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Abdias – Cyro dos Anjos

Afinal, decidiram as ursulinas convidar-me para substituir Sizenando. Essas freiras têm a sua sutileza. Há dias, Mère Blandine veio ver Carlota, com o pretexto de pedir minha interferência junto ao diretor do Patrimônio Municipal, de quem sou amigo, para que se ultime o contrato que permitirá ao colégio utilizar uns terrenos adjacentes aos seus. Mas, na verdade, o caso já estava decidido, o prefeito interessara-se pessoalmente pelo assunto, e o que Mère Blandine desejava era obter informações a meu respeito. Minha mulher percebera isso e prevenira-me, quando cheguei a casa para jantar: — As ursulinas querem alguma coisa com você, Abdias, além dessa história dos terrenos… Em seguida, contou-me que a diretora, que a trata com intimidade por ter sido aluna do colégio, andou, com circunlóquios, esquadrinhando a nossa vida. Queria saber se eu era bom pai de família e católico praticante ou se pelo menos me incluía entre os amigos da Igreja. Respondeu Carlota, comespírito, que eu não seria propriamente um modelo de virtudes patriarcais; no entanto, não tinha maiores queixas de mim. Que isso de maridos, o bom estava ainda por nascer, e que, uns pelos outros, com razões de sobra podiam ser todos levados à forca. Quanto à religião, achava-me um tanto remisso, mas, em todo o caso, nunca deixara de acompanhá-la à missa, aos domingos e dias santificados. Anteontem, chegou-me também aos ouvidos que Mère Blandine investigava as mesmas coisas, inquirindo velhos conhecidos meus. Já estava intrigado com a sindicância, quando, ao saber da doença de Sizenando, conjecturei logo qual seria o motivo. É possível que a indicação tenha partido dele, pois há muito deseja levar-me para o colégio. Leu trabalhos que andei publicando pelos jornais, e insiste em que sou uma vocação que se ignora, no tocante ao magistério. Sucedi-lhe no cargo de diretor do Arquivo Histórico e agora me inculca para essa outra espécie de sucessão. Sizenando entusiasma-se facilmente e quando pega fogo nada o detém. Deve ter conspirado com as freiras, nem há dúvida. O convite alvoroçou-me. Um pouco por curiosidade, acerca da nova experiência, um pouco pelo secreto desejo de tribuna, que mora no peito dos tímidos, há muito eu o ambicionava. Mas, passados os primeiros momentos, acho-me um tanto inquieto. Devia, talvez, começar por ginásio mais modesto. O Colégio das Ursulinas é um estabelecimento de luxo, fundado adrede para receber moças da alta burguesia. Entramos numa era socializante, em que vão caducando as distinções de castas e certas palavras discriminativas caem em desuso ou são cautelosamente evitadas. Entretanto, os jornais ainda lhe chamam “aristocrático educandário”, e o epíteto não constrange as freiras. Pelo contrário, procuram conservar essa tradição, e, para uma jovem, ser admitida no colégio equivale a um título honorífico. As pessoas menos prestigiosas, segundo me informa Carlota, não raro recorrem às cartas de recomendação, quando se trata de obter a matrícula de filhas.


