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Abandono – Meg Cabot

Certa vez, morri. Ninguém sabe ao certo por quanto tempo me fui. Fiquei sem me mover por mais de uma hora. Estava com hipotermia também, e foi por isso que os desfibriladores e a dose esmagadora de adrenalina me trouxeram de volta quando os médicos me aqueceram. Pelo menos foi o que disseram. Tenho outra opinião sobre o que me mantém entre os vivos, mas aprendi a não expressá-la. Viu uma luz? É a primeira coisa que todo mundo quer saber quando descobre que morri e voltei. Foi a primeira coisa que meu primo Alex, que tem 17 anos, perguntou hoje à noite na festa da mamãe. — Viu uma luz? Assim que Alex falou, seu pai, meu tio Chris, deu um tapa atrás da cabeça dele. — Ai — exclamou Alex, massageando a cabeça. — Qual o problema em perguntar se ela viu uma luz? — É falta de educação — respondeu tio Chris, seco. — Não se pergunta isso a uma pessoa que morreu. Tomei um gole de refrigerante. Mamãe não perguntou se eu queria uma festança de boas-vindas a Isla Huesos, mas como dizer não? Ela estava tão animada. Acho que convidou quase todos os seus velhos conhecidos, inclusive a família inteira, que, com exceção de mamãe e de seu irmão mais novo, Chris, nunca havia se mudado da ilha de 3 quilômetros por 6 localizada na costa sul da Flórida. Foi onde todos nasceram. No entanto, tio Chris não deixou Isla Huesos para estudar, se casar e ter filhos, como aconteceu com mamãe. — Mas o acidente foi há quase dois anos — disse Alex. — Não é possível que ela ainda fique chateada. — Olhou para mim. — Pierce — disse com sarcasmo —, você ainda fica chateada com o sobre o fato de ter morrido e voltado à vida há quase dois anos atrás? Tentei sorrir. — Já superei isso — menti. — Não disse? — falou Alex para o pai. — Então, você viu ou não viu uma luz? — perguntou para mim. Respirei fundo e repeti o que havia lido na internet.


— Praticamente todos os EQM contam que, quando morreram, viram alguma coisa, geralmente algum tipo de luz. — O que é um EQM? — perguntou tio Chris e coçou a cabeça. Usava um boné de beisebol da Iscas e Equipamentos Isla Huesos. — É uma pessoa que teve uma experiência de quase-morte — expliquei. Senti vontade de coçar a pele embaixo do vestido que mamãe havia comprado para mim. Estava muito apertado no peito. No entanto, achei que não seria educado fazer isso, apesar de tio Chris e Alex serem da família. — Ah — disse tio Chris. — EQM. Entendi. Li que os EQM podiam sofrer profundas alterações de personalidade e dificuldade de se reajustar à vida após… bem, após a morte. Contam sobre pastores pentecostais que voltaram da morte e viraram ciclistas; sobre ciclistas radicais que voltaram e foram direto para a igreja mais próxima. Acho que reagi bem, considerando a minha experiência. O pessoal da Academia Westport para Meninas não acha o mesmo. Dei uma olhada nos documentos que a minha antiga escola nos enviou sugerindo que meus pais encontrassem uma “solução educacional alternativa” para mim — a maneira educada que acharam para dizer que fui expulsa pelo “incidente” na última primavera. Pierce não se dedica. Por vezes, tem sua concentração dissipada. Quando decide prestar atenção, tende a focar-se demasiadamente em tópicos não pertinentes à aula. Sugerimos testes de variáveis de atenção. Esse relatório foi escrito logo depois do acidente — que ocorreu mais de um ano antes do “incidente” —, quando eu tinha algumas coisas mais importantes com que me preocupar do que o dever de casa. Aqueles idiotas me tiraram até da peça na qual eu faria o papel principal, Branca de Neve. Como foi que a professora de teatro falou mesmo? Ah, sim: eu estava me identificando um pouco demais com a coitadinha da Branca de Neve depois que a personagem ressuscita. Não sei mesmo como podia ter evitado isso, porque, além de ter morrido de verdade, eu também nasci rica como uma princesa, graças a papai. Ele é o presidente de um dos maiores fornecedores mundiais de produtos e serviços para indústrias de petróleo, gás e armamento (todo mundo já ouviu falar de sua empresa. Ela está em todos os jornais, especialmente nos últimos tempos).

