QUANDO SENTIA FRIO NOS PÉS, mexia um pouco as pernas até ouvir o barulho queixoso dos pedregulhos no solo. Na verdade o lamento vinha dele. Nunca lhe ocorrera ficar tanto tempo imóvel como agora, atrás daquela cerca, na Estrada Grande, à espera de que o outro passasse. A tarde morria. Temeroso, quase amedrontado, ele aproximou os olhos da mira do fuzil. Dali a pouco, com o crepúsculo, ficaria difícil fazer pontaria. “Ele vai passar antes que a noite o impeça de mirar, com certeza”, dissera-lhe o pai. “Basta ter paciência, esperar.” Fazia tempo que suas articulações doíam. Já nem sentia o braço direito. Lentamente a mira do fuzil deslizou, ao longo da estrada, por restos de neve que não derretera. Os pastos mais adiante estavam pontilhados por romãzeiras silvestres. A ideia de que aquele era um dia extraordinário na sua vida lhe passou, nebulosa, pela mente. O cano da arma se moveu de novo, no sentido inverso, das romãzeiras para os restos de neve. O que ele chamava dia extraordinário já se reduzia àqueles restos de neve e àquelas romãzeiras silvestres, que pareciam esperar desde o meio-dia para ver o que ele iria fazer. “Mais um pouco, está escuro”, pensou, “e eu nunca poderei mirar.” Na realidade, queria que o crepúsculo caísse o quanto antes, trazendo a noite, e o deixasse escapar daquela maldita tocaia. Porém, o dia se arrastava, como se se alegrasse em mantê-lo preso. Embora fosse a segunda tocaia de vendeta {3} na sua vida, o homem que devia matar era o mesmo da primeira emboscada; assim, para ele, era como se uma fosse a continuação da outra. Sentiu outra vez os pés gelados e outra vez mexeu as pernas, como se desse modo impedisse a friagem de subir. Mas ela já chegara à sua barriga, à garganta, à cabeça até. Uma parte do seu cérebro parecia congelada como os restos de neve mais à frente no caminho. Não tinha condições de raciocinar. Apenas senda hostilidade para com as romãzeiras e os restos de neve, como se, sem eles, fosse mais fácil abandonar a tocaia. Acontece que ali estavam, testemunhas caladas, e ele não iria embora.
Pela vigésima vez naquela tarde, avistou na curva da estrada o homem que devia matar. Andava com passos curtos, o cano preto do fuzil despontando no ombro direito. O que estava de tocaia estremeceu: agora não era uma visão. Era mesmo o homem que esperava. Como das outras vezes, Gjorg apontou o fuzil para a cabeça do outro, mirando. Ele se movimentou, escapando da linha de fogo, e no último momento Gjorg achou até que sorriu comironia. Seis meses antes acontecera a mesma coisa. Para não desfigurar a vítima (de onde surgira aquela compaixão de última hora?), ele tinha baixado a mira, e por isso não matara o homem, só o ferira no pescoço. O outro se aproximava. “Tomara que eu não o fira”, implorou Gjorg. A custo os seus tinham pago a multa pelo primeiro ferimento, e um segundo erro de pontaria iria arruiná-los. Ao passo que a morte não custava nada. O outro já estava perto. “Melhor errar totalmente do que ferir”, murmurou Gjorg consigo. Tratou de não pensar em nada. A primeira vez tinha pensado demais e por isso estragara as coisas. Sentira pena, vergonha e até, no último momento, lembrara o velho ditado: “Quem chumbo viu, de chumbo morreu”. “Não tenho mais que pensar”, disse consigo. “Só tenho que fazer o que deve ser feito.” Como imaginara centenas de vezes, antes de atirar Gjorg avisou o homem, conforme mandava o costume. Nem na hora nem depois teve certeza se falara ou se sua voz havia falhado. A verdade é que a vítima de repente virou a cabeça. Gjorg ainda viu um rápido movimento de braço, como que para pegar o fuzil, e então atirou. Um tanto espantado, ergueu os olhos da arma para o morto (embora ele estivesse de pé, Gjorg não tinha dúvida de que o matara). O outro deu meio passo à frente, deixou o fuzil escorregar para um lado e caiu para o lado oposto.
