Ela se detestava, desde criança. A começar pelo nome: Gilmara. Nas vizinhanças de sua casa havia Mônicas, Cláudias, Paulas, Solanges, Patrícias e até mesmo uma Zulmira. Mas Gilmara, só ela. Culpa do pai, que gostava de futebol, chegara a ser goleiro de um time amador, lá em Madureira, no tempo em que era jovem e pobre. Depois, ele melhorara de vida, viera morar em Vila Isabel, um suburbano que deixa para trás os trilhos da Central do Brasil e se instala num bairro sem trem pode se considerar um vencedor, um homem que chegou lá. O pai deixara de jogar, mas continuava a amar o futebol, seus grandes ídolos eram goleiros, houve época em que idolatrou Castilho e Barbosa, até que surgiu o deus maior, absoluto, Gilmar, campeão do mundo em 1958, bicampeão em 1962. Ela nasceria em 1970, e o pai cismara que desta vez teria um filho, pois já tinha em casa duas meninas. Por azar ou sorte, veio uma terceira garota, e o pai já havia escolhido um nome para “ele”: Gilmar. Quando a cunhada, que era instrumentista do Hospital das Famílias, saiu do centro cirúrgico com a criança ao colo, enrolada em cobertores, o pai quase gritou: — Ganhei! É menino! Vai se chamar Gilmar! Não era menino: a cunhada desdobrou os cobertores e mostrou uma criancinha avermelhada, a boquinha desdentada aberta num bocejo miúdo que parecia um pouco de cansaço por ter nascido e um pouco de gozação, por afinal estar do lado de fora. — Não é menino! É menina outra vez, veja, está gordinha, nasceu num instante, não deu trabalho… O pai olhou a criança com decepção e murmu rou, voz baixa, quase entre os dentes: — Então será Gilmara. Não tenho outro nome na cabeça e, pensando bem, para uma menina, qualquer nome serve! Não era somente o próprio nome que Gilmara detestava. Detestava também o seu corpo, aquele corpo que não chegava a ser pequeno, até que era mais alta do que as amigas e colegas, mas a gordura, enorme, sem forma e sem fundo, quando se abaixava para apanhar alguma coisa no chão, chegava a ficar monstruosa, pedaço de carne mal-embrulhada, grotesca. Desde que se entendia, trazia aquele fardo suplementar: era gorda, marcava-se pela gordura, referiam-se a ela como “a gorda”, sequer merecia o diminutivo que amenizava a feiura de ser gorda: a gordinha. Em casa, na rua, no colégio, era a gorda, e embora acumulasse outros apelidos, cada qual pior do que o outro, obtivera consenso: “a gorda.” Depois de certo tempo se habituara, já quase não sofria por ser a gorda. Entre os apelidos: Bolão do Vasco, Wilza Carla, Saco de Bosta, Baleia, Cebolona, Maria Gorda, Saco Cheio, e, o pior de todos, o que mais a maltratava: Vaca Mole. Ela se olhava no espelho, com algum treino já aceitava sem sofrer os outros apelidos, mas aquele Vaca Mole encontrava nela um tenro espaço, por onde penetrava, espinho e lâmina em brasa, aquela Vaca Mole. Gilmara Vaca Mole. Aos dez anos, ela desistiu de ser feliz. v A FAMÍLIA ATÉ QUE não era tão ruim. O pai, apesar de cultivar alguns desafetos, também podia ser perdoado, embora se chamasse Washington. Afinal, ele sentira na própria pele o estigma que impusera à filha. Também o pai dele tivera admirações, uma delas não era um goleiro, mas presidente da República, Washington Luís, e ao primeiro filho varão deu-lhe o nome e o destino: — Será Washington, como o presidente. Um dia chegará a mandar no Brasil.