Eu também nasci com jeito de princesa, graças a mamãe. Herdei seu porte delicado, cabelo negro e grosso, olhos escuros e grandes… Infelizmente, também herdei o coração sensível de mamãe. Foi o que acabou me matando. — Foi como o fim de um túnel? — Alex quis saber. — É o que as pessoas sempre falam sobre a luz. — Sua prima não caminhou para a luz — disse o pai, preocupado. — Se tivesse feito isso, não estaria aqui. Pare de encher o saco. — Não tem problema — respondi sorrindo para tio Chris. — Não me importo em responder perguntas. — Na verdade, me importava sim, mas ficar no quintal dos fundos com tio Chris e Alex era muito melhor do que ficar lá dentro com um bando de gente que eu não conhecia. — Algumas pessoas falam que veem a luz no fim do túnel. Nenhuma delas sabe exatamente o que é, mas todas têmteorias. — Que teorias? — perguntou Alex. Um trovão lá longe fez um barulho não muito alto. As pessoas dentro da casa provavelmente não ouviram nada além das gargalhadas, da água na cachoeira sobre a piscina e da música que mamãe colocara para tocar — algo parecido com rock. Mas eu ouvi. O trovão veio logo após um relâmpago. Não foi um relâmpago normal de um dia de calor, apesar de estar quente. Era uma noite abafada de setembro no sul da Flórida, o mesmo clima que fazia em julho em Connecticut, mas aquele trovão fora causado por uma tempestade que estava se formando no mar e que vinha em nossa direção. — Não sei — respondi. Tentei me lembrar de outras coisas que havia lido. — Alguns acham que a luz é um caminho para outras dimensões espirituais que só os mortos podem ver. Alex sorriu. — Maneiro — disse.

— Devem ser os portões do paraíso. — Pode ser — respondi, dando de ombros —, mas os cientistas dizem que a luz é apenas uma alucinação produzida pelos neurotransmissores do cérebro funcionando todos ao mesmo tempo antes da morte. Tio Chris fez uma expressão triste. — Gosto mais da explicação do Alex — comentou. — São os portões do paraíso. Não foi minha intenção fazer com que tio Chris ficasse chateado. — Ninguém sabe ao certo o que acontece quando morremos — complementei rapidamente. — Você sabe — retrucou. O vestido branco ficou mais apertado do que nunca. O que vi quando morri não foi uma luz. Não foi nem parecido com uma luz. Não gosto de mentir para tio Chris. Sabia que não era para estar falando sobre aquelas coisas, especialmente porque mamãe queria que tudo fosse perfeito naquela noite… Não só naquela noite, mas daquele dia em diante. Não queria decepcioná-la. Ela fez tudo o que pôde, comprou a casa milionária, trouxe uma amiga de Nova York para decorá-la. Teve a ajuda de um paisagista antenado com técnicas sustentáveis. Ele plantou árvores e flores nativas, como jasmins, para que o ar tivesse o mesmo cheiro daqueles anúncios de revista para perfumes de celebridades. Mamãe comprou até uma motocicleta “de praia” com cesta e buzina — eu ainda não tinha carteira de motorista. Pintou o meu quarto de lavanda e me matriculou na mesma escola que ela própria havia frequentado vinte anos antes. — Você vai amar, Pierce — dizia. — Você vai ver. Vamos começar do zero. Vai ser ótimo. Sei que vai. Eu tinha todos os motivos para achar que as coisas não iam ser ótimas, mas não falei nada.

