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Abhorsen A Ultima Esperanca dos Vivos – O Reino Antigo – Vol 3 – Garth Nix

O nevoeiro elevava-se do rio, grandes ondas brancas introduzindo-se na fuligem e na fumaça da cidade de Corvere, para se tornarem aquela coisa híbrida a que os jornais mais populares chamavamsmog e o Times “nevoeiro miásmico”. Frio, úmido e malcheiroso, era perigoso qualquer que fosse o seu nome. Na sua maior densidade, era capaz de sufocar e podia transformar o mais tênue indício de tosse em pneumonia. Mas a insalubridade do nevoeiro não constituía o seu principal perigo. Esse provinha da sua outra característica fundamental. O nevoeiro de Corvere era um dissimulador, um véu que envolvia os vaidosos candeeiros a gás da cidade e confundia tanto a vista como os ouvidos. Quando o nevoeiro se estendia sobre a cidade, todas as ruas ficavam escuras, todos os ecos eram estranhos e qualquer lugar, um cenário de crime e mutilação. — O nevoeiro não dá mostras de levantar — informou Damed, principal guarda-costas do rei Touchstone. A sua voz patenteava a aversão ao nevoeiro, apesar de saber que era apenas um fenômeno natural, uma mistura de poluição industrial e bruma do rio. Lá no país deles, o Reino Antigo, tais nevoeiros eram com frequência criados pelos feiticeiros da Magia Livre. — O telefone… também não funciona e a escolta está não só fora de forma, como é nova. Não a integra nem um só dos oficiais que costumam constituí-la. Não creio que deva ir, majestade. Touchstone encontrava-se de pé junto à janela, olhando através das persianas. Tinham sido obrigados a proteger todas as janelas há alguns dias, quando no exterior uma parte da multidão adotara o uso de fisgas. Antes disso, os manifestantes não tinham conseguido arremessar os meios tijolos suficientemente longe, já que a mansão que abrigava a Embaixada do Reino Antigo se situava num parque rodeado por muros e a uns bons cinquenta metros da rua. Não era a primeira vez que Touchstone desejava poder alcançar a Carta e retirar dela a força e o auxílio da magia. Mas estavam oitocentos quilômetros a sul da Muralha e o ar era silencioso e frio. Só quando o vento soprava com muita força do norte é que conseguia sentir um leve indício da sua herança mágica. Sabriel sentia ainda mais a falta da Carta, Touchstone sabia. Olhou para a mulher. Ela estava à mesa, como de costume, escrevendo uma última carta a um velho amigo do colégio, um proeminente homem de negócios, ou um membro da Assembléia de Ancelstierre. Prometendo ouro, ou apoio, ou apresentações, ou talvez fazendo ameaças ligeiramente veladas do que aconteceria se fossemestúpidos ao ponto de apoiar as tentativas de Corolini de instalar centenas de milhar de refugiados sulistas do outro lado da Muralha, no Reino Antigo. Touchstone achava ainda estranho ver Sabriel vestida com roupas ancelstierranas, em particular vestes de cerimônia, como as que usava naquele dia. Deveria envergar o seu tabardo azul e prata com os sinos do Abhorsen sobre o peito, a espada à cinta.


