acha colocado em lugar eminente, e que deparando no meio da sua carreira com a virtude oprimida, com a inocência abandonada, as esmaga debaixo de seus corcéis, as sufoca com o peso do ouro que o adorna, não será também um vampiro… um infame?… Julgais acaso, que o banqueiro, que alimenta uma casa de jogo, onde se absorvem tantas fortunas, onde se perdem tão meritórias reputações, não figura na lista dos principais vampiros? No centro das mais opulentas capitais, nos lugares mais obscuros, quer de noite, quer de dia, não encontramos nós muitos vampiros que, cobertos com a máscara sedutora da hipocrisia, ocultam um coração perverso, palpitante dos vícios e das inclinações mais abjetas?… Serão estes outra coisa mais do que vampiros, verdadeira escória da sociedade? Finalmente por toda a parte não vemos mais do que vampiros: encontram-se adornados com as vestes venerandas do sacerdócio, com a toga do magistrado, com a brilhante farda do militar, e com a charpa respeitável do comando!… O seu maior número avulta entre os fornecedores, e os grandes empresários; entre os agentes da justiça, entre os agiotas, e até mesmo entre os facultativos!… A virgem da Hungria ou a mulher vampiro Capítulo I Iméritas e imprevistas calamidades, obrigaram o coronel Eduardo Delmont a abandonar, em 1815, a terra do seu nascimento. Esta terra era a opulenta cidade de Paris, a capital do mundo inteiro, onde ele vivamente desejava passar o resto de seus dias; mas a fortuna, que tudo move a seu belprazer, não quis permitir-lhe esta ventura. Eduardo, depois da segunda entrada dos Bourbons, pediu precipitadamente a sua demissão, e com os olhos inundados de lágrimas, que a custo podia conter, anunciou a sua mulher, que uma imperiosa necessidade os obrigava a buscar longe de Paris, e mesmo de Lyon, onde ela nascera, um canto de terra isolado, onde pudessem viver no pacífico remanso da solidão. Esta notícia aterrou madame Delmont, sem contudo lhe causar vivas inquietações. Amava seu marido; ele a amava igualmente; seus filhos faziam as delícias do seu coração; as ocupações domésticas, as belas artes que cultivava; tudo isto era suficiente, para ocupar, em qualquer parte onde se achasse, os momentos que pudessem restar-lhe dos doces e sagrados deveres da maternidade: não fez portanto, a seu marido a mais pequena reflexão sobre o discurso que acabava de lhe dirigir; limitou-se unicamente a fazer-lhe algumas perguntas, assaz naturais, a respeito da súbita resolução que tomava; nascidas todas elas do receio que tinha, de que alguma falta política houvesse comprometido o coronel. Sossegada completamente sobre este objeto, e instruída, de que algumas especulações particulares eram o único motivo, que tornava necessário um retiro de alguns anos, abraçou ternamente seu esposo, jurando-lhe, que de bom grado preferiria o descanso da solidão, ao tumulto de Paris. O empenho que Delmont mostrava em precipitar o momento da sua partida, era na verdade extraordinário: nem sequer quis assistir à venda da sua rica mobília. Encarregou um amigo para o representar neste negócio; e no imediato dia àquele em que comunicou a sua mulher o seu projeto, partiu na companhia dela e de seus filhos, levando apenas um único doméstico, e sem se haver despedido das poucas pessoas que formavam o pequeno círculo das suas relações! Depois de haver saído das barreiras de Paris, parecia Eduardo mais desafogado, e como se umenorme peso o tivesse aliviado. Seus olhares, que vagueavam com uma espécie de inquietação, enquanto atravessava Paris, tomaram certa expressão mais tranquila, logo que puderam contemplar a amenidade dos campos. Parecia que respirava mais livremente, e apertando com extremo a mão de sua mulher, assim lhe dizia: — Eis-nos finalmente livres dessa cidade tumultuosa, onde se reúnem alternativamente todos os povos do universo: quanto me tardava o momento de franquear