Mamãe estava tão feliz… Ela até contratou cozinheiros profissionais para a festa para prepararem e servirem coquetéis de camarão, bolinhos de molusco e espetos de galinha. Colocou velas de citronela na piscina para espantar os mosquitos, ligou a cachoeira da piscina e abriu as portas da casa. — Que brisa agradável — disse mamãe. Preferiu ignorar as enormes nuvens carregadas no céu escuro. Também preferiu ignorar que tinha voltado para Isla Huesos a fim de aprofundar suas pesquisas sobre colhereiros — pássaros que se parecem com flamingos, mas com bicos no formato de uma colher — logo após o pior desastre ecológico da história americana, que matou a maioria deles. Ah, ignorou também que sua filha querida havia ressuscitado e não estava muito… normal. Foi por causa disso que o casamento deles foi pelo ralo. Na verdade, o divórcio começou quando eu ainda estava no hospital. Mamãe mandou que papai saísse de casa por “ter deixado” que eu me afogasse. Papai foi morar na cobertura perto do prédio onde trabalhava em Manhattan. Nunca imaginou que ainda chamaria aquele lugar de lar um ano e meio depois. — É muito melhor esquecer e perdoar, Pierce — papai sempre dizia quando conversávamos. — Aí fica mais fácil seguir em frente. Sua mãe precisa aprender isso. Falando sério, a expressão “esquecer e perdoar” não faz sentido para mim. Perdoar faz com que paremos de insistir no assunto, o que nem sempre é saudável (é só ver o exemplo dos meus pais). Contudo, se esquecemos, não aprendemos com nossos erros, o que pode ser fatal. Quem sabe isso melhor do que eu? Perdoar? Claro, pai. Mas esquecer? Mesmo que quisesse, não conseguiria, porque tem uma pessoa que não me permite isso. Não culpo mamãe por querer voltar para a ilha na qual nasceu e foi criada, mesmo que seja umlugar ridiculamente quente, frequentemente atingido por furacões e repleto de nuvens formadas por componentes químicos misteriosos — uma imagem parecida com a que eu tinha do Mal saindo da caixa de Pandora e tomando conta da humanidade. Se alguém tivesse mencionado antes da mudança que o nome do lugar significava Ilha dos Ossos — e por que os exploradores espanhóis o batizaram assim —, provavelmente eu nunca concordaria com o plano de “começar uma vida nova em Isla Huesos”. Principalmente porque é difícil começar de novo no lugar onde você conheceu a pessoa que fica arruinando a sua vida o tempo todo. Não tinha como falar sobre isso com mamãe. O fato de eu já ter estado em Isla Huesos antes era um grande segredo (não um segredo ruim, só um segredo de meninas, como mamãe dizia). Isso porque papai não suporta a família de mamãe.