Não são muitas as vagas disponíveis, e a maior parte delas se preenche por uma como sucessão hereditária, entre as famílias de elevada categoria. O colégio aparece, assim, principalmente aos olhos das senhoras cujo ingresso na sociedade é recente, como algo distante, inacessível quase, que cumpre conquistar para que consolidem a posição social. Mas, Deus meu, deixemos em paz essas aflitas matronas que porfiam por coisas tão vazias de substância. Metade do mundo gravita em torno de pequenas vaidades e ostentações, e as mulheres nelas se comprazem mais que em tudo, mesmo a minha valente Carlota, que vive afastada do século. Fui, ontem, agradecer o convite e informar-me acerca de horários e programas. Uma irmã leiga conduziu-me à presença da diretora, num gabinete severo, de cuja parede lisa pende, ao fundo, umcrucifixo de ébano. Sentada à secretária, Mère Blandine inclinou-se um pouco — sem contudo se levantar — para saudar-me e, com um gesto, indicou-me uma cadeira. É pequena e frágil, mas tem ar imponente. A palidez e transparência do rosto, que parece de porcelana, e a expressão dos lábios sugerem uma figura de François Clouet. A princípio, senti-me constrangido. Mas, quando Mère Blandine começou a falar, repontou em suas palavras a velha polidez francesa, e fiquei mais à vontade. Exprime-se ora na própria língua, ora em português, segundo as dificuldades que encontra na conversação. Achou-me um pouco jovem para substituir Sizenando, o que é lisonjeiro para quem já não anda longe dos quarenta. Ponderou, entretanto, que o rejuvenescimento dos quadros se impunha, pois comas últimas reformas do ensino, os professores antigos não estavam dando conta do recado. Depois que o colégio criou, por conta própria, o curso de extensão, as dificuldades ainda mais se agravaram. Como lhe perguntasse a razão dessa iniciativa, Mère Blandine esclareceu que as moças se formavam cedo demais e com insuficiente preparo. Deixavam o colégio com quinze ou dezesseis anos e, em geral, ficavam sem o que fazer em casa, até que arranjassem casamento. Com o novo curso, pretendiam as ursulinas resolver, em parte, esse problema que as mães enfrentavam ao saírem as filhas dos ginásios. Era de dois anos, e proporcionava conhecimentos, mais especializados, de artes e letras. Exatamente nele é que me queria aproveitar, por indicação do professor Sizenando — explicou Mère Blandine. Desejava dar-me a cadeira de literatura portuguesa e brasileira, uma vez que a literatura geral já havia sido confiada ao professor Silveira. Referiu-se, depois, com simpatia, ao velho Sizenando, mostrando-se preocupada com a sua enfermidade. Assegurei-lhe que, teimoso como é, lutará com a doença e acabará vencendo. A morte não o levará assim, sem mais nem menos. Finalmente, pediu-me notícias de minha mulher, tendo para com ela expressões muito gentis.

Carlota ficará vaidosa, quando, ao regressar de sua pequena viagem, souber dos elogios que recebeu. As aulas começarão depois de amanhã. Estou apreensivo. Foi temeridade haver aceitado o convite. Tenho má dicção e além disso titubeio muito, à procura de palavras. Para evitar apertos de última hora, preparei, antecipadamente, o esquema de duas ou três preleções, mas temo que pareçamàs alunas muito secas, demasiado técnicas. Não possuo nenhum talento verbal, e sei que a exposição da matéria demanda colorido, para que logre despertar o interesse de auditório, como o que vou ter, pouco familiarizado com o assunto. Vai ser duro conseguir a atenção da turma para os primeiros pontos, que melhor ficariam no programa de filologia românica. As intermináveis discussões acerca das origens da poesia lírica portuguesa afiguram-se-me, também, um tanto áridas. Creio que será de boa política passar logo ao estudo direto dos nossos velhos trovadores, em que as moças hão de encontrar algum atrativo. Melhor teria sido não tomar esse compromisso. Positivamente, pertenço à família do Homo scribens e não à do Homo loquens. Comecei com o pé esquerdo meu primeiro dia de professor. Sempre temi o ridículo. E a tal ponto, que esse temor, forma paroxística de minha timidez, costuma atuar em minha vida como uma bússola negativa, a orientar para o avesso os meus atos. Faz-me viver de pé atrás com o mundo, torna-me arredio e suspicaz, quando poderia confiar ou, em virtude de viva reação, leva-me a ousar e avançar, em circunstâncias que aconselharia retraimento. Enfim, põe-me fora do centro de gravidade. E foi precisamente o ridículo (ele me acompanha como um demônio arrimadiço) que me estragou a aula inaugural. A hesitação que experimentei ao entrar na sala e o ar canhestro que devia ter já haviam despertado, entre as alunas, desses sorrisos sorrateiros que a gente percebe por um sentido oculto, sem precisar de olhar os circunstantes. Mas a vexatória situação culminou foi no momento em que abri, atarantadamente, o livro de chamada e fiquei a estropiar nomes e a gaguejar, provocando hilaridade geral. Formalizada, a surveillante deixou a costura e pôs-se a ralhar com as moças, sem conseguir contê-las. Acabei a chamada como pude. Depois, arrebanhei as minhas forças e procurei aparentar domínio de mim mesmo, encaminhando-me para o meio da sala e dizendo, enfaticamente: “Pareceume ver na lista de chamada o nome de Florisbela de Ataíde. Pertencerá, acaso, à família Ataíde, do norte de Minas?”. Bem me lembrava de ter lido Gabriela e não Florisbela, mas ao mestre confuso convinha revidar em tom de menoscabo e, por instinto, improvisei esta saída.