Gjorg se aproximou do defunto. A estrada estava completamente deserta. Só se ouviam seus passos. O morto caíra de bruços. Gjorg se agachou perto dele e pôs uma das mãos no seu ombro, como para despertá-lo. Retirou a mão dali e pensou: “E agora?”. Mas a mão voltou ao ombro do outro, como se quisesse que ele voltasse à vida. “O que estou fazendo?”, Gjorg se recriminou. Foi então que percebeu: não se curvara sobre o finado para arrancá-lo do sono eterno, e sim para virá-lo de frente. Bastava virá-lo de frente, como mandava o costume. As romãzeiras silvestres e os restos de neve continuavam ali, à espreita. Levantou-se e deu alguns passos, mas logo lembrou que devia apoiar na cabeça do outro o fuzil que este carregava. Movimentou-se como num sonho. Sentia náuseas e por duas ou três vezes repetiu que era por causa da visão do sangue. Instantes depois se viu quase correndo pelo caminho ermo. Anoitecia. Às vezes ele olhava para trás, sem saber por quê. A estrada continuava deserta, em meio às ervas e ao dia que findava. Pouco adiante ouviu chocalhos de mulas e em seguida vozes humanas. Um grupo de pessoas se aproximava pela Estrada Grande. Pareciam ora forasteiros ora montanheses voltando da feira. Antes que Gjorg pudesse descobrir quem eram, eles estavam na sua frente. Havia homens, moças e crianças. Deram-lhe boa-noite e ele parou. Depois de fazer um gesto na direção de onde viera, disse-lhes com voz meio rouca: “Ali, na curva da Estrada Grande, matei um homem.
Virem-no, boa gente, e apoiem o fuzil na cabeça dele”. Fez-se silêncio no pequeno grupo. “O sangue lhe deu náuseas?” Ele não respondeu. Alguém lhe aconselhou algo contra náuseas, mas ele não ouviu. Retomara a caminhada. Sentia-se um pouco aliviado, agora que lhes dissera que virassem o morto. Não conseguia lembrar se endireitara ou não o cadáver. O Kanun previa a perturbação que um matador experimenta e permitia que se pedisse a um passante que fizesse o que devia ser feito. Mas deixar o morto de bruços e a arma longe do seu corpo era uma desonra imperdoável. Ainda não anoitecera de todo quando Gjorg chegou à aldeia. Seu dia extraordinário continuava. A porta da kullë {4} estava entreaberta. Empurrou-a com o ombro e entrou. “Então?”, perguntou alguém lá dentro. Ele assentiu, sem falar. “Quando?” “Há pouco.” Sentiu suas pernas subindo a escada de madeira. “Você tem sangue nas mãos”, disse o pai. “Vá se lavar.” Gjorg olhou assombrado para as mãos. “Então devo tê-lo virado”, disse. Não havia motivo para a inquietação que sentira no caminho. Era só olhar para as mãos e lembraria que tinha endireitado o corpo do morto conforme as regras. A casa cheirava a café torrado. Surpreendentemente, Gjorg sentiu sono e chegou a bocejar.