Acha (não sem motivos) que são um bando de criminosos e malucos, exemplos não muito bons para sua única filhinha. Mamãe me fez prometer que nunca contaria a ele sobre a viagem que fizemos para o funeral do meu avô quando eu tinha 7 anos. Eu prometi. Não entendia a situação muito bem, então nunca contei nada… … principalmente sobre o que aconteceu depois do funeral, no cemitério. A verdade é que não achei que tinha que contar, pois vovó já sabia de tudo. E as avós nunca deixam nada de ruim acontecer com suas netas. Eu nem conhecia os convidados de mamãe, a não ser ela, Alex e vovó — as mesmas pessoas que se sentaram ao meu lado no funeral do vovô. Isso fazia uma década; era do tempo em que o irmão de mamãe ainda estava na cadeia. Tio Chris não estava se ajustando muito bem à vida “lá fora”. Não sabia como agir, por exemplo, quando um dos garçons vinha encher sua taça de champanhe. Em vez de simplesmente falar “Não, obrigado”, tio Chris berrava “guaraná!” e jogava a taça longe, derramando champanhe no pátio todo. — Não bebo álcool — exclamou tio Chris. — Só guaraná. — Perdão, senhor — disse o garçom olhando a poça de Veuve Clicquot no chão. Eu gostava do tio Chris, embora papai achasse que ele acabaria embarcando em um reino obscuro de terror e vingança assim que fosse solto. Tio Chris estava morando em Isla Huesos com vovó, que criou Alex desde bebê. A mãe dele fugiu depois que tio Chris foi para a prisão. Desde que cheguei, tudo o que vi meu tio fazer foi assistir ao canal de previsão do tempo obsessivamente e tomar guaraná. Mesmo assim, o pai de Alex me assustava um pouco. Tinha os olhos mais tristes do que o de todas as pessoas que já conheci. Talvez com exceção de uma, mas não queria ficar pensando nele. Assim como não queria ficar pensando sobre o dia em que morri. Algumas pessoas estavam dificultando meus planos. — Nem todo mundo que morre e volta — eu disse cuidadosamente a tio Chris — temexatamente a mesma experiência… Foi nesse exato instante que vovó veio descendo as escadas da varanda dos fundos, fazendo barulho com seus saltos altos. Ao contrário de tio Chris e Alex, ela se arrumara para a ocasião.

Usava um vestido bege de tecido fino e um cachecol que havia tricotado. — Achei você, Pierce — disse com tom irritado. — O que está fazendo aqui fora? Essas pessoas todas estão esperando para conhecê-la. Vamos, quero que fale com o padre Michaels… — Maneiro — comentou Alex, alegre. — Será que ele sabe? — Sabe o quê? — perguntou vovó, surpresa. — O que foi a luz que Pierce viu quando morreu — respondeu Alex. — Eu acho que foi a porta do paraíso, mas Pierce falou que os cientistas dizem que é… O que dizem mesmo, Pierce? Engoli em seco. — Uma alucinação — respondi. — Os cientistas dizem que tiveram os mesmos resultados emtestes com pessoas que não estavam morrendo, mas que estavam sob efeito de drogas ou de choques no cérebro. Algumas dessas pessoas também viram uma luz. — É isso que você está fazendo aqui fora? — indagou vovó, chocada. — Blasfemando? Depois que morri e voltei, minhas notas ficaram muito ruins. Foi quando minha consultora na Academia Westport para Meninas, a Sra. Keeler, recomendou que meus pais encontrassem alguma atividade fora da escola que me interessasse. Crianças que fracassam na escola podem ter sucesso na vida se descobrirem alguma coisa que estimule o “engajamento”, segundo a Sra. Keeler. Acabei encontrando uma coisa com a qual queria me “engajar”. Uma coisa que me fez ser expulsa da Academia Westport para Meninas e que me trouxe para Isla Huesos, que algumas pessoas chamam de paraíso. Tenho certeza de que essas pessoas não conhecem minha avó. — Não — disse Alex, rindo. — Blasfemar seria dizer que a luz vem do meio das pernas de uma mulher que está parindo você. É claro que isso não seria uma blasfêmia se eu fosse hinduísta. Vovó parecia ter mordido um limão. — Bem, Alexander Cabrero — respondeu com um tom ácido —, você não é hinduísta. E talvez devesse se lembrar que quem paga aquele lixo que você chama de carro sou eu.