Com a troca de nome e a fingida segurança, demonstrava não estar fazendo caso do auditório. De qualquer modo, obtive inesperado efeito, desviando a atenção de mim para a moça. Logo pude identificá-la, pois se tornou alvo de todos os olhares, debaixo de explosões de riso da turma. Vencido o primeiro momento, a pequena, que é de fibra, ergueu a fronte, pálida, lábios cerrados, como a lançar desafio às colegas, e respondeu-me afirmativamente, com um sinal de cabeça. Que me perdoe a jovem Gabriela, possível neta do coronel Ataíde, amigo do meu pai e homem de prol em Várzea dos Buritis. Não queria dar-lhe esse constrangimento e apenas procurava sair do meu embaraço. Houve, ainda, pela sala, algum sussurro, e pareceu-me ter percebido vozes chocarreiras a repetir “Florisbela!”, “Florisbela!”, mas a surveillante, já senhora da situação, conseguiu acomodar as moças. Receio que o incidente vá criar na jovem Gabriela pouco favorável disposição de espírito a meu respeito. Estou agora intrigado é com o fato de aqui se ter instalado um ramo dos Ataídes, sem que eu haja dado por isso. Devem ser parentes mais distantes, do contrário eu teria recebido recomendações de Várzea dos Buritis para procurá-los. Quem sabe Glória casou e Gabriela é sua filha? Esperem, já não tenho dúvidas, é exatamente isto. Lembra-me, agora, a vaga história de um médico do sul de Minas, que a conheceu em Belo Horizonte, quando ela concluía o curso no Colégio Cassão, e a seguiu até Diamantina, para pedi-la em casamento. Foram morar em Caxambu, creio. Ouvi a meu pai, certa vez, que o velho Ataíde de Várzea dos Buritis sempre lastimava que tivessem ido plantar tão longe aquele galho do antigo tronco. Não aguentava mais as viagens e duvidava que o pudessem vir ver com frequência. O casal terá, pois, vivido no sul todo esse tempo. Sua transferência para aqui há de ter sido recente e, neste caso, Gabriela não seria neta, mas bisneta do velho Ataíde. Eu é que, para me remoçar, suprimi inconscientemente uma geração. Deus meu, estou ficando velho. Glória foi namorada minha! Bem, eu era mais moço do que ela, é verdade. Amava-a de longe, ela nem suspeitava da paixão que me consumia. Amores dos doze anos, fabulosamente românticos, que se curtiam em silêncio e se nutriam da imaginação! Glória morava com os pais em Diamantina, mas sempre ia passar as férias com os avós. Os velhos habitavam uma casa de sobrado, curioso espécime do estilo que as cidades do sertão conheceram em começos do século passado, quando a decadência da mineração levou para aquela zona famílias outrora abastadas, e, com elas, o padrão de vida mais alto das regiões do ouro e do diamante. Era um casarão de aspecto senhorial, que dominava as habitações pequenas e pobres do Largo da Matriz. Uma sacada de gradil de ferro, com desenhos florentinos, atenuava-lhe a severidade arquitetônica.