Washington não chegou a mandar no Brasil, nem mesmo na casa dele mandava, pois dona Olga, sua mulher, tinha aquilo que antigamente se dizia: cabelos nas ventas. Ou seja, ela é quem mandava, na casa, nos filhos, nos empregados e, sobretudo, no marido. Mesmo assim, viviam bem, davam para o gasto, e como Washington tinha jeito para os negócios, prosperou na vida, tanto que abandonou Madureira, a pasmaceira do subúrbio, a longa distância dos trilhos da Central, e comprou a casa de altos e baixos na rua Souza Franco, quase na esquina de Torres Homem. Foi nesta casa que Gilmara nasceu, ou melhor, ela acabou nascendo mesmo no hospital, não muito longe dali, no Andaraí, mas a família já se estabelecera em Vila Isabel, tudo corria bem dentro e fora de casa, os negócios prosperavam, ele vendia terrenos e casas, a mulher ajudava na economia doméstica, fazendo doces e bolos para aniversários, batizados e casamentos, era perita e tinha relações, enfim, largaram a viela suburbana, sem calçamento e sem calçadas, e ali estavam, a dois passos do antigo boulevard, hoje rebaixado a simples avenida, conservando a larga perspectiva de um urbanista francês que tentara inutilmente corrigir o traçado das ruas do Rio. Consumada a mudança, com as duas filhas já beirando os quatro e os três anos, Olga decidiu ter mais um filho, e Washington só topou a ideia porque a mulher garantiu que desta vez teria um macho, um garoto com a cara do pai, a bossa do pai. E Washington determinou: — Será Gilmar! A mulher não estrilou, calou — o que não significava que concordasse. Quando, nove meses mais tarde, nasceu mais uma garota, ela já havia escolhido outro nome, Maria das Dores, para combinar com as outras Marias anteriores que dera à luz: Maria do Carmo e Maria de Lourdes. Nomes suburbanos, nomes daquele tempo, não passaria pela cabeça de Olga ter uma filha chamada Sílvia, Rosane ou Mary. Estava mal-informada. No dia seguinte ao nascimento da terceira filha, quando convocou o marido para comunicar-lhe que a filha se chamaria Maria das Dores, Washington surpreendeu-a com a primeira e última rebelia da vida conjugal: — Não adianta, Olga, eu já registrei a menina, ela será Gilmara… — O quê? Isso lá é nome? — É nome como outro qualquer… — Se tivesse nascido homem, você teria o direito de dar o nome daquele goleiro, mas nasceu menina, o direito é meu… — Agora é tarde. Quem não tem Gilmar vai mesmo de Gilmara… Não houve briga maior por causa disso. A menina ficou sendo Gilmara, e a mãe acabou se habituando e o pai, orgulhoso por ter conquistado a vitória doméstica, passou a exibir a caçula como um troféu, um estandarte: — Gilmara! O nome fui eu quem escolhi! Mais tarde, as irmãs até que aprovaram a escolha. Não que gostassem especialmente daquele nome, mas era como uma separação de bens, de sangue, de educação: de um lado, as duas Marias, do Carmo e de Lourdes, unidas em sua magreza enfezada e dura. De outro, Gilmara, nome de jogador de futebol, com aquela gordura toda que, aos cinco anos, já era decantada pelas vizinhanças: menina que comia muito, ou que pedia doces aos pais, recebia a advertência fatídica: — Se comer muito doce, vai ficar igual à Gilmara! Uma loja de doces caseiros que tentou abrir suas portas na mesma rua, um mês depois, teve de mudar de ramo e virou tinturaria. Gilmara era mais do que uma criança: era um símbolo, uma forma errada de caminhar pela vida. v PARA PIORAR, ANTES DE COMPLETAR quatro anos ela teve um problema na vista. Estava no quintal, brincando com as irmãs, quando Maria de Lourdes, um pouco por acaso, um pouco de propósito, jogou umpunhado de terra na direção de Gilmara. Ela estava desprevenida, não desviou o rosto, recebeu emcheio aquele punhado de terra. No início, sentiu apenas a garganta arder, ela esperava tudo da irmã, de uma irmã sempre se espera as piores coisas, por isso engolira um pouco de terra e tivera umacesso de tosse. Depois sim: afinal, a irmã mais velha, Maria do Carmo, dera-lhe palmadas nas costas para impedir a sufocação, e só então Gilmara sentiu que a vista esquerda ardia. Tiveram de levar a irmã para dentro da casa e avisar a mãe. Bem que Gilmara reclamava que a vista doía, mas dona Olga achou preferível limpar o rosto da pequena, ela não tolerava sujeiras. E depois de lavar-lhe o rosto, obrigou-a a mudar de roupa; filha dela havia de ser limpa como umfundo de panela — outra das manias de dona Olga era essa, limpar o fundo das panelas até que parecessem uma lasca de foguete espacial. Ninguém — nem a mãe nem as irmãs — deu importância à queixa da garota. O importante era a limpeza e a paz.