Se quiser que eu continue pagando, é melhor começar a ser mais respeitoso. — Desculpe, senhora — murmurou Alex olhando a poça de champanhe no chão. Seu pai fez o mesmo depois de remover o boné. Vovó se volta para mim tentando amenizar sua expressão. — Enfim, Pierce — disse. — Por que não vem conhecer o padre Michaels? É claro que não vai se lembrar dele do funeral de seu avô, você era muito nova, mas ele se lembra de você e está muito feliz porque vai fazer parte da nossa pequena paróquia. — Sabe qual o problema? — respondi. — Não estou me sentindo muito bem. — Não estava mentindo, o calor estava demais. Queria abrir alguns botões do meu vestido apertado. — Preciso de ar. — Então entre — disse vovó, surpresa. — Temos ar-condicionado. Ou teríamos, caso sua mãe não tivesse aberto todas as portas… — O que foi que fiz agora, mãe? — Mamãe apareceu na varanda e pegou um camarão da bandeja do garçom que estava passando. — Ah, Pierce, você esta aí. Já estava me perguntando se tinha desaparecido também. — Observou meu rosto. — Querida, está tudo bem com você? — Ela disse que precisa de ar — respondeu vovó, ainda surpresa —, mas está em pé aqui fora. Qual o problema dela? Tomou o remédio hoje? Você tem certeza que Pierce está pronta para voltar à escola, Deb? Sabe como ela é. Talvez… — Ela está bem, mãe — interrompeu mamãe. — Pierce… — disse virando-se para mim. Levantei a cabeça. Os olhos dela pareciam estar mais escuros por causa da luz da varanda. Estava bonita e jovial; vestia jeans branco e uma bata de seda. Estava perfeita.

Tudo estava perfeito. Tudo ficaria bem. — Tenho que ir — falei controlando o choro de pânico que estava preso em minha garganta. — Então vá, querida — respondeu mamãe inclinando-se na varanda. Tocou minha testa como se quisesse checar se eu estava com febre. Tinha o mesmo cheiro de sempre, aquele perfume materno. Seus cabelos negros e longos tocaram meus ombros quando me beijou. — Tudo bem. Só não se esqueça de ligar o farol da bicicleta para que as pessoas a vejam. — O quê? — Vovó parecia não acreditar. — Você a está deixando ir dar uma volta de bicicleta? Mas estamos no meio de uma festa para ela. Mamãe a ignorou. — Não pare em lugar algum — disse para mim. — Não saia da bicicleta. Eu me virei para Alex e para tio Chris sem falar nada. Eles me observavam sem acreditar no que viam. Fui direto para o jardim lateral onde minha nova bicicleta estava parada. Não olhei para trás. — E Pierce… — disse mamãe. Meus ombros ficaram tensos. Será que ia mudar de ideia por causa do que vovó disse? Não. Tudo o que falou foi: — Não demore. Tem uma tempestade vindo para cá. Quando o vi no vasto deserto, “Tem piedade de mim”, supliquei, “Sê o que for, sombra ou homem!” DANTE ALIGHIERI, Inferno, Canto I. Todos querem acreditar que existe alguma coisa — alguma coisa incrível — esperando por eles no outro lado.

O Éden. Valhala. O Paraíso. A próxima vida — melhor do que esta, se tiverem sorte. Eu já estive no outro lado. Sei o que existe lá. Não é o paraíso — pelo menos não no começo. É uma verdade que tenho que carregar sozinha, pois só coisas ruins aconteceram às pessoas com as quais compartilhei o que sei. Por isso, às vezes preciso sair depressa antes de falar ou fazer alguma coisa da qual vá me arrepender mais tarde. Caso contrário, coisas ruins podem acontecer. Ele pode acontecer. Mamãe entendeu. Não sobre ele — ela não sabe —, mas sobre a minha necessidade de sair. Foi por isso que me deixou ir. Enquanto descia pelo monte ao lado de nossa nova casa e sentia a brisa gelada batendo em meu cabelo, só conseguia pensar em vovó. — Homem? Que homem? Foi o que ela respondeu outro dia quando estávamos em sua casa. Eu me levantei do sofá, no qual estava assistindo ao canal do tempo com tio Chris, e a segui até a cozinha para perguntar sobre o funeral do vovô… especificamente sobre o que acontecera no cemitério depois do enterro. — Você sabe quem — respondi. — O homem sobre o qual lhe falei. O que tinha um pássaro. Desde aquele dia, não tivemos nenhuma oportunidade de falar sobre o que acontecera. Primeiro, porque era um segredo entre meninas, entre mim e mamãe; depois, porque nunca mais encontrei comvovó, graças a meu pai. Com o passar dos anos, o que aconteceu de fato naquela tarde no cemitério acabou ficando como um sonho. Talvez tenha sido mesmo um sonho. Como aquilo pode ter acontecido de verdade? Era impossível.