seus muros, e de lhe dizer de longe um eterno adeus! — Por que motivo, meu amigo — lhe disse ela, — vos explicais por semelhante modo? Não é porventura Paris o berço que vos viu nascer? Acaso perderia para vós, esta soberba capital, os atrativos que outrora vos oferecia? Com que entusiasmo não exaltáveis vós as suas belezas! Não é ela porventura a mesma cidade? E ainda que as nossas circunstâncias tivessem mudado, seria isso motivo para vos desgostardes tão singularmente duma terra, que ainda há pouco fazia as vossas maiores delícias? — Sim, é verdade — replicou o coronel; — confesso não poder hoje suportar a presença desse lugar, que tanto me encantava. Os acontecimentos que se têm sucedido com tanta rapidez; a profanação desta cidade pela presença de inimigos, tantas vezes vencidos; o furor dos partidos que tão velozmente se tem ateado; as diversas opiniões desunindo corações tão perfeitamente de acordo; tudo isto me tem inspirado a mais entranhável aversão pelo solo natal!… Essa magia de Paris desapareceu para mim: não a considero hoje senão como cidade ordinária, onde me fora impossível, principalmente neste momento, continuar a residir. — Tranquilizai-vos, pois, meu amigo: os vossos desejos acham-se satisfeitos; que o céu vos depare na cidade, onde vamos habitar, o sossego e a satisfação, que Paris não podia oferecer-vos!… — De que cidade falais vós?… — Falo daquela, onde provavelmente nos fixaremos… Eis-nos aqui sobre a estrada do meiodia: qual será o termo da nossa viagem? Será em Bordéus, em Tolosa, em Tarbes, ou em Pó? — Ai! minha cara Helena (assim se chamava sua esposa) — replicou o coronel com algum desconcerto: — receio constranger-vos a consumar completamente o sacrifício!… Julgais porventura que sairia de Paris, para ir habitar outra cidade, no meio do ruído da multidão, sempre importuna? Que me resolva a estabelecer em grandes povoações, onde passa todos os dias considerável número de estrangeiros, que seus negócios, ou curiosidade obrigam a viajar pelo interior da França? Não, jamais: conheço que na situação em que me acho, só a solidão me pode convir. Tende a incomparável bondade de vos não queixardes da minha resolução tirânica: quero buscar uma quinta isolada, onde ninguém possa recordar-me o passado, e sobretudo… Corou de repente, suspendendo a frase que ia continuar, e lançando sobre Helena um indefinível olhar que, com efeito, inculcava as mais íntimas e dolorosas recordações. Helena talvez se assustasse, se acaso pudesse acreditar, que motivos secretos poderiam produzir os profundos pesares que Delmont parecia inculcar: sabia que as desgraças da França magoavam, não pouco, seu coração; conhecia também as mortificações que o ralavam, vendo-se privado de várias propriedades que lhe pertenciam, e por consequência de dar a seus filhos a brilhante educação que lhes havia destinado. Sabia do mesmo modo avaliar a ternura que lhe consagrava; ocultava-lhe portanto o pesar que sentia de se ver privada da sociedade, e dos prazeres do mundo, que na sua idade não podiam deixar de lhe ser gratos: portanto, sem profundar mais esta matéria, tomando carinhosamente a mão de seu marido, assim lhe disse: — Sossegai, meu amigo: as saudades de Paris não me mortificam. Será para mim indiferente qualquer pequeno torrão que pisarmos: tenho-vos a meu lado, nossos filhos nos acompanham, transporto a minha harpa, os meus pincéis… que mais posso desejar? Onde me será vedada a verdadeira felicidade? — Como! querida minha. Pois a solidão de uma quinta não vos assusta? — Assustar-me-ia, se porventura me achasse separada dos entes que neste mundo me são mais caros; na companhia deles, a vida me será sempre agradável e deleitosa! — Oh! de que cruel tormento me não sinto aliviado! Creio-vos sincera, minha amiga; não duvido de que as vossas palavras não sejam as expressões dos puros sentimentos do vosso coração.