Não um vestido prateado com uma pelica de militar sobre um ombro e um estranho coque preso no cabelo muito preto. E a pequena pistola automática na sua bolsa de rede prateada não substituía em nada a espada. Não que Touchstone se sentisse também à vontade com as suas roupas. Uma camisa ancelstierrana com o seu colarinho rígido e gravata apertavam demais e o seu terno não oferecia qualquer proteção. Uma lâmina afiada deslizaria através do jaquetão de lã superfina com a mesma facilidade que por manteiga e quanto a uma bala… — Transmito as suas desculpas, Majestade? — perguntou Damed. Touchstone carregou o cenho e olhou para Sabriel. Ela andara no colégio em Ancelstierre, compreendia as pessoas e as suas classes dirigentes muito melhor do que ele. Era ela quem conduzia os esforços diplomáticos deles a sul da Muralha, como sempre fizera. — Não — respondeu Sabriel. Levantou-se e selou a última carta com uma pancada forte. — A Assembléia reúne-se esta noite e é possível que Corolini vá apresentar a sua Lei da Emigração Forçada. O bloco de Dawforth pode dar-nos precisamente os votos para derrotar a moção. Temos de ir à sua recepção ao ar livre. — Com este nevoeiro? — perguntou Touchstone. — Como podemos ir a uma recepção ao ar livre? — Eles ignorarão o tempo — disse Sabriel. — Estaremos todos lá, bebendo absinto verde e comendo cenouras cortadas segundo formas elegantes e fingiremos que estamos nos divertindo muito. — Cenouras? — Uma moda do Dawforth, introduzida pelo seu guia espiritual — respondeu Sabriel. — De acordo com Sulyn. — Ela é que sabe — disse Touchstone, fazendo uma careta, mas ante a perspectiva de cenouras cruas e absinto verde, não de Sulyn. Ela era uma das antigas amigas do colégio que tanto os ajudara. Sulyn, tal como os outros no Colégio Wyverley há vinte anos, vira o que acontecia quando a Magia Livre era agitada e se tornava suficientemente forte para atravessar a Muralha e se espalhar selvagemente por Ancelstierre. — Iremos, Damed — disse Sabriel. — Mas seria sensato pôr em prática o plano que discutimos. — Desculpem, Majestade Abhorsen — respondeu Damed. — Mas não me parece que vá aumentar a sua segurança.

Na verdade, só irá complicar a situação. — Mas será mais divertido — declarou Sabriel. — Os carros estão a postos? Vou só vestir a capa e calçar umas botas. Damed anuiu com relutância e abandonou a divisão. Touchstone escolheu um sobretudo escuro de uma série deles disposta nas costas de um canapé e vestiu-o. Sabriel colocou outro (um casaco de homem) e sentou-se para trocar os sapatos por botas. — Damed não está preocupado sem motivo — afirmou Touchstone ao estender a mão a Sabriel. — E o nevoeiro está muito espesso. Se estivéssemos em casa, não duvidaria de que fora criado commaldade premeditada. — O nevoeiro é bastante natural — replicou Sabriel. Encontravam-se bastante próximos e enrolaram os abafos um do outro, terminando com um beijo suave, de leve. — Mas concordo que pode perfeitamente ser usado contra nós. Porém, estou tão perto de formar uma aliança contra Corolini. Se Dawforth alinhar e os Sayre não se intrometerem no assunto. — São muito escassas as chances de tal, a menos que possamos provar que não raptamos o precioso filho e sobrinho deles — resmungou Touchstone, mas a sua atenção ia para as pistolas. Verificou se estavam ambas carregadas e havia munições de reserva na câmara, se tinham o cão para baixo e se estavam travadas. — Quem me dera que soubéssemos mais sobre este guia que Nicholas contratou. Tenho certeza de que já ouvi antes o nome Hedge e não foi em qualquer circunstância abonatória. Se ao menos os tivéssemos encontrado na Grande Estrada do Sul. — Estou certa que em breve teremos notícias de Ellimere — disse Sabriel enquanto verificava a sua própria pistola. — Ou talvez mesmo de Sam. Temos de deixar pelo menos esse assunto entregue ao bom senso dos nossos filhos e enfrentar o que nos espera. Touchstone fez uma careta ante a noção de bom senso dos filhos, entregou um chapéu de feltro cinzento a Sabriel com uma faixa preta, gêmeo do seu e ajudou-a a retirar o coque e a prender o cabelo debaixo do substituto. — Pronta? — perguntou-lhe enquanto ela apertava o casaco. Com os chapéus postos, as golas levantadas e os abafos bem enrolados, não se distinguiam de Damed nem dos seus outros guardas.