Por trás de seu ombro esquerdo, os olhos brilhantes da irmã menor pareciam longínquos como duas estrelas além do horizonte. “E agora?”, perguntou de repente, sem se dirigir a ninguém em particular. “É preciso avisar da morte no povoado”, respondeu o pai. Só então Gjorg notou que o pai estava calçando as alpercatas. Bebia o café que a mãe preparara para ele quando ouviu o primeiro grito lá fora: “Gjorg dos Berisha atirou em Zef Kryeqyq!”. A voz tinha um timbre particular, alguma coisa entre o tom de quem proclama um decreto oficial e o de quem entoa um velho salmo. O som inumano o despertou do entorpecimento. Era como se o nome dele tivesse deixado seu ser, sua pele e suas entranhas, para se espalhar cruelmente lá fora. Nunca sentira algo assim. “Gjorg dos Berisha”, repetiu consigo o bordão do arauto impiedoso. Tinha vinte e seis anos, e era a primeira vez que seu nome ocupava os fundamentos da vida. “Gjorg dos Berisha atirou em Zef Kryeqyq!”, repetiu outra voz, vinda de outra direção. Era assombroso ouvir converter-se em proclamação aquilo que pouco antes fora apenas uma sequência de movimentos dele, um som ao fazer pontaria e depois os loucos acontecimentos a que assistiram as romãs silvestres e a neve arrogante. Seu nome, Gjorg, pareceu-lhe repentinamente muito velho e pesado, como letras entalhadas, eivadas de musgo, no arco de uma igreja. Fora, os arautos da morte passavam aquele nome de boca em boca, como se tivesse asas. Meia hora depois trouxeram o morto para a aldeia. Conforme o costume, ele jazia sobre quatro galhos de faia. Ainda tinha uma expressão morna, como se não houvesse rendido a alma. O pai do morto esperava em pé, à porta de sua kullë. Quando os carregadores do cadáver estavam a quarenta passos, gritou: “O que me trazem? Ferida ou morte?”. “Morte.” A resposta veio curta, cortante. A língua do pai procurou por saliva, longe, muito longe, no fundo da boca. A custo ele articulou: “Ponham-no aqui dentro e comuniquem a morte à aldeia e aos parentes”. Os chocalhos dos rebanhos que voltavam ao lugarejo de Brezftoht, o som dos sinos vespertinos e todos os ruídos do anoitecer davam a impressão de arcar com o peso da recém-anunciada notícia da morte.
Observava-se um movimento inusitado nas ruelas da aldeia. Algumas tochas, parecendo frias por não ser ainda noite fechada, flamejavam mais longe, nos limites do povoado. Havia um vaivémdiante da casa do morto. Outras pessoas, aos pares ou em grupos de três, partiam para um lugar qualquer ou voltavam não se sabe de onde. Pelas janelas de algumas kullë transitavam as últimas notícias. “Já soube que Gjorg Berisha atirou em Zef Kryeqyq?” “Gjorg dos Berisha vingou a morte do irmão.” “Os Berisha vão pedir a bessa {5} de vinte e quatro horas?” “Com certeza.” Das janelas das kullë se via toda a agitação da aldeia. A noite caíra de vez. A luz das tochas se tornara mais densa, como se tivesse congelado. Aos poucos, adquiria um tom escuro de vermelho, como o de uma lava vulcânica recém-saída de misteriosas profundezas. Suas fagulhas espalhavam ao redor o pressentimento do derrame de mais sangue. Quatro homens, entre eles um ancião, caminhavam na direção da casa do morto. “Os mediadores vão solicitar a bessa de vinte e quatro horas em benefício dos Berisha”, disse alguém numa janela. “E vão conseguir?” “Por certo.” Ainda assim, todo o clã dos Berisha tratava de tomar medidas defensivas. Ouviam-se vozes: “Murash, depressa, para casa!”; “Cen, tranque a porta”; “Onde está Preng?”. Cerravam-se as portas das casas de todo o clã, de parentes próximos e distantes, pois sempre se soube, através das gerações, que aquele momento — o que se seguia à morte —, no qual a família da vítima ainda não concedera nenhuma das bessa, era perigosíssimo. Os Kryeqyq, cegos de dor, tinham então o direito de atirar em qualquer membro do clã Berisha. Todos esperavam à janela que a delegação saísse da casa do morto. “Será que darão bessa?”, perguntavam as mulheres. Por fim, os quatro intermediários reapareceram. A conversa fora curta. O andar deles não revelava nada, mas logo depois um grito espalhou a notícia: “A família dos Kryeqyq abriu bessa”. Todos entenderam que se falava da bessa pequena, de vinte e quatro horas.
