Moral and mental glaciers melting slightly Betray the influence of his warm intent. Because he taught us what the actual meant The vicious winter grips its prey less tightly. Not all were grateful for his help, one finds, For how they hated him, who huddled with The comfort of a quick remedial myth Against the cold world and their colder minds. We die of words. For touchstones he restored The real person, real event or thing; — And thus we see not war but suffering As the conjunction to be most abhorred. He shared with a great world, for greater ends, That honesty, a curious cunning virtue You share with just the few who don’t desert you. A dozen writers, half-a-dozen friends. A moral genius. And truth-seeking brings Sometimes a silliness we view askance, Like Darwin playing his bassoon to plants; He too had lapses, but he claimed no wings. While those who drown a truth’s empiric part In dithyramb or dogma turn frenetic; — Than whom no writer could be less poetic He left this lesson for all verse, all art.* Robert Conquest, “George Orwell” (1969) As estrofes acima foram escritas em um tempo glacial e se referem a um período de frigidez quase polar: a “meia-noite do século” analisada da ótica da Guerra Fria, com a perspectiva adicional de um “inverno nuclear” nunca remoto o bastante para ser tirado do pensamento. Mas a frialdade da abertura é imediatamente redimida por uma centelha de simpatia, e essa centelha é renovada pelo subsequente fulgor da amizade até insuflar os versos finais com o que é quase fogo. Se integridade e honestidade são virtudes frias ou quentes, é uma questão em aberto, e a Inglaterra pode ser um lugar úmido para situar a questão. A fria consciência de uma geração foi o subtítulo que Jeffrey Meyers deu à sua biografia de Orwell, lançada em 2000, e essa frase foi extraída das mornas páginas do escritor V. S. Pritchett. A obra de Orwell preocupa-se muito com os efeitos desalentadores do ponto de congelamento, e não é totalmente isenta da antiga crença de que ummergulho gelado faz bem. Mas esse indivíduo macilento e arredio teve suas duas epifanias cruciais nos climas tórridos e mormacentos da Birmânia e da Catalunha; e sua obra, de forma clandestina, mais tarde viria a acender uma fagulha nas Sibérias do mundo, aquecendo os corações de tiritantes poloneses e ucranianos e ajudando a derreter o permafrost do stalinismo. Se Lênin não houvesse pronunciado a máxima “o coração em fogo e o cérebro no gelo”, ela poderia aplicar-se a Orwell, cuja paixão e generosidade rivalizaram apenas com sua seriedade e independência de julgamento. Sir (título que ele receberia mais tarde) Victor Pritchett foi um dos muitos que configuraram Orwell entre os “santos”, ainda que como membro secular dessa comunhão. Novamente somos confrontados com a frugalidade e o espectro da abnegação em vez de com o autor profano e humorístico que disse — referindo-se a Mahatma Gandhi — que os santos sempre devem ser considerados culpados até que se prove sua inocência. Falando de outra celebridade supostamente puritana, Thomas Carlyle escreveu sobre seu Cromwell que precisou arrancá-lo do meio de ummonte de cães mortos e carniça antes de poder apresentá-lo como uma figura digna de uma biografia. Esta não é uma biografia, mas às vezes tenho a impressão de que George Orwell precisa ser arrancado de uma pilha de pastilhas de sacarina e lenços umedecidos — um objeto de enjoativa veneração e louvaminhas sentimentais, empregadas para estultificar escolares com uma insuportável retidão e pureza. Tributos assim costumam ser do tipo rochefoucauldiano, sugerindo o acerto de contas do vício com a virtude e também as peças pregadas por uma consciência pesada. (Afinal, é de Pritchett a seguinte crítica barata escrita em 1938 sobre os informes perigosamente verdadeiros que Orwell despachou de Barcelona: “Existem muitos argumentos eloquentes para manter escritores criativos fora da política, e George Orwell é um deles”.