Então eu morri. E percebi que o que vi no cemitério naquele dia não foi apenas um sonho, mas sim a coisa mais importante que já aconteceu na minha vida — pelo menos até que meu coração parasse de bater. — Vá lá fora brincar um pouco — disse vovó. — Sua mãe está ocupada agora. Chamo você quando tudo estiver pronto. Mamãe e vovó foram falar com o sacristão do cemitério após o funeral para assinar os documentos da sepultura de vovô. Talvez eu estivesse um pouco inquieta. Acho que derrubei alguma coisa na mesa do sacristão. Deve ter sido isso. Assim como meu primo Alex, sempre fui um pouco desatenta. Ao contrário de Alex, meu problema fazia com que prestassem menos atenção em mim, e não mais. Achavam que uma menina não se meteria em tanta confusão. Lembro que mamãe olhou para mim enquanto ajudava vovó a preencher os formulários. Ela me deu um sorriso com os olhos cheios de lágrimas. — Tudo bem, querida — disse. — Pode ir lá fora. Fique por perto. Está tudo bem. Fiquei por perto. Naquele tempo, sempre obedecia mamãe. Achei a pomba branca a alguns metros do escritório do sacristão. Estava mancando por entre as tumbas. Uma de suas asas se arrastava no chão; estava visivelmente quebrada. Corri atrás dela e tentei pegá-la com as mãos. Sabia que mamãe poderia ajudar, ela adorava pássaros.

No entanto, não deu muito certo. O pássaro entrou em pânico e tentou voar até a cripta mais próxima, onde bateu contra os tijolos e ficou parado. Fui até ele e percebi que estava morto. Naturalmente, comecei a chorar. Já estava triste por causa do funeral do vovô e por ter sido expulsa do escritório do sacristão porque me comportara mal. Para completar, uma pomba morta. Foi quando o homem apareceu. Para mim, uma criança, ele parecia ser incrivelmente alto, quase um gigante, mesmo quando se ajoelhou ao meu lado e perguntou por que eu estava chorando. Hoje, acho que ele era apenas um adolescente, nem era homem feito. Mas, por ser tão alto, e por estar vestido todo de preto, pareceu ser muito mais velho do que devia ser. — Eu t-tentei ajudar — respondi chorando e apontando para a pomba. — Ela estava machucada. Mas aí eu a assustei e piorei tudo. Agora ela está morta. Foi um a-a-acidente. — É claro que foi um acidente — respondeu o rapaz pegando a pomba com cuidado. — Eu não quero ir para o inferno — lamentei. — Quem disse que você vai para o inferno? — perguntou ele, surpreso. — É para onde vão os assassinos — contei chorando. — Minha vó me disse. — Mas você não é uma assassina — disse ele —, e acho que você ainda não precisa se preocupar com o que vai acontecer depois que morrer. Eu não devia falar com estranhos. Meus pais já haviam me avisado isso mil vezes. Porém, aquele estranho parecia ser legal, e mamãe estava logo ali, dentro da sala. Eu estava segura.