Quando não saía no seu cavalo alazão, à tarde, acompanhada dos moços elegantes da terra, Glória gostava de sentar-se à sacada, para bordar ao bastidor ou folhear um livro. Reportam-se a Glória as mais doces recordações de minha vida de menino. São caprichosas e não acodem à tona da consciência, a simples apelos à memória. Associaram-se a determinadas paisagens, a certos estados atmosféricos, a um perfume de flor, a tal serenata ouvida ao gramofone. Na manhã de hoje, quando cheguei ao colégio, os eucaliptos do pátio, molhados pela chuva da noite, exalavam um aroma que me transportou, por uma dessas associações, a verde corredor que serpeava por entre chácaras e pastos, à saída de Várzea dos Buritis, na estrada de Vista Alegre. Em mais de um ponto, grandes árvores, que se enlaçavam no alto, nele formavam caramanchões naturais, e a erva-de-são-caetano, alastrando-se pelas cercas de pau a pique, compunha-lhe uma sebe viva. Glória gostava de andar a pé, por ali, para sentir a frescura da vegetação e o cheiro que desprendiam as ervas sob a ação do sol. Um dia, quando voltava de um piquenique por aqueles caminhos, deixou por instantes os seus galãs, e, dando-me o braço, chamou-me seu noivo. Que emoção que senti! Saberia Glória que eu a amava apaixonadamente e tinha sido levada por umimpulso de ternura, ou fora simples garridice de moça bonita e cortejada? Fiquei com o coração a saltar, e minha perturbação transpareceu tanto, que Glória, logo adiante, achou meio de retirar o braço, pretextando colher uma flor que vira à margem da estrada. Como te amei em manhãs e tardes de antanho, Glória de Ataíde! Quando partias, de regresso a Diamantina, negro tédio devorava o céu e a terra. Sobre Várzea dos Buritis desciam horas longas, mornas, indistintas, e apenas a sucessão dos dias e das noites dava a medida do tempo… Passou a impressão desagradável do episódio ocorrido na primeira aula. Nos dias que se seguiram, ou por temerem a surveillante ou por terem dado outro rumo às suas maquinações, os diabretes do colégio já não me hostilizaram. Salvo Gabriela — que finge ignorar-me, e desvia os olhos, se a olho de relance —, todas me acolhem, agora, atenciosamente, e às vezes me procuram, terminada a aula, para se esclareceremsobre algum ponto da matéria dada. Pode ser que por detrás ainda me façam chacota, mas sinto-me seguro, deliberei não estar apurando risinhos sorrelfos ou sorrateiras malícias. Por outro lado, parece que não vou mal no curso. Pelo menos, a diretoria se mostra satisfeita. Nas primeiras aulas, com o fito de conquistar o inimigo, tentei causar sensação, recorrendo a frases de efeito. Que me seja perdoado este pecado contra a dignidade intelectual. Foi o recurso extremo de um homem em apuros. Cometi também erros de técnica, por inexperiência do ofício. Receando estar fraco da matéria, preparei-me como se fosse lecionar na École Normale Supérieure de Paris, e não num curso secundário de província. Em vez de me cingir ao que dizem os compêndios, como emgeral fazem os professores, aprofundei o assunto, varejei livrarias, vasculhei bibliotecas. Tratei, como coisa familiar, problemas literários de cuja existência as alunas nem sequer suspeitavam. Embora dessem mostras de interesse, vislumbrando em minhas dissertações um mundo que desconheciam, percebi, com alguns dias, que o nível intelectual do auditório não alcançava o das preleções. Adaptei-me, agora, à turma, conheço a linguagem que convém ao professor, acostumei-me a repetir palavras e a repisar noções, para dar tempo a que sejam assimiladas.

O que, a princípio, constituía tema para uma aula é atualmente desenvolvido em três e quatro. Carlota chegou hoje de Sabará, aonde tinha ido passar uns dias com a mãe, que anda adoentada. Já não poderei escrever pela manhã, com a bulha que fazem os meninos. São apenas três, mas valempor um regimento e contam com o reforço da garotada vizinha. É provável, aliás, que passe a guardar este caderno no meu gabinete, no Arquivo Histórico, onde estará mais ao abrigo dos olhares de Carlota. Melhor será que não leia o que estou escrevendo, pois havia de encontrar assunto para gracejos. É um espírito mordaz e não me leva a sério. Contam que o velho Tolstoi resolveu engenhosamente o problema do diário, fazendo dois simultâneos. Um, escrevia-o