Era precisamente essa a idéia. Havia dez guarda-costas lá fora à espera, sem contar com os motoristas dos dois automóveis Hedden-Hare fortemente blindados. Sabriel e Touchstone reuniram-se a eles e os doze permaneceram juntos por um momento. Se houvesse qualquer inimigo observando dos muros, seria muito difícil distinguir quem era quem através do nevoeiro. Duas pessoas foram para a traseira de cada carro, com as outras oito de pé nos estribos. Os motoristas tinham mantido os motores trabalhando há algum tempo, os escapes enviando uma corrente constante de emissões quentes, mais leves que o nevoeiro. A um sinal de Damed, os carros começaram a descer o acesso, tocando os Cláxons. Era o sinal para os guardas ao portão o escancararem e para a polícia ancelstierrana lá fora afastar a multidão. Ultimamente, havia sempre uma multidão, constituída principalmente pelos simpatizantes de Corolini: rufiões e agitadores pagos usando as braçadeiras do partido de Corolini, o Nosso País. Não obstante as preocupações de Damed, a polícia desempenhou bem a sua função, afastando a turba para que os dois carros pudessem avançar acelerados. Foram arremessados alguns tijolos e pedras depois de passarem, mas não acertaram nos homens da guarda montada ou então resvalarampelo vidro temperado e placa blindada. Um minuto depois, a multidão ficava para trás, apenas uma massa escura ululante no nevoeiro. — A escolta não nos segue — informou Damed, que ia de pé no estribo ao lado do condutor do carro da frente. Tinha sido cedido um destacamento de polícia montada para acompanhar o rei Touchstone e a sua rainha Abhorsen para onde quer que fossem na cidade e até agora haviam desempenhado a sua função de acordo com os parâmetros esperados da Força Policial de Corvere. Desta vez, os soldados de cavalaria encontravam-se ainda de pé junto das suas montarias. — Talvez confundissem as ordens — disse a motorista através do quarto de janela aberto. Mas não havia convicção na sua voz. — É melhor alterarmos o percurso — ordenou Damed. — Siga por Harald Street. Em frente à esquerda. Os carros passaram acelerados por dois veículos mais lentos, um caminhão bem carregado, umcavalo e uma carroça, frearam bruscamente e viraram à esquerda no amplo troço de Harald Street. Este era um dos passeios públicos mais modernos e melhor iluminados, com candeeiros a gás dos dois lados da rua em intervalos regulares. Mesmo assim, o nevoeiro não tornava seguro ir a mais de vinte e cinco quilômetros por hora. — Existe algo à frente! — informou a motorista. Damed ergueu o olhar e praguejou.

Quando os faróis atravessaram o nevoeiro, viu uma grande massa de pessoas bloqueando a rua. Não distinguiu o que estava nos cartazes que empunhavam, mas era bastante fácil reconhecê-la como uma manifestação do Nosso País. Para complicar, não havia polícia para a controlar. Não se avistava um só oficial de capacete azul. — Pare! Recur! — gritou Damed. Acenou ao carro que vinha atrás, um sinal duplo que significava “Problemas!” e “Retirar!” Ambos os carros começaram a recuar. Quando o fizeram, a multidão à frente avançou. Até então, estivera silenciosa. Agora ouvia-se a gritar, “Fora com os estrangeiros!” e “Nosso País!”. Os gritos eram acompanhados de tijolos e pedras, que no momento não os atingiam. — Recue! — voltou a gritar Damed. Sacou da pistola, segurando-a junto à perna. — Mais depressa! O carro da retaguarda estava quase na esquina quando o caminhão e a carroça que tinhamultrapassado pararam, bloqueando o caminho. Saltaram das traseiras de ambos os veículos homens com máscaras, fazendo estremecer o nevoeiro ao correrem. Homens com armas. Damed soube antes de ver as armas que se tratava do que sempre temera. Uma emboscada. — Saiam! Saiam! — gritou, apontando para os homens armados. — Disparem! À sua volta, os outros guardas escancaravam as portas dos carros para terem cobertura. Umsegundo depois abriram fogo, o estampido mais forte das suas pistolas acompanhado do tap-tap-tap agudo das novas metralhadoras compactas que eram bem mais fáceis de manejar do que as antigas Lewtns do Exército. Nenhum dos guardas gostava de armas, mas tinham treinado constantemente comelas desde a vinda para sul da Muralha. — Sobre a multidão, não! — chamou Touchstone. — Apenas sobre os alvos armados! Os seus atacantes não eram tão cuidadosos. Tinham-se enfiado debaixo dos veículos, atrás de um marco do correio e escondido no caminho ao lado de um muro baixo de floreiras e disparavamfuriosamente. As balas ricocheteavam na rua e nos carros blindados em guinchos enfurecidos e enérgicos.