— Vamos achar um caixão para ela? — perguntei, apontando para a pomba. Já sabia tudo sobre enterros depois daquela tarde. — Quando morremos, temos que ficar dentro de um caixão para que ninguém nunca mais nos veja. — Só algumas pessoas precisam disso — respondeu o estranho com uma voz meio seca —, outras não precisam. E sim, acho que podemos colocá-la em um caixão. Ou posso fazê-la viver de novo. O que você prefere? — Você não pode fazer um pássaro morto viver de novo — respondi. Fiquei tão surpresa com a pergunta que esqueci que estava chorando. Ele estava fazendo carinho no pássaro, que definitivamente estava morto. Sua cabeça pendia por cima dos dedos do rapaz. O pescoço estava quebrado. — Ninguém consegue fazer isso. — Eu consigo — respondeu —, se você quiser. — Eu quero — sussurrei. Ele passou a mão pelo pássaro. Um segundo depois, a cabecinha se levantou. Com olhos brilhantes, a pomba voou em direção ao céu azul. Suas asas batiam forte. Fiquei tão animada que berrei: — Faça de novo! — Não dá — falou se levantando. — Ela já se foi. Pensei um pouco. Peguei a mão do estranho e o puxei. — Você pode fazer isso com vovô? Eles acabaram de colocar ele ali… — Apontei para a cripta no outro lado do corredor. — Não — respondeu ele com educação. — Desculpe.

— Mas mamãe ficaria tão feliz! Vovó também. Por favor? É só um segundo… — Não — respondeu um tanto alarmado. Ajoelhou-se ao meu lado novamente. — Como você se chama? — Pierce — respondi —, mas… — Bem, Pierce — disse ele. Seus olhos tinham a mesma cor das lâminas dos meus patins de gelo em Connecticut. — Seu avô ficaria orgulhoso de você, mas acho melhor deixá-lo onde está. Sua mãe e sua avó ficariam um pouco assustadas se o vissem andando por aí depois de tê-lo enterrado, você não acha? Não tinha pensado naquilo, mas ele devia ter razão. Foi aí que vovó veio procurar por mim. O homem a viu. Eles devem ter se visto, pois trocaramum “boa tarde” educado. O homem se virou e, antes de se despedir de mim, foi embora. — Pierce — disse vovó ao meu lado —, você sabe quem ele é? — Não — respondi. Contei tudo o que sabia sobre ele, inclusive o milagre que tinha feito. — E você gostou dele? — perguntou vovó quando acabei minha narrativa incessante. — Não sei — respondi. Fiquei surpresa com a pergunta. Ele havia feito um pássaro morto voltar a voar! Mas não quis fazer o mesmo com vovô, e isso era um ponto negativo. Vovó deu o primeiro sorriso do dia. — Vai gostar — disse. Pegou minha mão e me levou para o carro, onde mamãe e Alex esperavam. Lembro-me de ter olhado para trás. Não havia qualquer sinal do homem, apenas flores vermelhas em galhos retorcidos e negros em uma árvore que parecia um toldo acima de nós. O vermelho parecia fogos de artifício no céu azul claro… Mas agora vovó estava reagindo da mesma forma que todas as outras pessoas reagiam quando eu contava o que tinha visto quando morrera — não vira uma luz, e sim um homem. Ela passou a insistir que eu havia imaginado a coisa toda. — É claro que não tinha nenhum homem no cemitério ressuscitando pássaros — disse outro dia na cozinha balançando a cabeça.