) Houve muitos “escritores criativos” de perfil político destacado no período de 1933 a 1949, respectivamente os anos de lançamento de Na pior em Paris e Londres e 1984. Se concordarmos emnos restringir ao mundo anglófono, temos George Bernard Shaw, H. G. Wells, J. B. Priestley e Ernest Hemingway, apenas entre os mais eminentes. E, é claro, houve os poetas — o grupo coligido sob o canhestro nome de “MacSpaunday”, representando Louis MacNeice, Stephen Spender, W. H. Auden e Cecil Day Lewis. (Essa palavra-valise omite o nome de seu mentor, Edward Upward, sobre quem Orwell também escreveu.) É razoavelmente seguro dizer, porém, que as declarações políticas desses homens não mereceriam ser reimpressas hoje. Alguns de seus pronunciamentos foram estúpidos ou sinistros, outros apenas tolos, crédulos ou levianos. Em marcante contraste, recentemente revelou-se possível reimprimir cada carta, resenha e ensaio escritos por Orwell sem expô-lo a embaraço de espécie alguma. (Há uma polêmica exceção a esse veredicto, e pretendo examiná-la separadamente.) Seria demasiado simples dizer que os senhores mencionados acima, juntamente com muitos outros no ramo do mero jornalismo, foram, ao contrário de Orwell, suscetíveis às seduções e tentações do poder. Mas seria correto dizer que eles puderam ter certeza de que veriam seus escritos impressos, enquanto Orwell nunca pôde compor coisa alguma com a mesma confiança de que seria publicada. Assim, a vida de Orwell como escritor foi, em dois importantes sentidos, uma luta constante: primeiro, pelos princípios que ele abraçava e, segundo, pelo direito de depor em favor deles. Orwell parece nunca ter diluído suas opiniões na esperança de ver seu nome difundido entre os clientes pagantes; essa é, em si, uma pista para se compreender por que ele continua relevante. Entretanto, é batida a imagem do escritor mourejando na água-furtada e vendo o fracasso como sinal de seus elevados princípios, e Orwell satirizou-a com algum detalhamento em seu romance A flor da Inglaterra. A importância de Orwell para o século encerrado há pouco e, portanto, seu status como personalidade da história e da literatura derivam da extraordinária proeminência dos temas que ele “enfrentou”, manteve e nunca abandonou. Em consequência, comumente usamos o termo “orwelliano” de dois modos. Descrever um estado de coisas como “orwelliano” é aludir a tirania, medo e conformismo esmagadores. Descrever um texto como “orwelliano” é reconhecer que a resistência humana a esses terrores é inextinguível. Nada mau para uma vida curta. Os três grandes temas do século xx foram imperialismo, fascismo e stalinismo.
Seria banal dizer que para nós essas “questões” têm apenas um interesse histórico; elas legaram toda a forma e o tomda nossa era. A maior parte da intelectualidade esteve fatalmente comprometida pela aceitação de uma ou outra dessas estruturas de desumanidade criadas pelo homem, alguns mais do que outros. (Sidney Webb, que escreveu em coautoria com a esposa o famigerado livro Soviet Russia: A new civilization? [urss: uma nova civilização?] e que na segunda edição removeu do título o ponto de interrogação bem a tempo de coincidir com o Grande Expurgo, tornou-se lorde Passfield sob o governo trabalhista de Ramsay MacDonald em 1929 e, assim consagrado, atuou como um secretário colonial excepcionalmente repressivo e pretensioso. George Bernard Shaw conseguiu ser estupidamente leniente com Stálin e Mussolini.) A decisão de Orwell de repudiar o imperialismo irrefletido que havia sido o ganha-pão de sua família (seu pai fora um executivo do degradante comércio de ópio entre a Índia Britânica e a China) pode ser representada como edipiana pelos críticos que preferem essas linhas de análise. No entanto, foi muito conscienciosa e, para a época, muito avançada. Além disso, matizou tudo