às claras e esquecia-o de propósito por todos os compartimentos da casa, para que a família nele saciasse a curiosidade; o outro, o verdadeiro, que continha confidências mais íntimas, era escrito em segredo e escondido nas botas. É pena que eu não tenha botas e que, no caso, não se trate de diário. Um dia talvez classifique estas notas, segundo o gênero e a espécie, como convém a um professor de literatura, mas no momento eu não saberia fazê-lo. O galante El-Rei d. Denis ainda hoje agrada ao belo sexo. De um modo geral, as moças acharampouco interesse nos cancioneiros, mas algumas cantigas de amigo do velho trovador causaram tanto sucesso que, a um apelo unânime, tive de escrevê-las ao quadro-negro, para que pudessem ser copiadas. Sinhazinha Fernandes pediu, de preferência, aquela em que a donzelinha apaixonada sai a interrogar as coisas, em torno, sobre o paradeiro do namorado. Ai, flores, ai, flores do verde pı˜o Se sabedes novas do meu amigo? Ai, Deus, e u é? Houve sorrisos maliciosos na sala, mas Sinhazinha, imperturbável, quis ainda copiar outra, que tem uma copla assim: Non chegou, madr’, o meu amado, e oj’ est o prazo passado! Ai, madre, moiro d’amor! O riso tornou-se geral, quando, a pedido da irrequieta Vanda Lopes, escrevi no quadro um cantar de d. Afonso Sanches, bastardo do rei, no qual a dona que se supõe traída ajusta, com a amiga, um ardil para averiguar a fidelidade do amado: Quand’, amiga, meu amigo veer, enquanto lh’ eu preguntar u tardou, Falade vós nas donzelas enton e no sembrant’, amiga, que fezer, veeremos ben se tem no coraçom a donzela por que sempre trobou. A surveillante, que não atinou com a causa da animação do auditório, quis saber do que se tratava. Expliquei como pude, no meu francês mascavo, acrescentando que os poetas medievais cujos textos estávamos estudando tinham bem estreito parentesco literário com seus trovadores da Provença. Ou porque eu não me tenha feito compreender, ou porque Sœur Brigide não achasse condizente com a sua condição associar-se ao interesse das alunas pelo assunto, limitou-se a exclamar: — Ah!… Les troubadours… Sœur Brigide pouco deve saber, aliás, acerca de trovadores. Não é culta nem podia como Mère Blandine, que provém de tronco ilustre e teve apurada educação. Segundo me contou ela própria, pertence a rude família de montanheses da região do Jura. Resolvi enfrentar hoje a jovem inimiga. Depois de uma explicação sobre o Amadis de Gaula, pedi-lhe que lesse, na antologia, trechos da novela. Gabriela desempenhou a incumbência com frieza e respondeu com um mínimo de palavras às perguntas que lhe fiz a propósito do texto.

É indomável a pequena Ataíde. Mas isso é sinal de boa raça, e, se não me engano, vem de longe, na família. Pude observá-la melhor, enquanto lia. Assemelha-se curiosamente a uma Ataíde de outras eras, cuja miniatura, em medalhão, vi mais de uma vez nas mãos de dona Constança, nas minhas visitas dominicais ao sobrado do Largo da Matriz. O miniaturista conseguiu dar à figura o tom branco-mate, peculiar dos Ataídes, e que em Gabriela, que tem olhos e cabelos castanho-claros, ganha reflexos dourados. Essa outra Ataíde, que se chamava Violante — dizia-me dona Constança —, movimentou os anais do Tijuco, nos tempos da Colônia. Criatura romanesca, enamorou-se de um chefe de garimpeiros que andava às testilhas com o governo da capitania, desafiando o poder de El-Rei. Seria um belo mancebo, e Violante era pouco mais que menina. Os olhos de dona Constança brilhavam quando me contava a história dessa Ataíde que, na verdade, levou uma vida de heroína de Stendhal. Os Ataídes vêm de boa estirpe portuguesa e pretendem descender em linha reta do grande Egas Moniz, aio de Afonso Henriques. Mais de um antepassado ilustrou o nome da família no serviço da Igreja e na defensão do reino. Como poderia d. Álvaro de Ataíde ter para genro um aventureiro que, além do mais, vivia fora da lei? A moça namorada foi, sem detença, recolhida ao Convento do Vale das Lágrimas, nas proximidades de Minas Novas do Fanado. Como o amor tudo pode, o garimpeiro teve meios de tirar a sua bela do convento e com ela casar furtivamente. Mas não seria o velho reinol quem havia de perdoar tal afronta, dizia dona Constança, com entusiasmo: deu combate sem trégua à tropa do