Havia barulho por todo o lado, sons irritantes e confusos, uma mistura de gritos e berros combinada com o estampido e a trepidação constantes da fuzilaria. A multidão, tão ansiosa por se precipitar segundos antes, tornara-se uma terrível torrente baratinada de pessoas tentando fugir. Damed correu para um aglomerado de guardas acocorados por trás do motor do carro da retaguarda. — O rio — gritou. — Atravessem a praça e desçam as Escadas do Guarda-Portão. Temos ali dois barcos. Não conseguirão persegui-los com o nevoeiro. — Podemos tentar voltar para a Embaixada! — retorquiu Touchstone. — Isto está muito bem planejado! A polícia bandeou-se, ou pelo menos um número suficiente deles! Têm de sair de Corvere. De Ancelstierre! — Não! — gritou Sabriel. — Nós não acabamos… Foi interrompida quando Damed a empurrou violentamente e a Touchstone saltando para cima deles. Com a sua rapidez lendária, interceptou um enorme cilindro preto que vinha às voltas pelo ar, trazendo um rastro de fumaça atrás de si. Uma bomba. Damed apanhou-a e arremessou-a num único movimento rápido, mas nem sequer ele foi suficientemente ligeiro. A bomba explodiu enquanto ainda vinha no ar. Carregada de explosivos fortes e pedaços de metal, matou de imediato Damed. A explosão fez saltar as janelas ao longo de um quilômetro e ensurdeceu e cegou momentaneamente todos num raio de cem metros. Mas foram os milhares de fragmentos de metal que causaram os verdadeiros estragos, cortando e silvando pelo ar, fazendo saltar pedra ou metal, ou dilacerando a carne com muita frequência. A explosão foi seguida de silêncio, à exceção do ruído do gás que saía dos candeeiros partidos. Até o nevoeiro fora repelido pela força do rebentamento, deixando um círculo enorme aberto no céu. Raios de sol fraco infiltravam-se, vindo iluminar uma cena de destruição terrível. Havia corpos espalhados por todo o lado e debaixo dos carros, nem um só guarda de sobretudo permanecia de pé. Até as janelas dos carros blindados estavam partidas e os ocupantes tinham tombado mortos. Os assassinos sobreviventes esperaram alguns minutos antes de saírern rastejando de trás do muro baixo e avançarem, rindo e congratulando-se mutuamente, carregando as armas descontraidamente nos braços ou aos ombros com o que julgavam ser um estilo bonito. A conversa e as gargalhadas eram muito altas, mas nem perceberam.

Os seus sentidos estavam abalados, as suas mentes em choque. Não só da explosão, mas também das visões terríveis que se aproximavam e eram mais reais a cada passo, ou até do alívio por estarem vivos no meio de tanta morte e destruição. O verdadeiro choque deu-se com a tomada de consciência de que há trezentos anos um Rei e uma Rainha tinham sido assassinados nas ruas de Corvere. Agora voltara a acontecer — e fora obra sua. PRIMEIRA PARTE Capítulo 1 UMA CASA SITIADA Havia outro nevoeiro, muito longe do smog de Corvere. Novecentos e sessenta quilômetros a norte, do outro lado da Muralha que separava Ancelstierre do Reino Antigo. A Muralha onde a magia do Reino Antigo começava realmente e a moderna tecnologia de Ancelstierre falhava. Este nevoeiro era diferente do seu parente mais a sul. Não era branco, mas o cinzento-escuro de uma nuvem de tempestade e completamente artificial. Este nevoeiro fora criado a partir do ar e da Magia Livre e surgira no alto de uma colina distante de qualquer resquício de água. Sobrevivera e espalhara-se não obstante o calor de uma tarde do final da Primavera, que o deveria ter feito dissipar. Ignorando o sol e as brisas ligeiras, o nevoeiro avançava desde a colina e estendia-se para sul e leste, braços finos rastejando à frente do corpo principal. Meia légua para lá da colina, um destes braços separava-se numa nuvem que se elevava alto no ar e atravessava o poderoso rio Ratterlin. Uma vez transposto, descia para assentar como um sapo na margem oriental e mais nevoeiro começava a sair dele. Em breve os dois braços do nevoeiro envolviam tanto as margens ocidental como oriental do Ratterlin, apesar do sol brilhar no rio. Tanto o rio como o nevoeiro deslocavam-se a ritmos muito diferentes em direção aos Penhascos Longos. O rio precipitava-se com cada vez maior intensidade ao dirigir-se para a grande cascata, onde mergulhava a mais de trezentos metros. O nevoeiro era lento e ameaçador. Adensava-se e elevava-se enquanto se estendia. Alguns metros antes de chegar aos Penhascos Longos, o nevoeiro cessava, apesar de continuar a adensar-se e elevar-se cada vez mais, ameaçando a ilha que se situava no meio do rio e à beira da cascata. Uma ilha com muros brancos altos que rodeava uma casa e jardins. O nevoeiro não se estendia sobre o rio nem se curvava a uma grande distância ao elevar-se. Havia defesas invisíveis que o detinham, que mantinham o sol brilhando nos muros brancos, nos jardins e na casa de telhado vermelho. O nevoeiro era uma arma, mas tratava-se apenas do primeiro avanço numa batalha, apenas do começo de um cerco. As linhas de combate estavam traçadas e a Casa atacada.