o que ele escreveu depois. Não só tem presença marcante em um dos primeiros artigos que ele publicou —uma crítica sobre o modo como as tarifas britânicas estavam tolhendo o desenvolvimento da Birmânia, escrita para o jornal francês Le Progrès Civique em 1929 — mas também impregna seu primeiro livro de verdade, Na pior em Paris e Londres, e é um tema implícito em sua primeira contribuição para a revista New Writing, organizada por John Lehmann. Orwell pode ter ou não sentido culpa pela fonte de renda de sua família — uma imagem recorrente em seu famoso retrato da própria Inglaterra como uma família que mantém uma conspiração de silêncio a respeito de suas finanças —, mas sem dúvida acabou por ver a exploração das colônias como o segredo sujo de todo o esclarecido establishment político e cultural britânico. Essa percepção também lhe permitiu notar certos elementos na relação que Nietzsche chamava de “senhor-escravo”; sua ficção manifesta uma contínua consciência dos horrendos prazeres e tentações da subserviência, e muitas de suas cenas mais vívidas teriam sido inconcebíveis sem ela. Nós, que vivemos no cálido arrebol do póscolonialismo e na complacente avaliação dos estudos pós-coloniais, às vezes esquecemos quanto devemos à pioneira insistência de Orwell. Mantendo-se fiel ao que ganhara com sua experiência colonial e ao caminho que confirmara durante sua temporada entre os hilotas internos do império (como poderíamos conceber os desvalidos e párias de Paris e Londres na época), Orwell esteve em melhor posição para interpretar visceralmente, e também intelectualmente, os impérios modernistas do nazismo e do stalinismo. Entre muitas outras coisas, das quais uma foi sua solidariedade de conhecedor às vítimas e especialmente às vítimas raciais, ele adquirira sensibilidade para a hipocrisia intelectual e estava bem sintonizado para captar os ruídos invariavelmente arrepiantes que ela emite. Em outras palavras, a experiência já lhe dera o tino para detectar desculpas corruptas ou eufemísticas para o poder imerecido e irrefreado. Curiosamente, suas diatribes contra o fascismo não estão entre seus textos melhores ou mais lembrados. Ele parece ter partido do pressuposto de que as “teorias” de Hitler, Mussolini e Franco eram a destilação de tudo o que havia de mais odioso e falso na sociedade que ele já conhecia, uma espécie de síntese satânica da arrogância militar, solipsismo racista, opressão escolar e cobiça capitalista. Seu descortino especial foi o frequente conluio da Igreja Católica Romana e dos intelectuais católicos com essa orgia de maldade e estupidez; a isso ele faz repetidas alusões. Neste momento em que escrevo, a Igreja e seus apologistas estão apenas começando sua tardia reparação por esse período. Voluntário de primeira hora na Espanha, Orwell parece ter considerado axiomático que o fascismo significava e tencionava guerra e que era preciso juntar-se à batalha, a qual devia ser travada o quanto antes e do modo mais decisivo possível. Mas foi enquanto estava ocupado nessa frente que ele adquiriu sua compreensão do comunismo e iniciou sua década de combate com seus partidários. Esta constitui, para a maioria das pessoas hoje vivas, seu legado intelectual e moral. Sementendermos suas outras razões e motivações, porém, esse legado é indiscutivelmente incompleto. A primeira coisa que impressiona qualquer estudioso da obra e da vida de Orwell é sua independência. Depois de suportar o que muitos chamam de uma educação inglesa “convencional” (“convencional” presumivelmente porque se aplica a uma porcentagem microscópica da população), ele não seguiu o tradicional caminho de uma universidade medieval; escolheu a alternativa, o serviço colonial, mas abandonou-o abruptamente. Dali por diante, ganhou a vida a seu modo e jamais teve de obedecer a patrão algum.