garimpeiro, unindo-se às forças de d. Rodrigo de Meneses. Com que surpresa, certo dia, o escrivão da Intendência, ao lavrar o auto de prisão, hábito e tonsura de alguns do bando, aprisionados em batalha, não descobre entre eles uma rapariga disfarçada de homem! Essa rapariga era a esplêndida Ataíde de miniatura de marfim, que dona Constança sempre trazia consigo. Ou porque estivesse sob a sugestão daqueles belos olhos em que o aquarelista dera um toque feliz, comunicando-lhes o calor da paixão e da veemência, ou porque me empolgasse a crônica da noiva do garimpeiro, parecia-me ler, na fisionomia dela, gravada em minha memória, heroicos e generosos impulsos que não encontro agora na minha jovem aluna. O ar fino e desdenhoso de Gabriela sugere-me, antes, alguma Urraca ou Tareja medieval, dos tempos em que os Ataídes faziam correrias em terras de Espanha, acometendo o castelhano ou castigando o sarraceno… Eis aí um puro desmando da imaginação. Do mesmo modo que, nos tempos de Várzea dos Buritis, os Ataídes de então me fascinavam, beneficiando-os minha fantasia com tudo quanto se atribuía de cavalheiresco aos seus maiores — o demônio imaginário que mora nestes frágeis miolos já se pôs a trabalhar, impedindo que eu veja diante de mim apenas a jovem colegial, de família abastada, que veio polir-se nas mãos das ursulinas. O sutil escamoteador já deslizou com a moça das fronteiras do real, introduzindo-a no mundo fluídico em que o espírito compõe suas quimeras. Já não é Gabriela: é Violante, Urraca, Tareja… Mère Blandine ficaria simplesmente alarmada com o seu professor de literatura, se o pilhasse nestes devaneios. E que diria deles a minha prudente Carlota, que tem os pés fincados na realidade? Com o comentário feito, ontem, à margem das extravagâncias de minha inventiva, esqueceu-me relatar o fim de Violante, que acaso interessará a alguma romântica leitora. Contou-me dona Constança que, depois de a ter capturado, d. Álvaro aferrolhou-a em casa, e não mais se teve notícia de Fernão Costa — que assim se chamava o chefe dos garimpeiros — nemde seu bando, que se dispersou.

Já não estava d. Rodrigo de Meneses no governo da capitania, e seu sucessor suspendeu a perseguição ao garimpeiro, supondo-o morto nalguma brenha onde se houvesse refugiado. Recebera, em combate, uma carga de chumbo suficiente para liquidá-lo. Cinco anos mais tarde começou, entretanto, a falar-se, no Tijuco, de um embuçado que, pela calada da noite, quando dormiam os beleguins do intendente, se esgueirava sorrateiro pelas ruas. A fantasia popular já urdia uma rede de lendas em torno do misterioso vulto. O intendente mostrava-se apreensivo e pairava, no ar, muita inquietação acerca desse negotio perambulante in tenebris. Ninguém, contudo, pensava em Fernão Costa. D. Álvaro tinha como certa a morte dele, e Violante aparentava estar conformada com a viuvez. Já não era vigiada, e podia dispor da relativa liberdade que se concedia a uma dama da sociedade do Tijuco no século xviii. Mas um dia, subitamente, a casa do fidalgo amanheceu em polvorosa. O quarto da moça foi encontrado vazio, janela escancarada, e achou-se numa pequena mesa, sob um castiçal de prata, este lacônico bilhete: Pai. Perdoe-me. Sigo o meu destino. Violante. O velho fez rigorosa devassa. Alguns escravos foram castigados, mas nunca se descobriu a trama que permitiu a fuga. Posto tenha levado uma vida tão arriscada, Fernão Costa não morreu em combate, nem jamais foi capturado. Dez ou doze anos depois do segundo rapto de Violante, vitimou-o um mal do coração, quando negociava sua anistia com a Intendência dos Diamantes, em troca da comunicação de uns fabulosos descobrimentos feitos no rio Itacambiruçu. Com a idade, aplacara-se o ardor do aventureiro, que já não desejava senão viver tranquilo no Tijuco, reintegrada sua mulher no seio da família. Violante que, por esse tempo, teria pouco mais de trinta anos, seguiu-o de perto, morrendo sem chegar a ver de novo os seus. Segundo a tradição, sofria do peito, mas tenho para mim que o que a levou foi il male d’amor che la struggeva, como nos versos da canção. Releio hoje esta página, escrita há um mês. Vejo que relatei com entusiasmo o episódio de Violante. Na verdade, a bela Violante amava o destino, como convém às almas que não são medíocres.