Quando Washington chegou — e por azar ele chegou tarde naquele dia — a menina conseguiu ser ouvida e, em parte, atendida. — Deixa eu ver — disse o pai, suspendendo-lhe a pálpebra. Não precisava ser um especialista para descobrir um cisco que havia se colocado num dos cantos superiores do globo ocular esquerdo. Inicialmente, o pai achou que com alguns sopros resolvesse o problema. Soprou, soprou, ralhou coma filha, que teimava em piscar os olhos, finalmente desanimou e decretou: — Amanhã você vai ao oculista. No dia seguinte, o rosto de Gilmara parecia um pudim desfeito, com o olho inflamado, a pálpebra colada, um desastre. Duas semanas depois, com uma pequena cirurgia, o olho voltara ao normal, mas ela passou a queixar-se de ardência e dores de cabeça. Mais exames, mais curativos e, como resultado, um par de óculos grossos, as lentes pareciam fundo de garrafa. O visual da garota estava pronto para iniciar o resto de seus dias pela infância. Além da gordura, aqueles dois vidros imensos que lhe davam um ar de retardada, de quase mongoloide. Passado o susto, as irmãs voltaram a tratá-la como de hábito, e o resto da rua tomou-a como exemplo definitivo da criança que não dera certo. E foi justo nessa época que Gilmara teve o primeiro amor de sua vida. Evidente que um amor infeliz, não correspondido: apaixonara-se pelo carteiro, um tal de Carlinhos, que devia andar pelos 20 ou 22 anos. Era franzino e feio em seu uniforme cáqui, com as mangas sempre suadas, a barba rala por fazer, os sapatos (mais tarde os tênis) em petição de miséria. Ela nem sabia como aquilo acontecera. Uma vez em cada dia, o carteiro chegava com a sacola e ia deixando a correspondência pelas casas. Embora sem nada compreender do ofício dele, Gilmara sabia que ninguém dava importância a Carlinhos, até que, um dia, dona Olga perguntou da janela do quarto: — O correio já chegou? Não, o correio não havia chegado — responderam as irmãs mais velhas. E dona Olga recomendara: — É que estou esperando uma carta. Me avisem logo que ele passar. Maria de Lourdes e Maria das Dores logo se esqueceram da recomendação, mas Gilmara montou guarda, no portão, até que avistou o vulto magro e desengonçado do carteiro. Entrou pela casa correndo — tanto quanto lhe favoreciam as banhas do corpo. — Mamãe! Mamãe! O carteiro! Dona Olga foi ao portão, conversou um pouco com Car linhos, depois voltou para dentro, desanimada, sacudindo na mão a conta do gás. Não, a tal carta não havia chegado. E assim começou uma rotina, dias e dias, com Gilmara sempre espreitando a chegada do carteiro, até que, numa sexta-feira, dona Olga recebeu a carta esperada. Para Gilmara, aquilo tudo era incompreensível, mas que diabo, afinal adquirira um hábito, ficava horas sentada na soleira do portão, olhando em direção ao boulevard, até que surgisse a figura magra de Carlinhos, sempre naquele uniforme cáqui, sempre com as mangas suadas.