Nunca desfrutou de uma renda estável nem jamais pôde contar com a certeza de ver seus textos publicados. Sem saber ao certo se era ou não um romancista, ele contribuiu para a riqueza da ficção inglesa, mas aprendeu a concentrar-se no formato do ensaio. E assimenfrentou as ortodoxias e os despotismos rivais de sua época munido de pouco mais do que uma máquina de escrever gasta e uma personalidade pertinaz. Impressionante nessa independência foi que ela precisou ser aprendida, adquirida, conquistada. A educação e os instintos proclamavam que Orwell era um tóri nato e até um tanto misantropo. Conor Cruise O’Brien, ele próprio um notável crítico de Orwell, afirmou sobre Edmund Burke que sua força residia em seus conflitos internos: As contradições na posição de Burke enriquecem sua eloquência, ampliam seu alcance, aprofundam seu páthos, intensificam sua fantasia e possibilitam seu estranho fascínio sobre os “homens de temperamento liberal”. Por essa interpretação, parte do segredo de sua capacidade de compreender os processos da revolução [francesa] deriva de uma simpatia reprimida pela revolução, combinada a uma compreensão intuitiva das possibilidades subversivas da propaganda contrarrevolucionária para afetar a ordem estabelecida em sua terra natal […] para ele as forças da revolução e contrarrevolução existem não só no mundo como um todo, mas dentro dele próprio. Com Orwell acontece mais ou menos o inverso. Ele teve de reprimir a desconfiança e a aversão que sentia pelos pobres, sua repulsa pelas massas “de cor” que proliferavam no Império, suas suspeitas contra os judeus, sua falta de jeito com as mulheres e seu anti-intelectualismo. Instruiu a si mesmo na teoria e na prática, em um processo às vezes deveras meticuloso, e se tornou um grande humanista. Somente um de seus preconceitos herdados — um estremecimento diante da homossexualidade — parece ter resistido ao esforço autodidata. E mesmo essa “perversão” ele frequentemente representou como um infortúnio ou deformidade resultante de condições artificiais ou cruéis; sua repugnância — quando ele se lembrava de fazer essa falsa distinção — era pelo “pecado” e não pelo “pecador”. (Há indícios esparsos de que alguma experiência infeliz da meninice eminstituições monásticas britânicas talvez tenha contribuído para isso.) Assim, o Orwell que alguns consideram tão inglês quanto o rosbife e a cerveja morna nasce emBengala e publica seus primeiros artigos em francês. O Orwell que sempre desgostou dos escoceses e do culto à Escócia estabelece seu lar nas (reconhecidamente despovoadas) Hébridas e é um dos poucos escritores de sua época a antever a potencial força do nacionalismo escocês. O jovem Orwell que tinha fantasias sobre enterrar uma baioneta nas tripas de um sacerdote birmanês torna-se umpaladino da independência da Birmânia. O igualitário e socialista vê simultaneamente a falácia da propriedade estatal e da centralização. O execrador do militarismo torna-se proponente de uma guerra de sobrevivência nacional. O altivo e solitário aluno de internato de elite dorme amontoado com vagabundos e mulheres da vida e força-se a suportar piolhos, penicos e detenções. O extraordinário nessa nostalgie de la boue é ser vivenciada com autopercepção humorística e semnenhum vestígio de abjeção ou mortificação religiosa. O inimigo do jingoísmo e do cristianismo vociferante é autor de textos elegantíssimos sobre poesia patriótica e tradição litúrgica. Essa tensão criativa, combinada a uma duramente conquistada confiança em suas convicções individuais, capacitou Orwell a ser, de maneira rara, premonitório com respeito não só aos “ismos” — imperialismo, fascismo, stalinismo —, mas também a muitos temas e assuntos que nos absorvemhoje. Relendo o conjunto de sua obra e estudando o vasto material recém-coligido no exemplar trabalho do professor Peter Davidson, vi-me na presença de um autor que ainda é vividamente contemporâneo. Alguns exemplos: seu trabalho sobre a “questão inglesa” e os assuntos afins do nacionalismo regional e integração europeia; suas ideias sobre a importância da linguagem, que anteciparam boa parte do que hoje debatemos sob as rubricas do psychobabble (“psicologuês”), discurso burocrático e “politicamente correto”; seu interesse pela cultura das massas ou popular, e pelo que atualmente se designa como “estudos culturais”; seu fascínio pelo problema da verdade objetiva ou comprovável — um problema central no discurso que hoje ouvimos dos teóricos pós-modernos; sua influência sobre a ficção posterior, inclusive a chamada “Angry Young Man” novel;** sua preocupação com o meio ambiente e com o que hoje chamamos de “conservacionismo” ou “ecologia”; sua extraordinária consciência dos perigos do “nuclearismo” e do Estado nuclear. Essa é uma lista parcial, com uma notável lacuna: a relativa indiferença de Orwell à importância dos Estados Unidos como cultura dominante emergente.