Mas o destino lhe deu beleza, sentimento heroico da vida e a moldura dum velho nome. Propiciou-lhe tudo o que uma epopeia reclama, e ainda a levou cedo, para que a velhice, pouco épica, não lhe deformasse a imagem. Certo Abdias, meu conhecido, não terá muitos motivos para amá-lo. Só lhe deu o sonho, e nada mais. E um sonho que nem como sonho se realiza, porque às ilhargas do meu Quixote foi cosido umSancho. Fiquem, porém, para outro ensejo as incriminações. Devo falar é da aluna Gabriela, que é rebelde mas bonita, e não do mofino professor Abdias, substituto do velho Sizenando. Neste segundo mês de aula, a pequena Ataíde continua, em relação a mim, na mesma hostilidade muda dos primeiros dias. Responde desdenhosamente às minhas perguntas e, se é forçada a fitar-me — pela necessidade de apreender bem a questão —, deita-me um olhar duro, que não esconde algidez. Já não pensando em lhe conquistar as boas graças, mudei de tática. Passei a simular que nemsequer a vejo, ao contrário do que fazia antes, quando, a cada passo, me dirigia a ela, arguindo-a sobre este ou aquele ponto. Minha atitude não passou despercebida à turma. É um pequeno mundo malicioso, todo sorrisos e murmúrios, afeito a pescar no ar as novidades. Tenho a impressão de que recebeu com prazer minha nova política. O ambiente aristocrático do colégio comporta, naturalmente, graduações. Há uma escala hierárquica, e podemos conhecê-la através das sutis distinções que o colégio faz no tratamento das alunas. Se mal se percebe diferença entre o acolhimento dispensado à filha de uma notabilidade política do dia e o que se dá a uma jovem das altas finanças, nota-se, porém, com facilidade, a mudança de trato em relação a uma pequena fazendeira do interior ou a outras moças de boa família, mas sem posição brilhante. Filha de um médico de nomeada, ex-deputado, ligado aos círculos políticos, Gabriela pertence ao grupo das que são mais distinguidas e desfruta de situação ímpar na turma deste ano, constituída de elementos de menor influência. Bastava isto para lhe alienar a simpatia das outras, mas Gabriela terá, por certo, agravado a situação, com os seus ares de superioridade. Noto que as colegas, em sua maior parte, não lhe querem bem. Presumo que no íntimo a admirem e que só não se aproximam porque são recebidas com frieza. Duas ou três, mais submissas, procuraram-na mesmo assim e constituem uma como guarda pessoal que com ela se apresenta emtoda parte. Gabriela exerce porventura sobre as companheiras essa espécie de domínio que emana espontaneamente dos fortes e que, para se afirmar, às vezes dispensa manifestações de força. Baseiase num poder virtual que neles pressentimos, e nossa submissão é, por assim dizer, fiduciária. Se acaso lessem estas notas, meus companheiros do Centro de Estudos Sociais censurar-me-iampor estar dando excessivo apreço a essa petulante garota do Colégio das Ursulinas.

Por certo, torceriam o rosto às divagações em torno da linhagem dos Ataídes, que lhes parecerão denunciadoras de um gosto secreto pelas coisas da heráldica e da genealogia, a que tanto se apegam os frívolos. Pensarão, com algum fundamento, que as Glórias e as Violantes são flores do nosso capitalismo latifundiário, e que não cumpre arvorá-las em heroínas românticas. A preocupação com o Colégio das Ursulinas e suas futilidades não será igualmente muito ortodoxa para um social-democrata. Na verdade, há muita coisa séria em que cuidar, e este frágil coração de trovador desvia-se dos seus rumos, mal entrevê uma cara sofrivelmente bonita nas ameias dos seus castelos imaginários. Perdoem ao pobre tolo. Padece, sem dúvida, de um complexo de inferioridade. Essa tagarelice a propósito de coisas vãs são restos da crise mundana por que passou na adolescência. Quando rapaz, picado por veleidades de elegante, pretendeu frequentar as altas-rodas. Queria conhecer no seu próprio habitat aquelas esquivas criaturas que mal se deixavam ver entre a saída de uma igreja ou um teatro, e a rápida partida, nos automóveis de luxo que as esperavam. Por uma anomalia do sentimento amoroso, importava-lhe no objeto amado, mais que as qualidades específicas deste, aquilo a que o moço Abdias chamava pedigree. Uma beleza sem estirpe nemposição social não lhe causava impressão. Mas o moço Abdias, que fruía alguma consideração em Várzea dos Buritis, sentira-se desqualificado