Ninguém sequer concebia que pudesse se tratar da bessa grande, de trinta dias, que só a aldeia poderia pedir aos Kryeqyq, e depois do enterro. As vozes voavam de casa em casa: “A família dos Kryeqyq abriu bessa”; “Os Kryeqyq abrirambessa”. “Louvado seja Nosso Senhor! Pelo menos por um dia não se derrama mais sangue…”, suspirou uma voz rouca por trás de uma porta. A cerimônia fúnebre aconteceu no meio do dia seguinte. As carpideiras vieram de longe, arranhando as faces e arrancando os cabelos como de praxe. O velho cemitério se encheu das túnicas pretas dos acompanhantes do enterro. Após o sepultamento, o cortejo tornou à casa dos Kryeqyq. Gjorg fazia parte dele. Por vontade própria, jamais teria ido. Ocorrera entre o pai e ele aquela que esperava ser a última das desavenças mil vezes repetidas nas pradarias montesas. “Você deve ir ao enterro e também ao almoço fúnebre.” “Mas eu sou o gjaks, {6} por que logo eu devo ir?” “Exatamente porque matou, você tem que ir. Qualquer um pode faltar ao enterro e ao almoço fúnebre, menos você. Eles o esperam mais que a todos os outros.” “Mas por quê?”, insistira Gjorg, pela última vez. “Por que devo fazer uma coisa dessas?” O pai então o havia fulminado com os olhos, e ele se calara. Agora, caminhava em meio aos acompanhantes do enterro, com os olhos tão frios como aquele dia de março, tal qual ele mesmo estivera frio e sem rancor um dia antes, na tocaia. A sepultura recém-aberta, as cruzes de pedra ou madeira, na maioria inclinadas, o som triste do sino, tudo estava diretamente relacionado a ele. O rosto das carpideiras, com as lacerações provocadas pelas unhas (meu Deus, como suas unhas podiam crescer tanto de um dia para o outro?), os cabelos arrancados com selvageria, os olhos congestionados, o ruído dos passos ao seu redor, toda aquela obra fúnebre, ele é que a criara. E como se não bastasse, era obrigado a andar em meio a ela, lentamente, respeitosamente, como os outros. As listras laterais das calças de lã branca que eles vestiam quase tocavam as suas, como víboras a destilar veneno, prontas para o bote. Mas ele podia ficar tranquilo: a bessa de vinte e quatro horas o protegia, mais e melhor que qualquer muro de kullë ou castelo. Os canos dos fuzis despontavam sobre os coletes pretos dos homens, porém por enquanto ninguém tinha permissão para atirar. Amanhã, depois de amanhã, talvez. Caso a aldeia solicitasse a bessa de trinta dias, ele teria mais quatro semanas de paz.