Mas mesmo nesse campo ele conseguiu registrar algumas percepções e previsões interessantes, e sua obra encontrou imediatamente umpúblico entre os autores e críticos americanos que valorizavam a prosa e a honestidade política inglesa.*** Entre eles, salientou-se Lionel Trilling, que fez duas observações de grande acuidade sobre Orwell. A primeira foi que ele era um homem modesto porque, em muitos aspectos, tinha várias razões para sê-lo: Se perguntarmos o que ele representa, do que ele é modelo, a resposta será: a virtude de não ser um gênio, de arrostar o mundo com nada mais do que sua inteligência simples, direta, não iludida, e um respeito pelas capacidades que possui e pelo trabalho que se propõe a fazer […]. Ele não é um gênio — que alívio! Que incentivo. Pois ele nos transmite a ideia de que o que ele fez qualquer um de nós poderia fazer. Essa percepção é de suma importância, também, para explicar o intenso ódio a Orwell ainda encontrado em algumas esferas. Com seu modo de viver e escrever, ele desacreditou a desculpa do “contexto histórico” e o dúbio álibi de que, dadas as circunstâncias, não se poderia ter feito outra coisa. Isso, por sua vez, autoriza a seguinte observação do professor Trilling, quando ele reflete com grande elegância sobre a natureza da integridade pessoal: Orwell aferrou-se, com uma espécie de orgulho irônico e rígido, a modos de ser tradicionais da classe que por último dominara a velha ordem. Deve ter se perguntado às vezes por que se pegava elogiando a lealdade, o cavalheirismo, o senso de dever e a coragem física. Parece ter pensado, e muito provavelmente com razão, que essas poderiam ser muito úteis como virtudes revolucionárias […]. “De frente” — como diz tão memoravelmente o capitão MacWhirr em Tufão, de Joseph Conrad —, “sempre de frente — é assim que se atravessa.” “Eu sabia”, comentou Orwell em 1946 sobre sua juventude, “que tinha facilidade com as palavras e uma capacidade de enfrentar fatos desagradáveis.” Repare que ele não diz habilidade para enfrentar, e sim “capacidade de enfrentar”. Singularmente bem expresso. Um comissário que percebe que seu plano quinquenal é inadequado e que o povo o detesta ou ri dele está, pode- -se dizer, confrontando um fato desagradável. E o mesmo vale para um padre com “dúvidas”. A reação desse tipo de pessoa a fatos desagradáveis raramente é a autocrítica; elas não têm“capacidade de enfrentar”. Seu confronto com os fatos assume a forma de evasão; reagem à descoberta desagradável redobrando os esforços para vencer o óbvio. Os “fatos desagradáveis” que Orwell arrostou foram em geral os que puseram em xeque sua posição ou suas preferências. Embora tenha popularizado e dramatizado o conceito da todo-poderosa teletela e tenha trabalhado por alguns anos no departamento de rádio da bbc, Orwell morreu cedo e pobre, antes que a era da austeridade desse lugar à era das celebridades e dos meios de comunicação de massa. Não temos nenhum registro real de como era recebido o que ele dizia, nem da impressão que ele causaria em umprograma de entrevistas na televisão. Provavelmente isso é bom. Suas fotografias mostram um sujeito magricela mas divertido, altivo mas de modo nenhum vaidoso. Na verdade, temos, sim, sua voz e, ao que parece, não chegamos a ponto de podermos afirmar que já não precisamos dela. Quanto a seu “gênio moral” — a expressão de Robert Conquest que, inadvertidamente, contradiz Trilling —, esse pode ou não ser encontrado nos detalhes.