em Belo Horizonte. Cada meio social tem a sua clave, diria um músico, e na pauta da sociedade os valores das notas variam, segundo as latitudes. Destituídos de universalidade, os valores de Várzea dos Buritis não correspondiam aos da capital. Andou, assim, como um pária, por aqui, e foi-lhe mister refrear as aspirações mundanas. Amargou-se o coração de um jovem, mas salvou-se um clérigo dos perigos do mundo leigo. A posteridade te deverá esse serviço, avisada Carlota. O moço Abdias ancorou-se em ti, no momento difícil em que as desilusões sociais e os amores frustrados o iam atirando à vida boêmia. Muito há que conversar, a esse respeito, com os que preconizam o celibato dos letrados. Não fora o apoio que em ti encontrou, o sentimento de menos-valia que o acabrunhava talvez o arrastasse a alguma ligação com mulheres de outra casta — não propícias ao labor intelectual — e nossa história literária jamais teria a solução definitiva do problema das Cartas chilenas, que creio poder dar ainda este ano, numa bem documentada monografia… Minha versatilidade a mim próprio me deixa atônito. Começo, ontem, a falar nos meus companheiros do Centro de Estudos Sociais e acabo a página com o preconício do meu estudo sobre a autoria das Cartas chilenas, o qual, falando agora a sério, nada resolve e apenas atiça a controvérsia em torno da questão. Voltando ao problema Gabriela, poderei desculpar-me, perante os amigos do Centro, com a alegação de que, malgrado nossas pretensões em contrário, é provável que não tenhamos a liberdade de escolher os temas de nossas cogitações. A vida no-los imporá por meio de engenhoso mecanismo. Além disso, mesmo em face dos interesses de nossas pesquisas, não há mal em que alguém fixe este pequeno aspecto do mundo capitalista em decomposição. Ajuntarei, finalmente, a este arrazoado, a ponderação de que a um bom apóstolo cumpre estar em contato com o gentio e conhecer-lhe o meio.

Ocupando-me de Gabriela, é possível que um dia a conquiste para nossa causa. Entramos nas férias de julho, e sinto as manhãs vazias. Habituei-me depressa às aulas, tomando gosto pelo ofício, conforme previa Sizenando. Agradava-me, também, o giro matinal pelos lados de Santo Agostinho, onde eu deixava o bonde, para seguir, a pé, até à avenida do Contorno. As ursulinas foram corajosas em construir seu novo prédio naquela zona, quando nada indicava que o bairro viesse a ter tão rápido desenvolvimento e pudesse dispor de boas vias de acesso. Há cinco anos, apenas, deixaram seu casarão do Cruzeiro, indo instalar-se no outeiro que domina o vale onde o velho Gutiérrez tinha sua cerâmica. Não existe local melhor, em toda a cidade, mas a opinião comum era que as freiras confiavam demasiado na expansão urbana por aqueles rumos. Não transcorreram dois anos, e quase se engoliu todo o espaço que mediava entre Lourdes e o Prado. Como Belo Horizonte se estende poderosamente! Só pediria que nos poupassem um pouco de verdura de um e outro lado da avenida, e que novas casas não viessem tirar a vista do bairro da Cerâmica. Em abril e maio, florinhas amarelas alcatifam alacremente fraldas de colinas e depressões, dando-nos um esplêndido Van Gogh. Meu colega Barreto, que leciona botânica, disse-me que se chamam cosmos — cosmos sulphureus — e procedem do México. Dos jardins ter-se-ão espraiado pelos subúrbios da capital. É uma nitrófila, ou melhor, antropófila, esclareceu. Acompanha os passos do homem, vicejando à margem dos caminhos, onde quer que se atirem detritos. A amizade, já se vê, não é de todo desinteressada, embora essa mexicana seja modesta e, em vez de colares, peça simplesmente nitratos. João Carlos havia de zombar de minha preocupação com as florinhas e com a paisagem. São coisas de solteirona romântica, diria. É possível que tenha razão, se não quanto às solteironas, emparticular, pelo menos quanto aos que, em geral, já entram na maturidade. Minhas jovens alunas talvez nem percebam o maravilhoso amarelo que cobre o vale no outono. Aos dezesseis anos, todas as paisagens são belas, ou melhor, nem há paisagens. Somos ricos de tudo, e de tudo temos provisão que baste para suprir as coisas daquilo que lhes falta, segundo entende o nosso deleite. Mal sentiremos, assim, a delícia duma noite estival, nem nos deprimirá um dia enevoado, como o que tive hoje.

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