Recebida a carta, dona Olga passou a não dar qualquerimpor tância ao carteiro, mas Gilmara continuou a esperá-lo, a observá-lo. Nunca falava com ele, nem ele com ela, mas pouco depois da chegada da tal carta, ao entregar outra conta de luz ou do telefone, o carteiro finalmente notou aquela menina gorducha, de enormes óculos na cara, que mais parecia um sapo satisfeito e compenetrado em seu ofício de sapo. Abaixando-se, apertou-lhe as bochechas e disse baixinho: — Garota bonita! Foi um estalo. Muitos anos mais tarde, depois de tudo o que lhe sucederia em matéria de vida, Gilmara jamais esqueceria aquele apertão nas bochechas, aquele cumprimento — o primeiro e o mais saudável que recebera: garota bonita! Então, havia alguém no mundo que a achava bonita e lhe dera um afago — que na verdade não passara de um beliscão! Se o mundo era incompreensível para ela, mais incompreensível ficou depois que Carlinhos sumiu. Um dia, sentada na soleira do portão, olhando em direção ao boulevard, ela viu surgir na esquina um camarada gordo, lento, pastoso: era o novo carteiro. Gilmara nem lhe sabia o nome. Ao cruzar o portão nem olhou para ela nem para a sua casa, não havia correspondência naquele dia — e Gilmara achou que o substituto de Carlinhos devia ser um péssimo carteiro. Ainda tentou um milagre, tentou o impossível, nos dias seguintes continuou a esperar Carlinhos, mas agora sempre vinha todos os dias aquele homem gordo e pastoso, que nunca reparava nela, vez ou outra deixava alguma carta no buraco embutido no muro, ao lado do portão. Bem, houve uma vez em que os olhares se cruzaram, mas logo o novo carteiro desviou sua atenção daquela menina gorda e feia — tão gorda e feia como ele próprio. Então, Gilmara descobriu que não adiantava esperar o seu carteiro e decidiu não esperar mais nada: aprendeu que não valia a pena ter esperança. v AOS OITO ANOS, a mãe pegou-lhe pela mão, cruzou a esquina do boulevard e entrou na igreja do bairro, que estava permanentemente em obras. A menina já se habituara a ser a última a saber das coisas que aconteceriam com ela — e aquela foi mais uma. Só depois de ver a mãe falar com um padre e uma freira, ficou sabendo que iria fazer a primeira comunhão — uso que à época era frequente, mesmo emfamílias raramente piedosas e incertamente católicas. De início, ela pensou que o curso de catecismo seria uma espécie de escola paralela — e esse pensamento a inquietou, fazendo-a suar nas têmporas e nas mãos. No final da primeira semana de aulas, descobriu que havia se enganado: o curso de catecismo, ministrado pela freira e, em momentos mais solenes, pelo próprio vigário, era pior e cruel. Na escola, bem ou mal ela se defendia dos agravos e insultos, procurava ser mais aplicada do que as outras, e, embora seus recreios fossem martírios, durante as aulas sempre a deixavam em paz, sobretudo quando professores e colegas eram obrigados a admitir que a Vaca Mole, a Saco de Bosta, a Baleia era a melhor aluna da classe. Nas aulas de catecismo, ali no escuro salão da casa paroquial, ao lado da matriz, Gilmara ficou sabendo o significado da palavra calvário. Sim, o monte onde sacrificaram o Salvador, a sala onde a crucificavam, das duas às cinco da tarde, todos os dias, sob o pretexto de participarem todas do celestial banquete — hipérbole muito usada então para designar a Sagrada Comunhão. Se os colegas a maltratavam, a freira vinha em cima — não dos colegas, mas dela. Uma tarde, depois de ter sido repreendida por não saber diferenciar os pecados mortais dos veniais, houve umcurto silêncio entre os pios meninos e ouviu-se um rumor estranho, seguido de um cheiro forte e desagradável. Pelo volume do estrondo e pelo cheiro concentrado e fétido, era evidente que o pumfora soltado pela própria freira. Mas os meninos abaixaram a cabeça, prevendo que, pela evidência do rumor que não deixava margem para dúvida, e pelo terrível do cheiro, impossível de ser ignorado, alguma coisa de grave deveria ocorrer. E ocorreu. Quando o cheiro empesteou a sala toda, tornando impossível o seu desconhecimento, a freira encarou a classe e lançou a pergunta que todos temiam: — Quem foi? Dificilmente, em momentos assim, alguém levanta o dedo e se acusa. Ninguém se levantou, nemlevantou o dedo.