1- Geleiras morais e mentais com algum derretimento/ Traem a influência de seu ardente intento./ Porque ele nos ensinou o significado do real/ A garra feroz do inverno é menos brutal.// Nem todos agradeceram seu auxílio,/ Foi odiado por quem vivia em idílio/ Com um mito paliativo de conforto apressado/ Contra as mentes frias deste mundo gelado.// Morremos de palavras. Ele restaurou a pessoa, o evento ou a coisa real como pedra fundamental;/ Por isso vemos que é o sofrimento e não a guerra/ A conjunção que mais abominação encerra.// Ele partilhou com o grande mundo, para fins gerais/ Aquela honestidade, curiosa virtude sagaz/ Que partilhamos com os poucos que não nos desamparam/ Um punhado de escritores, alguns amigos raros.// Um gênio moral. E a busca da verdade às vezes traz/ Uma tolice que o riso extravasa,/ Como Darwin ao tocar fagote para vegetais;/ Ele tinha deslizes, mas não se arrogava asas.// Enquanto uns afogam em ditirambo ou dogma frenético/ a parte empírica de uma verdade,/ Nenhum escritor poderia ser menos poético/ do que quem deixou esta lição para toda a poesia, toda a arte. (N. T.) 2- Romances de um grupo de jovens escritores ingleses dos anos 1950 e 1960 centrados no protesto social. (N. T.) 3- E ainda encontra. Logo em seguida ao ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, quando vários intelectuais e pseudointelectuais afetaram uma espécie de neutralidade entre as vítimas de Nova York, Pensilvânia e Washington e os fascistas teocráticos da Al Qaeda e Talibã, um e-mail circulou amplamente com o seguinte trecho do ensaio “Notes on nationalism”, escrito por Orwell em maio de 1945: Os pacifistas em sua maioria ou pertencem a obscuras seitas religiosas ou são simplesmente humanitários que se opõem a tirar a vida e preferem não raciocinar além desse ponto. Mas existe uma minoria de pacifistas intelectuais cuja motivação real, porém não admitida, parece ser o ódio à democracia ocidental e a admiração pelo totalitarismo. A propaganda pacifista geralmente se resume a dizer que um lado é tão mau quanto o outro, porém, quando examinamos com atenção os escritos dos pacifistas intelectuais mais jovens, constatamos que de modo nenhum eles expressam uma desaprovação imparcial, mas voltam-se quase totalmente contra a Grã-Bretanha e os Estados Unidos […]. 1. Orwell e o império Já se disse a respeito de George Orwell que, por conviver com os desempregados e os desvalidos da Inglaterra, ele se tornou “nativo em seu próprio país”. Esse comentário é ainda mais verdadeiro do que parece, como espero mostrar, mas por ora devemos salientar que a expressão “tornar-se nativo” era originalmente um termo depreciativo para designar os homens brancos que sucumbiamsob pressão. “Nativo” era um termo colonialista para wogs, niggers ou gyppos, 1 uma generalização preguiçosa de povos subordinados. De vez em quando, algum rapaz despachado para fora de sua terra saía dos eixos e dava de beber, dormir na hora da sesta ou — caso extremo — amasiar-se com alguma moça ou rapaz do lugar. Os oficiais e homens de negócios mais velhos e mais comedidos aprendiam a reconhecer esses sintomas: era parte de seu trabalho. Um antigo adágio radical diz que a vontade de comandar não é tão corruptora quanto a de obedecer.
Não sabemos com absoluta certeza o que impeliu Orwell a abandonar a vida de policial da colônia, mas aparentemente alguma versão desse mesmo provérbio ambíguo teve seu papel. A palavra “brutalizar” é mais empregada hoje no sentido de tratamento duro ou cruel dispensado a umfraco por um forte (“o Exército russo brutalizou os chechenos”, por exemplo). Na verdade, porém, o termo tem um significado mais sutil: o embrutecimento do forte que exerce a crueldade. “Em Moulmein, na Baixa Birmânia”, escreveu Orwell no início de seu ensaio “O abate de umelefante”, “eu era detestado por grande número de pessoas — a única vez na vida em que fui importante o suficiente para isso acontecer comigo. Eu era policial de subdivisão da cidade […].” É uma interessante coincidência que Moulmein apareça na primeira linha do esplêndido e disparatado poema “Mandalay”, de Rudyard Kipling, sobre a nostalgia imperial (“By the old Moulmein Pagoda, lookin’ eastward to the sea,/ There’s a Burma girl a-setting, an’ I know she thinks o’ me”). 