Porque toda a ilha circundada pelo rio era a Casa do Abhorsen. O lar do Abhorsen, cujo direito adquirido pelo nascimento e função era manter as fronteiras entre a Vida e a Morte. O Abhorsen, que usava os sinos necromânticos e a Magia Livre, mas que não era nem um necromante nem umfeiticeiro da Magia Livre. O Abhorsen, que reenviava quaisquer Mortos que invadissem a Vida para o lugar de onde tinham vindo. A autora do nevoeiro sabia que a Abhorsen não se encontrava na Casa. A Abhorsen e o marido, o Rei, tinham sido atraídos ao outro lado da Muralha e seriam, ao que se supunha, liquidados ali. Fazia parte do plano do Amo, há muito traçado, mas só recentemente iniciado. O plano tinha muitas partes, em muitas zonas, apesar de seu âmago e motivo se situarem no Reino Antigo. A guerra, o assassínio e os refugiados faziam parte do plano, todos manipulados por uma mente sutil e maquiavélica que aguardara durante gerações que tudo se concretizasse. Contudo, tal como em todos os planos, houvera complicações e problemas. Dois deles estavam na Casa. Umera uma jovem mulher, que fora enviada para sul pelas bruxas que viviam na montanha coberta pela geleira junto à nascente do Ratterlin. As Clayr, que viam muitos futuros no gelo e que certamente iriam tentar alterar o presente de acordo com os seus próprios fins. A mulher era uma das suas magas de elite, facilmente identificada pelo colete colorido que envergava. Um colete vermelho, caracterizando-a como Segunda Assistente de Bibliotecária. A autora do nevoeiro vira-a, de cabelo preto e tez pálida, não tendo certamente mais de vinte anos, uma mera insignificância em termos de idade. Ouvira o nome da jovem, gritado no desespero do combate. Lirael. A outra complicação era conhecida e possivelmente incômoda, muito embora os fatos fossem contraditórios. Um jovem, pouco mais do que um rapaz, com o cabelo encaracolado do pai e os sobrolhos negros da mãe e a altura de ambos. O seu nome era Sameth, o filho do rei Touchstone e da rainha Abhorsen Sabriel. O príncipe Sameth devia ser o Futuro Abhorsen, herdeiro dos poderes d’O Livro dos Mortos e dos sete sinos. Mas a autora do nevoeiro tinha agora as suas dúvidas. Estava muito velha e emtempos soubera muita coisa a respeito da estranha família e da sua Casa no rio. Lutara com Sameth há menos de uma noite e ele não combatera como um Abhorsen, até a forma como lançara a sua Magia da Carta fora estranha, sem qualquer reminiscências da linha real nem dos Abhorsens.