A freira insistiu: — Quem foi que soltou esta porcaria? Jesus quer saber quem foi. Quem não se acusar, além de ter ofendido a Nosso Senhor, de ter feito Nossa Senhora chorar, ficará de castigo. Silêncio. Os alunos abaixavam a cara, como se aquilo não fosse com eles. Gilmara quase teve vontade de dizer “acho que foi a senhora”, mas preferiu ficar em silêncio. Então aconteceu: Marcelo, um menino sardento, muito chegado aos incensos e às missas, levantou-se e de dedo duro apontou em direção a Gilmara: — Foi ela. Gilmara não acreditou no que via e ouvia. Mesmo assim ficou com as bochechas tão vermelhas que pareciam uma autoacusação. Ia dizer que estava inocente, que não fora ela, quando a freira deu o golpe de misericórdia: — Eu bem que sabia! E alteando a voz: — Fora! Fora daqui, sua porca! Fazer essas imundícies aqui, diante de Nosso Senhor Jesus Cristo! Vá para a igreja e fique de joelhos, rezando, pedindo perdão a Deus e a Nossa Senhora, até a aula acabar. E se fizer esta porcaria outra vez, sabe o que acontece: você vai acabar no inferno, para lá é que vão as crianças que cometem porcarias e ofendem a dignidade da Casa de Deus! Pela primeira vez, Gilmara sentiu raiva e teve vontade de reagir. Não contra a acusação principal, da qual ela se sabia inocente, mas da colocação que a freira dava a seu crime: — Mas isso aqui é a casa do padre, não é a Casa de Deus! A freira entrou em estertor. Falou, falou, e Gilmara tanto ouviu que, sem ter notado, já estava ao lado da mãe que lhe puxava as orelhas e a levava para casa, onde uma surra lhe era prometida. Foi necessária complicada intermediação de Washington com o vigário. Gilmara retornou ao catecismo e o grande dia acabou chegando — como chegam todos os dias, bons ou maus. O curso, agora no final, não era mais na casa paroquial, mas na própria igreja. Ensaiava-se o celestial banquete, as músicas e hinos eucarísticos e, sobretudo, a coroação de Nossa Senhora, pois a primeira comunhão daquela turma coincidiria com o final do mês de maio, mês de Maria. De uma paróquia vizinha chegou um padre para ajudar o vigário. Era moço e afrescalhado, muito entendido nas cerimônias todas. Foi esse padre quem desenhou as roupas que as famílias deveriam providenciar para que todos os comungantes se apresentassem com decoro à mesa sagrada: os meninos viriam de terninho branco, meias brancas, cabelos cortados uniformemente. As meninas viriam de anjinho, camisolas de cetim prateado, asas de penas de galinhas brancas, a guirlanda de pequeninas flores azuis na testa. — E agora — avisou o jovem padre — vamos escolher aquela menina que, entre todas, terá a honra de coroar Nossa Senhora. Para isso, faremos um ensaio. À medida que eu chamar, cada uma se dirige ao altar, faz uma reverência ao Santíssimo Sacramento, dá a volta e sobe aquela escada ali atrás, lentamente, com toda a dignidade, mãos postas, olhares baixos, e, chegando lá em cima, espera que o coro das Filhas de Maria cante o hino “Com Minha Mãe Estarei”. Quando chegar no trecho no céu, no céu, com minha mãe estarei, a menina deve afastar as mãos, estendendo-as em direção à cabeça da Virgem. Então o vigário lhe entregará a coroa, que a menina tomará, suavemente, e, suavemente, a colocará na fronte da virgem, de forma que, neste momento, o coro esteja cantando novamente o estribilho, no céu, no céu, com minha mãe estarei.