Pois bem! não vo-lo ocultarei; preciso evitar o tumulto que nos rodeia. É a solidão de um deserto, o que mais convém ao meu espírito: preciso portanto, para me tranquilizar, de um abrigo que me ponha a coberto da tempestade que me ameaçava; não convém que seja nem próximo de uma cidade, para que aí nos não venham atormentar, nem tão pouco muito distante dela, para que nos privemos de alguns socorros, que possa reclamar a nossa saúde, a de Eugénio e Julieta (eram os nomes de seus filhos, ainda muito jovens). — E onde julgas poder encontrar esse retiro, Eduardo? — Pouco distante de Tolosa. — Parece-me que durante as vossas campanhas, nunca habitastes essa cidade? Tendes aí algumas relações? Já fixastes definitivamente o lugar que devemos habitar? — Ainda não. Ignoro qual ele seja; o acaso há de proporcionar-mo: dirijo-me para perto de Tolosa, pela única razão de ser inteiramente desconhecido nesta cidade, e por isso que perdendo-se de mim o rasto, ninguém irá ali surpreender-me… a vista dos homens me é odiosa neste momento!… Oh! quanto não quisera eu haver perdido a memória do passado!… Quanto não desejara, minha cara Helena, haver só vivido para vós!… Estas amorosas palavras, que por certo deviam lisonjear madame Delmont, produziram em seu coração um sentimento inteiramente contrário. O modo com que seu esposo as pronunciara, parecia uma acre repreensão que a si mesmo fazia: a sua fisionomia manifestava naquele momento sinais evidentes dessa agitação da alma, que aos olhos de perspicaz observador é muito mais expressiva do que os mais eloquentes discursos. Helena, ainda que esposa, amava seu marido, como nos primeiros dias do seu himeneu. Nenhum sentimento de ciúme havia ainda torturado seu coração, porque os desvelos e carinhos de Delmont lhe haviam provado, que só ela ocupava toda a sua imaginação; mas esta placidez podia ser de um a outro momento alterada! Helena jamais quis indagar a vida de seu marido, antes do dia, que pela primeira vez se conheceram: sabia perfeitamente que um jovem e agradável militar não podia estar isento dessas aventuras de galanteio, em cuja ciência não são pouco profundos; mas ao mesmo tempo comprazia-se em acreditar, que a velocidade com que os exércitos franceses tinham percorrido a Europa inteira, não havia permitido aos bravos, que os compunham, de alimentar por muito tempo essas intrigas de amor, e de se abandonarem a esses sentimentos de alma, que só podem ser perigosos, quando se cultivam por muito tempo. Helena vivia, portanto, sobre este objeto, isenta de cuidados; contudo, no momento em que o coronel lhe falava, uma fatal ideia lhe fazia acreditar, que alguma dessas intrigas, ainda que remota, não deixava de ter grande parte em uma viagem, que mais se assemelhava a uma fuga! Quaisquer que fossem as ideias de madame Delmont a este respeito, julgou conveniente não expendê-las: diligenciava mesmo repeli-las, encetando uma conversação sobre a história do país que deviam habitar, e cuja celebridade ecoava na Europa inteira. — Não devemos recear — dizia o coronel, — a exaltação dos partidos, nesta província da França: não vimos aqui para tomar parte nas suas criminosas intrigas, ou vinganças injustas; vimos procurar a paz e o descanso; satisfaremos a todos os deveres do cidadão probo, obedeceremos fielmente às leis, sem jamais nos queixarmos das autoridades: seria para deplorar, que vigiando com tanto esmero sobre a nossa conduta, servisse ela de pretexto aos furores dos inquisidores do nosso pensamento. Além disso, no meio dos campos, isolados em uma quinta solitária, quem se atrevera a acusar as nossas ações? Nada receeis a este respeito, minha boa amiga, a prudência há de preservarnos de qualquer perigo. Os filhinhos, enjoados de ouvirem uma conversação que não podiam partilhar, interromperamna, neste lugar, fazendo a seus caros pais algumas observações, relativas ao país que atravessavam. Delmont, querendo satisfazer à sua engraçada e inocente loquacidade, voltou para eles sua paternal atenção, enquanto sua esposa buscava, com perspicácia, descobrir em suas feições, os sentimentos que se albergavam em sua alma, sem que lhe fosse possível adivinhar o motivos dos risos sardónicos, das contrações de músculos, que imprimiam alternativamente um singular caráter sobre a bela e distinta fisionomia do coronel. Ela possuía a necessária perspicácia para atribuir aquelas emoções de alma, a simples projetos de fortuna: a do coronel era assaz suficiente para que a perda de uma pequena fração pudesse afetá-lo por semelhante modo. Quanto mais Helena procurava penetrar este mistério, tanto maior era o labirinto em que