Sameth e Lirael não estavam sós. Contavam com o apoio de duas criaturas que pareciam ser apenas um pequeno gato branco de temperamento irascível e uma cadela grande preta e castanhoamarelada de índole amigável. No entanto, ambos eram muito mais do que pareciam, apesar de existirem dúvidas quanto ao que eram em concreto. Muito provavelmente, tratava-se de espíritos da Magia Livre de alguma espécie, obrigados a servir o Abhorsen e as Clayr. Até certo ponto, sabia-se o que era o gato. De seu nome Mogget, especulava-se a seu respeito em certos livros eruditos. Já a Cadela era uma questão diferente. Era jovem, ou tão velha que qualquer livro que falasse dela há muito se transformara em pó. A criatura no nevoeiro era da segunda opinião. Tanto a jovem como a cadela tinham vindo da Grande Biblioteca das Clayr. Era provável que ambas, tal como a Biblioteca, possuíssem profundezas ocultas e contivessem poderes desconhecidos. Juntos, estes quatro podiam ser adversários de peso e representavam uma ameaça séria. Mas a autora do nevoeiro não tinha de lutar diretamente com eles, tão-pouco o podia fazer, pois a Casa estava muito bem guardada tanto por encantamento como por águas rápidas. As suas ordens eram para se certificar de que eles ficavam presos na Casa. Esta deveria estar sitiada enquanto os assuntos se desenrolavam em outro lugar — até ser muito tarde para Lirael, Sam e os seus companheiros fazerem fosse o que fosse. Chlorr da Máscara sibilou ao pensar naquelas ordens e o nevoeiro ergueu-se em ondas à volta do que passava pela sua cabeça. Em tempos fora uma necromante viva e não recebia ordens de ninguém. Cometera um erro, erro esse que a levara à servidão. Mas o seu Amo não a deixara ir para o Nono Portão nem para lá dele. Fora devolvida à Vida, embora não sob qualquer forma viva. Agora era uma criatura Morta, apanhada pelo poder dos sinos, aprisionada pelo seu nome secreto. Não gostava das suas ordens, no entanto, não tinha outra alternativa senão obedecer. Chlorr baixou os braços. Alguns finos fios de nevoeiro escorreram dos seus dedos. Havia Mãos Mortas a toda a sua volta, centenas e centenas de cadáveres oscilantes, supurantes.

Chlorr não trouxera da Morte os espíritos que habitavam estes corpos meio esqueléticos e putrefatos, mas aquele que o fizera ordenara-lhe que os comandasse. Levantou um braço magro e comprido de sombra e apontou. Com suspiros, gemidos, gorgolejos e o estalido de articulações imobilizadas e ossos partidos, as Mãos Mortas avançaram marchando, fazendo o nevoeiro rodopiar a toda a sua volta. — Há pelo menos duas centenas de Mãos Mortas na margem ocidental e oitenta ou mais na oriental — disse Sameth. Endireitou-se por trás do telescópio de bronze e baixou-o. — Não consegui ver Chlorr, mas ela deve estar ali em algum lugar, presumo. Estremeceu ao recordar a última vez que vira Chlorr, uma coisa de negrura maligna erguendo-se sobre ele, a sua espada flamejante prestes a descer. Fora apenas na noite da véspera, apesar de parecer que decorrera já muito mais tempo. — É possível que algum outro feiticeiro da Magia Livre tenha provocado este nevoeiro —afirmou Lirael. Mas não acreditava nisso. Conseguia captar lá fora a mesma força opressiva que sentira na última noite. — Nevoeiro — disse a Cadela Sem Vergonha, que estava delicadamente equilibrada no banco do observador. Além do fato de falar e da coleira brilhante feita de marcas da Carta à volta do seu pescoço, parecia igual a qualquer outro cão grande preto e castanho-amarelado fruto de umcruzamento. Daqueles simpáticos que abanam a cauda e não dos que ladram e rosnam. — Acho que se tornou suficientemente denso para se poder designar por nevoeiro. A Cadela, a sua dona, Lirael, o príncipe Sameth e o servidor do Abhorsen com forma de felino, Mogget, estavam ali todos no observatório que ocupava o piso mais alto da torre no lado setentrional da Casa do Abhorsen. As paredes do observatório eram completamente transparentes e Lirael deu por si a lançar olhares nervosos para o teto, porque era difícil ver se algo o sustentava. As paredes também não eram de vidro, ou de qualquer material seu conhecido, o que, de certa forma, só vinha agravar a sensação. Todavia, como não queria que o seu nervosismo transparecesse, Lirael transformou a sua mais recente contração muscular num aceno de concordância enquanto a Cadela falava. Só a sua mão denunciava o que sentia, por isso manteve-a no pescoço da Cadela, por causa do conforto do calor do pêlo do animal e da Magia da Carta na sua coleira. Apesar de ser apenas o início da tarde e do Sol incidir diretamente sobre a Casa, a ilha e o rio, havia uma massa sólida de nevoeiro em cada margem, erguendo-se em simples muros que continuavam a crescer, apesar de estarem já a várias dezenas de metros de altura. O nevoeiro era sem dúvida de origem mágica. Não se elevava do rio, como sucederia no caso de um nevoeiro normal, nem vinha com uma nuvem baixa. Este nevoeiro avançara de leste e oeste ao mesmo tempo, deslocando-se com rapidez independentemente do vento. Pouco espesso de início, fechava-se mais a cada minuto.