— Onde já se viu isso? Sabe de uma coisa, Pierce? Estou preocupada com você. Fica sempre sonhando acordada. Sua mãe é bonita e inteligente, e viu só o que aconteceu com ela? A beleza é uma maravilha até que certas pessoas decidam acabar com sua alegria… — Vó — intercedi, tentando não aumentar o tom de voz —, como pode me dizer que o homemnão estava lá se a senhora mesma me perguntou se… — Espero mesmo que nessa nova escola as coisas deem certo, Pierce — interrompeu vovó —, porque você conseguiu estragar tudo na última escola, não foi? — Jogou uma bandeja cheia de sanduíches em meus braços. — Agora leve isto para o seu tio antes que ele morra de fome. Ele não comeu nada desde o café da manhã. Saí da casa dela naquele instante — depois de dar os sanduíches a meu tio, é claro — e fui para a minha casa de bicicleta. Senti que era melhor ir embora antes que alguma coisa terrível acontecesse. Coisas horríveis aconteciam quando eu ficava enfurecida. Eu não tinha culpa. Era melhor sair antes que ficasse pior. Antes que ele aparecesse. Agora, lá estava eu na bicicleta novamente, mas, dessa vez, sem destino certo. Só precisava sair de perto… de vovó. Das perguntas. Dos barulhos da festa. Do som da água batendo na piscina… principalmente, daquela piscina… Ao contrário do “incidente” que acontecera na minha antiga escola, o acidente foi culpa minha. Eu tropecei no meu próprio cachecol, bati a cabeça e fui parar no fundo da piscina que tínhamos emConnecticut. Estava tentando resgatar um pássaro machucado… Sim, outro pássaro. Este último sobreviveu sem a ajuda de um estranho no cemitério de Isla Huesos. Eu não tive a mesma sorte. A temperatura da água me paralisou tanto quanto a pancada que levei na cabeça. Meu casaco e minhas botas logo ficaram encharcados; meus braços e minhas pernas ficaram muito pesados para que eu pudesse fazer qualquer movimento, muito menos para que nadasse. A rede que cobria a piscina — papai esquecera de consertá-la — afundou comigo e me envolveu. Fiquei sem poder me mexer, como se estivesse sendo abraçada por uma jiboia. Estava muito longe da escada e dos degraus da piscina.

Não tinha como nadar até eles, ainda mais com o peso das roupas e da rede, que me puxava para baixo. Se tivesse conseguido chegar aos degraus, duvido que conseguisse ter força para emergir. Tentei o máximo que pude. É incrível o que uma menina de 15 anos consegue fazer quando está desesperada para sobreviver, mesmo com um hematoma subdural. Papai estava no meio de uma conferência no escritório, lá do outro lado da casa. Esquecera que mamãe estava na biblioteca terminando sua dissertação sobre o acasalamento de colhereiros rosados, e que eu não estava nem na casa da Hannah, minha melhor amiga, nem no abrigo para animais, onde era voluntária. A empregada estava de folga. Também se esquecera de nos avisar que os rebites que seguravam a cobertura da piscina tinham enferrujado durante o inverno. Não que fizesse muita diferença — pelo menos não para mim — se papai tivesse nos lembrado disso, ou se não estivesse em uma conferência. Não tive como gritar por socorro. As pessoas não se afogam na vida real como nos filmes. Quando meu cérebro, dentro do crânio contundido, se tocou de que eu estava em perigo, o peso de toda a água que havia engolido por causa do choque térmico — era fevereiro em New England — já tinha feito com que meu corpo afundasse como uma pedra. Depois do pânico e da dor iniciais, tudo ficou calmo lá embaixo. Só conseguia ouvir meus próprios batimentos cardíacos e o som das bolhas de ar vindo da minha garganta… E ambos ficavamcada vez mais baixos e escassos. Não sabia, naquele momento, que estava morrendo. A luz da tarde que brilhava através das folhas que boiavam na superfície da água fazia lindas formas ao meu redor no fundo da piscina. Lembrei-me da maneira como a luz batia nos vitrais da igreja onde o funeral do vovô havia acontecido. Mesmo que não pudesse falar sobre isso, nunca me esqueci daquele dia e de como mamãe e vovó choraram durante a cerimônia… Também não me esqueci de como vovó apertou minha mão quando fomos para o cemitério, nem do vermelho intenso das flores nas árvores em contraste com o azul do céu…. … vermelho como as pontas do meu cachecol, que ficou flutuando ao redor de meu rosto enquanto eu morria no fundo da nossa piscina. Talvez tenha sido por isso que pisei no freio na bicicleta quando as vi novamente, fugindo da festa — não as franjas do cachecol, mas as flores. Não percebi que havia pedalado até o cemitério. Meus pés me levaram até lá inconscientemente.

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