se achava embrenhada, e seu rosto encantador parecia obscurecer-se, mau grado seu, com a mais cruel melancolia. Delmont facilmente o conheceu; e atribuindo esta espécie de mortificação à sua partida de Paris, procurou logo, por meio dos mais assíduos desvelos, dissipar os negros pesares que oprimiam a amargurada esposa: não lhe custou muito em satisfazer o seu desejo. Helena, penhorada pelos cuidados e terna solicitude de seu marido, querendo evitar os terríveis efeitos de suas melancólicas conjeturas, resolveu-se a esquecer o passado; e entregando-se toda à situação em que existia, só cogitava em saborear a doce satisfação de se ver no meio de seus queridos filhos e de seu marido. Nesta tão agradável consideração, facilmente desaparecem os cuidados e aflições que tantas vezes nos oprimem!… Que bálsamo tão salutar não derrama ela sobre o coração de uma mãe! Quanto se não tornamsuaves as penas que momentaneamente sentimos, quando o amor conjugal, abraçado com o amor paternal, o ajuda a banir para longe do coração as inquietações que o maltratam! Capítulo II Tão depressa chegou a Tolosa, principiou logo o coronel Delmont a diligenciar o retiro que desejava. Para esse fim dirigiu-se a um notário, pedindo-lhe esclarecimentos sobre alguma propriedade, que se achasse mais isolada, longe das estradas principais, mas que não fosse demasiadamente desviada da cidade. O acaso lhe facilitou essa aquisição. O dono do castelo de R *** situado num dos mais férteis distritos do Languedoc, e pouco distante de Tolosa, não habitava, havia muitos anos, este antigo edifício: tinha procurado em vão alguns amadores da vida campesina, que quisessem habitá-lo; mas ainda até ali se lhe não tinha apresentado algum. Foi por isso que facilmente anuiu a todas as proposições, que lhe fez Delmont, o qual, instruído de que aquela mansão se achava para alugar, tinha ido visitá-la, e ficara encantado da sua situação, e mais comodidades que lhe oferecia. Concluído o arrendamento, saiu o coronel imediatamente de Tolosa, com a sua família, para ir ocupar o castelo de R ***, mandando transportar, após ele, os móveis necessários para seu serviço: eram simples, mas cómodos; a sua elegância substituía o luxo, que se acha em pouca harmonia comas belezas da natureza, Acompanhava-os um velho sargento do regimento de Delmont, chamado Raul, bravo militar, que devia a vida ao seu coronel, e que havendo obtido a sua baixa, se determinara a partilhar a sua sorte, e o servia mais como amigo do que como doméstico. Uma cozinheira, que tomaram em Tolosa, e uma aia para a madame, completavam a família de Delmont. Helena e seu esposo, tinham renunciado inteiramente ao fausto e às grandezas, nada disto já podia oferecer-lhes o mais pequeno atrativo.
Os primeiros dias da sua estada no castelo, foram empregados nos exercícios necessários aos arranjos de uma nova habitação: era mister que todos trabalhassem, por isso que os domésticos erampoucos; e o arranjo do interior da casa ficou ao cuidado do coronel, e do intrépido Raul. Foram eles, que colocaram os papéis, que dispuseram os espelhos e os móveis, e armaram os leitos: suas mãos costumadas a manejar as armas, serviam-se habilmente dos instrumentos apropriados àqueles trabalhos. Helena, da sua parte, não ficava em ociosidade: ocupava-se de tudo que dizia respeito às roupas e outros objetos domésticos; nada negligenciava; e ambos os esposos trabalhavam, sem se esquecerem de derramar em seus corações a grata efusão da sua ternura, e da mais recíproca confiança. Todavia, no meio de tão suaves tarefas, um estremecimento involuntário se apoderava do coronel: sinistra melancolia parecia inculcar em sua alma a existência de algum pesar secreto; e muitas vezes, Helena se via obrigada a voltar os olhos, para evitar a seu marido o desgosto de lhe dar a conhecer que ela também sentia as penas que o agitavam. Outras vezes, ele parecia sossegado e satisfeito. A presença de seus filhos encantava-o; gostava de os ver brincar, e ele mesmo se misturava algumas vezes a seus jogos folgazãos e infantis! Ora se entretinha com a sua flauta, em que era eminente; ora, acompanhado de seus cães, percorria as numerosas colinas, de que aquele país tanto abunda. Era então, que embrenhando-se em sombrio bosque, se assentava junto de um carvalho, cruzava os braços sobre o peito, abandonando-se a profundas meditações, que duravam às vezes muitas horas. Só ao declinar do sol, é que a passagemde alguns cultivadores o despertava do seu letargo: batia fortemente sobre a fronte, e tomava, pensativo, o caminho da sua residência
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