Um outro indício do carácter estranho do nevoeiro encontrava-se a sul, onde parava abruptamente antes de se poder misturar com a bruma natural provocada pela grande cascata onde o rio se precipitava sobre os Penhascos Longos. Os Mortos haviam chegado pouco depois do nevoeiro. Cadáveres arrastando-se pesadamente que subiam de forma desajeitada pelas margens do rio, apesar de recearem a água que fluía rapidamente. Algo os impelia, algo escondido bem no meio do nevoeiro. Quase com certeza que esse algo era Chlorr da Máscara, outrora uma necromante, agora ela própria um dos Mortos Maiores. Uma combinação muito perigosa, Lirael sabia, porque provavelmente Chlorr conservaria grande parte dos seus antigos conhecimentos nefastos de Magia Livre, combinados com quaisquer poderes que pudesse ter adquirido na Morte. Poderes que seriam negros e desconhecidos. Lirael e a Cadela haviam conseguido repelir sumariamente Chlorr no combate da noite da véspera junto à margem do rio, mas não fora uma vitória. Lirael sentia a presença dos Mortos e a natureza sobrenatural do nevoeiro. Apesar da Casa do Abhorsen estar protegida por água corrente profunda e muitas proteções e defesas mágicas, tremia ainda, como se uma mão fria tivesse feito deslizar os seus dedos sobre a pele de Lirael. Ninguém comentou o arrepio, apesar de Lirael se sentir embaraçada pelo seu caráter tão óbvio. Ninguém dissera nada, mas estavam todos olhando para ela. Sam, a Cadela e Mogget, todos aguardando como se ela fosse proferir alguma verdade profunda. Por um momento, Lirael teve umacesso de pânico. Não estava acostumada a assumir a condução, quer na conversa quer fosse no que fosse. Mas agora ela era o Futuro Abhorsen. Enquanto Sabriel estava do outro lado da Muralha, em Ancelstierre, era ela a única Abhorsen. Os Mortos, o nevoeiro e Chlorr eram problemas seus. E eram apenas problemas menores, comparados com a verdadeira ameaça — o que quer que Hedge e Nicholas estavam desenterrando próximo do Lago Vermelho. “Vou ter de fingir”, pensou Lirael. “Vou ter de agir como um Abhorsen. Talvez se eu conseguir ser suficientemente convincente, acabe por acreditar também em mim mesma.” — Depois das alpondras, existe alguma outra saída? — perguntou de repente, virando-se para sul para olhar para as pedras que se viam debaixo de água, conduzindo tanto à margem oriental como à ocidental. Alpondras não era propriamente o nome mais adequado, pois não se passava a pé enxuto, pensou Lirael. Era preciso saltar, já que foram colocadas a pelo menos um metro e oitenta umas das outras e estavam à beira da cascata.

Se errasse o salto, seria levado pelo rio e a cascata atirava uma pessoa para baixo. Era uma descida muito longa, sob o enorme peso esmagador da água. — Sam? Sam abanou a cabeça. — Mogget? O pequeno gato branco estava enroscado na almofada azul e dourada que se encontrara por breves momentos em cima do banquinho do observador, antes de ser retirada por uma pata e de se revelar de muito maior utilidade no chão. Mogget não era efetivamente um gato, apesar de apresentar a sua forma. A coleira de marcas da Carta com o seu sino em miniatura — Ranna, o Portador do Sono — mostrava que ele era muito mais do que um simples gato falante. Mogget abriu um olho verde-vivo e bocejou amplamente. Ranna tiniu na sua coleira, e Lirael e Sam deram-se conta de que também bocejavam. — Sabriel levou a Asa de Papel, por isso não podemos sair pelo ar — disse ele. — Mesmo que pudéssemos voar, teríamos de passar pelos Corvos de Sangue Coagulado. Acho que poderia invocar um barco, mas os Mortos nos seguiriam pelas margens. Lirael olhou para os muros de nevoeiro. Era o Futuro Abhorsen há apenas duas horas e já não sabia o que fazer. Exceto que tinha a convicção absoluta de que precisavam abandonar a Casa e ir rapidamente para o Lago Vermelho. Precisavam encontrar o amigo de Sam, Nicholas, e impedi-lo de desenterrar o que quer que se encontrava aprisionado debaixo da terra. — Talvez haja outra saída — afirmou a Cadela. Saltou do banquinho e começou a descrever um círculo próximo de Mogget enquanto falava, trotando como se estivesse a pisar ervas debaixo das suas patas e não pedra fria. Ao dizer “saída” atirou-se subitamente para o chão próximo do gato e bateu com uma pata pesada junto à cabeça dele. — Muito embora Mogget não vá gostar. — Qual saída? — sibilou Mogget, arqueando o dorso. — Não sei de nenhuma saída depois das alpondras, ou do ar por cima, ou do rio… e ando por aqui desde que a Casa foi construída. — Mas não quando o rio foi dividido e criada a ilha — disse a Cadela com toda a calma. —Antes dos Construtores da Muralha erguerem os muros, quando a tenda do primeiro Abhorsen estava armada no lugar onde cresce agora a figueira grande. — É verdade — admitiu Mogget. — Mas você também não estava lá.