2 Mas nada havia de romântico na descrição do lugar feita por Orwell; claramente, em algum nível ele receava que a vivência como policial o transformasse em um sádico ou em um autômato. Em “Umenforcamento”, ele descreve a medonha futilidade de uma execução e a falsa jocosidade do humor do patíbulo; sua honestidade forçou-o a confessar que ele participara dos risos vazios. Em “O abate de um elefante”, ele esboça o lado sórdido da mentalidade colonial: […] eu já tinha concluído que o imperialismo era algo maligno e que quanto antes eu renunciasse ao emprego e saísse dali, tanto melhor. Na teoria — e, claro, no íntimo — eu era a favor dos birmaneses e contra os opressores, os britânicos. Quanto ao trabalho, eu o detestava mais profundamente do que talvez seja capaz de expressar. Em um emprego como aquele vê-se de perto o trabalho sujo do império. Os infelizes que se comprimiam nas fétidas celas das prisões, os rostos pardos e assustados dos condenados a longo prazo, os traseiros marcados com cicatrizes dos homens açoitados com bambu — tudo isso me oprimia com uma sensação de culpa insuportável. 3 Essa animosidade e confusão em seu íntimo não se traduziam de modo algum em simpatia pelos “nativos”, e quando eram sentidas com suficiente intensidade transformavam o trabalho de Orwell em uma tortura; é no mínimo perdoável especular que ele talvez tenha deixado o serviço tão abruptamente por medo de acabar se acostumando demais com a contradição. Em seu romance posterior, Dias na Birmânia, o protagonista, Flory (que antecipa em alguns anos o escaldante cosmos da república de banana de Graham Greene), é compelido a viver em “um mundo sem ar, estupidificante. Um mundo em que cada palavra, cada ideia, é censurada […] a liberdade de expressão é impensável […] o esforço para manter sua revolta em silêncio acaba por envenená-lo como uma doença secreta”. Deve ser óbvio que essa é uma forte prefiguração da mentalidade de Winston Smith em 1984; e fica provado que não se trata de exagero nas memórias do amigo e contemporâneo de Orwell Christopher Hollis, que o visitou na Birmânia em 1925 e o pegou declamando chavões sobre lei e ordem: “Ele se esforçava para ser o policial do império, explicava que essas teorias sobre punição sem castigo físico até podiam dar certo nas escolas de elite, mas que com os birmaneses não funcionavam […]”. Quatro anos depois, o jornal Le Progrès Civique de Paris publicou um ensaio em francês de umcerto “E. A. Blair” intitulado “Comment on exploite un peuple: l’Empire Britannique en Birmanie” [Como se explora um povo: o Império Britânico na Birmânia]. É justo qualificar esse artigo de bemacabado; ele começa com uma cuidadosa descrição da topografia e da demografia do país, passando então a um meticuloso exame do modo como o poder colonial despoja os birmaneses de seus recursos naturais e dos frutos de seu trabalho. Em todas as características essenciais, é um estudo sobre o subdesenvolvimento deliberado e os meios pelos quais as matérias-primas são usadas para financiar o progresso industrial de outro país. Mas também se pode notar a emergência de outra alegoria: o interesse profundo e pesaroso do autor pela passividade e docilidade das vítimas, que pouco ou nada sabem do grande mundo mercantil do qual seu povo está sendo excluído. Esse artigo foi o último de uma série de textos encomendados pela imprensa radical parisiense escritos por “E. A.
Blair” — nome pelo qual ele era conhecido em Eton e na polícia birmanesa, e que só seria trocado por Orwell em 1933, com a publicação de Na pior em Paris e Londres. O primeiro desses ensaios foi uma análise da censura na Inglaterra, publicado no semanário Monde, de Henri Barbusse, uma espécie de publicação da frente cultural- -literária do Partido Comunista Francês. O artigo também trazia um estudo minucioso de uma questão específica imbuída de sugestões interessantes na esfera psíquica. As autoridades britânicas, escreveu “E. A. Blair”, não eram exatamente censuradoras, e sim puritanas, e só sentiram a necessidade de censurar com o advento da ética protestante e capitalista. Esse era um argumento bem comum mesmo para a época, mas ainda assim pressagiou um interesse vitalício pelas relações entre poder e repressão sexual (um tema não ausente das suarentas reflexões de Flory em Dias na Birmânia). Nunca se ressaltou que os diários de Orwell nos tempos de miséria, suas narrativas sobre lavar pratos em Paris, colher lúpulo e perambular pela Inglaterra também mostram sensibilidade para o que se poderia chamar de “questão nativa”. Argelinos, marroquinos e outros personagens francoafricanos são um elemento marcante em suas descrições dos parisienses destituídos, enquanto na Inglaterra, vagueando entre Wapping e Whitechapel, o autor observou: “As mulheres do leste de Londres são bonitas (é a mistura de sangue, talvez), e Limehouse estava cheia de orientais —chineses, lascares de Chittagong [Bangladesh], dravidianos vendendo lenços de seda, até alguns siques, Deus sabe como”. Não era qualquer escritor freelance inglês de 28 anos que tinha capacidade para discernir um dravidiano de um sique, muito menos dizer o nome do porto natal dos lascares.
.