Entendido? Para falar a verdade, ninguém entendeu direito, mas não houve objeções. O ensaio começou pela primeira fila de bancos e as meninas, uma a uma, fizeram o que podiam. Excitado pela cerimônia que comandava, o padre dirigia a coreografia — que ele chamava de liturgia — batendo palmas para marcar o compasso da música, no céu, no céu, com minha mãe estarei, ao mesmo tempo que berrava ordens e correções, assim não, cabeça baixa, menos depressa, não olhe para os lados, se alguém rir eu expulso, vamos, mais concentração, vocês vão coroar a Rainha do Céu e da Terra, vamos, mais devagar, cuidado com os degraus, lembrem-se que no dia vocês estarão vestidas de anjos, cuidado para não rolarem da escada, será um pecado mortal, uma ofensa a Deus Nosso Senhor, vamos, no céu, no céu, com minha mãe estarei… Uma a uma, as meninas iam cumprindo o ensaio, até que chegou a vez da Gilmara, uma das últimas por sinal. O pessoal já estava cansado, e o padre impaciente e azedo. Afinal, nenhuma da quelas gurias levava jeito para a coisa, todas espevitadas, dispersivas, mal-educadas. Quando Gilmara saiu da fila dos bancos e começou a caminhar em direção ao altar, o padre caiu das tabelas. Não havia reparado ainda naquela menina gorda, de óculos enormes. — Não. Você não. Não precisa. Gilmara não esperava por aquilo. Certo que se habituara a ser discriminada, a ser relegada emhoras que exigissem formalidade maior, mesmo assim achava que ali na igreja, diante de Deus e da Virgem, todos seriam iguais e teriam as mesmas chances. O berro do padre a surpreendeu e, num dos raros momentos de fraqueza — apesar de seus oito anos —, teve vontade de chorar. — Você não, você não precisa… O padre estava exausto e frustrado pelo péssimo ensaio, gostaria de ter merecido uma turma melhor e mais compenetrada, sua fama de mestre de cerimônias não ganharia nada com aqueles meninos e meninas da classe média, quase pobres, se o cardeal cismasse de vir assistir à cerimônia, ele não progrediria, não faria pontos, mofaria eternamente em cerimônias iguais pelos subúrbios e pelos bairros da Zona Norte… um desperdício, ele que estudara liturgia em Roma, que chegara a merecer elogio do Legado Pontifício, que viera rezar a missa solene da inauguração de Brasília! Gilmara parou onde a surpreendera o berro do padre. Não queria que os colegas vissem a sua cara: não chorava, ainda, mas a discriminação doera fundo — e muito. — Pode voltar para o banco… onde já se viu uma coisa dessas… parece um sapo… Os colegas riam baixinho. O próprio padre aprovou o riso, ele também ria, de raiva, por ter ali uma menina tão gorda e feia. Gilmara estava habituada a trancos assim, mas decidiu reagir: — Eu já li num livro a história de um sapo que foi à festa no céu… O padre se surpreendeu com a reação da menina. Olhou-a atentamente. Além de horrenda, era atrevida. — Sim, o sapo foi à festa sem ser convidado e caiu lá de cima. Você quer cair da escada, desmoralizar a festa, fazer todo mundo rir? Palhaça não tem na igreja… Gilmara insistiu: — Eu também li num livro que um palhaço queria rezar à Nossa Senhora, mas não sabia oração alguma. Então começou a fazer palhaçadas diante do altar da Virgem. E a Virgem sorriu para ele, achou graça nele…
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