— As últimas palavras de Mogget indiciavam uma pergunta, ou uma dúvida, pensou Lirael. Observou com atenção a Cadela Sem Vergonha, mas o animal limitou-se a coçar o focinho com ambas as patas dianteiras antes de prosseguir. — Seja como for, em tempos existiu outra saída. Se ainda existe, é funda e poderia ser perigosa de muitas formas. Há quem pense que seria mais seguro atravessar as pedras e abrir caminho através dos Mortos. — Mas você não? — perguntou Lirael. — Acredita que existe uma alternativa? Lirael tinha medo dos Mortos, mas não ao ponto de não ser capaz de enfrentá-los se fosse necessário. Só não estava inteiramente confiante na sua identidade recentemente descoberta. Talvez uma Abhorsen como Sabriel, na plena flor da idade e dos poderes, conseguisse simplesmente galgar as alpondras e pôr Chlorr, as Mãos Sombra e todos os outros Mortos em debandada. Lirael pensou que se tentasse pessoalmente, acabaria a bater em retirada pelas pedras e muito provavelmente cairia ao rio e seria despedaçada na cascata. — Acho que deveríamos investigar — proferiu a Cadela. Espreguiçou-se, quase atingindo Mogget de novo com as patas, depois levantou-se devagar e bocejou, pondo a descoberto dentes extraordinariamente grandes e muito alvos. Tudo aquilo, estava Lirael absolutamente convencida, era para provocar Mogget. Mogget fitou a Cadela através dos olhos semicerrados. — Funda? — miou o gato. — Isso significa o que eu estou pensando? Não podemos ir até lá! — Há muito que ela se foi — replicou a Cadela. — Muito embora presuma que possa exisitir algo… — Ela? — inquiriram Lirael e Sameth ao mesmo tempo. — Conhecem o poço no roseiral? — perguntou a Cadela. Sameth anuiu, enquanto Lirael tentava recordar-se se tinha visto um poço quando haviamatravessado a ilha até à Casa. Lembrava-se vagamente de ter vislumbrado rosas, muitas rosas espalhadas que se erguiam depois da parte oriental do relvado mais próximo da Casa. — É possível descer o poço — prosseguiu a Cadela. — Muito embora seja uma descida longa e estreita. Vai nos levar diretamente às cavernas mais profundas. Existe um caminho através delas até à base da cascata. Depois teremos de voltar a subir os penhascos, mas espero que consigamos fazê-lo mais a oeste, ultrapassando Chlorr e os seus lacaios.

— O poço está cheio de água — disse Sam. – Vamos nos afogar. — Tem certeza? — indagou a Cadela. — Alguma vez olhou lá para dentro? — Bem, não — disse Sam. — Está tapado, creio… — Quem é a “ela” que mencionou? — perguntou Lirael com firmeza. Sabia por experiências passadas quando a Cadela estava evitando um assunto. — Alguém que viveu em tempos lá embaixo — respondeu a Cadela. — Alguém que tinha poderes consideráveis e perigosos. É possível que existam ali alguns restos dela. — O que significa “alguém”? — inquiriu Lirael em tom austero. — Como é possível que alguém tenha vivido debaixo da Casa do Abhorsen?

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