Depois… Alguns passos adiante, um cano de um velho fuzil de guerra se movia a todo instante como que para se distinguir dos demais. Outro cano, curto, despontava à sua esquerda. E outros o cercavam. Qual deles… Em sua mente, as palavras “vai me matar” se converteram enfim, tornando-se um pouco mais leves: “vai atirar em mim”. O caminho do cemitério até a casa do morto parecia não ter fim. E Gjorg ainda enfrentaria o almoço fúnebre, uma prova mais difícil. Sentaria à mesa junto com o clã do morto. Serviriam o pão, os pratos, poriam uma colher diante dele, e ele teria que comer. Ocorreu-lhe algumas vezes a ideia de fugir daquela situação absurda, correr daquele cortejo fúnebre. Podiam censurá-lo, zombar dele, dizer que violara um código secular, até atirar pelas costas se quisessem, contanto que ele pudesse ir para longe. Porém, ele sabia que jamais fugiria, assimcomo seus avós, bisavós, tataravós não tinham fugido, cinquenta, cem, mil anos antes. Afinal chegavam à kullë do defunto. Panos pretos cobriam as janelas estreitas sobre o arco do portal. “Oh, onde é que estou entrando?!”, gemeu Gjorg consigo, e embora o portal baixo da construção estivesse a cerca de cem passos, ele foi abaixando a cabeça como que para evitar esbarrar no arco de pedra. O almoço fúnebre transcorreu de acordo com todas as regras. Gjorg passou o tempo todo pensando em seu próprio almoço fúnebre. Qual dos presentes compareceria, como ele comparecera? As carpideiras ainda tinham o rosto arranhado e ensanguentado. A tradição ordenava que não o lavassem, nem na aldeia onde ocorrera a morte, nem no caminho de volta. Só poderiam fazê-lo quando chegassem a seus povoados. Os ferimentos na testa e nas faces lhes davam a aparência de máscaras. Gjorg se pôs a pensar como ficariam as carpideiras do seu clã. Parecia que toda a sua vida interior seria um almoço fúnebre sem fim, em que uma facção se revezaria com a outra nos papéis de anfitrião e visitante. E cada uma delas, antes de ir ao banquete, poria a máscara sangrenta. À tarde, após o almoço fúnebre, um vaivém inusitado recomeçou no lugarejo. Em algumas horas acabaria a bessa pequena para Gjorg Berisha, e desde já os anciãos se prontificavam a comparecer à kullë dos Kryeqyq para pleitear em nome da aldeia a bessa grande, de trinta dias.
Além das soleiras das kullë, no andar superior — onde ficavam os aposentos reservados às mulheres —, nas praças da aldeia, não se falava noutra coisa. Tratava-se da primeira morte decorrente de vendeta naquela primavera, e era natural que todos os acontecimentos a ela relacionados despertassem interesse. Fora uma morte perpetrada conforme todas as regras. E o sepultamento, o almoço fúnebre, a bessa de vinte e quatro horas e tudo o mais obedeceram ao velho Kanun. Portanto, decerto também seria concedida a bessa de trinta dias, que os anciãos se preparavam para pedir aos Kryeqyq. Entretanto, em meio aos comentários durante a espera das últimas notícias sobre a trégua de trinta dias, vinham à baila episódios em que as normas do Kanun tinham sido desrespeitadas, emtempos recentes ou remotos, naquela aldeia e nas vizinhanças, ou mesmo em lugarejos distantes, por onde se estendessem aquelas montanhas sem fim. Lembravam-se os violadores do Kanun e as bárbaras punições que haviam sofrido. Evocavam-se certas pessoas castigadas por suas próprias famílias, famílias penalizadas coletivamente por seu povoado, e também aldeias inteiras condenadas e escarmentadas até a loucura por um grupo de aldeias do mesmo flamur, {7} como se costumava dizer. Mas, “louvado seja Nosso Senhor” — diziam com um suspiro de alívio —, fazia tempo que nenhuma daquelas sem-vergonhices acontecia na aldeia deles. Tudo se dava conforme os velhos códigos, e desafiá-los era coisa que não passava pela cabeça de ninguém. Também o sangue derramado na véspera obedecera ao costume. Gjorg dos Berisha, mesmo sendo jovem, portara-se decentemente tanto no enterro do inimigo como no almoço fúnebre. Com certeza os Kryeqyq lhe concederiam a bessa de trinta dias. Mais ainda porque, se a aldeia podia obter a trégua dessa bessa, podia tambémrompê-la, caso o gjaks, aproveitando o benefício temporário, resolvesse sair pelo lugarejo se gabando do seu ato. Mas não, Gjorg dos Berisha nunca fora do tipo que se vangloriava. Pelo contrário, sempre se dizia que era fechado e comportado; portanto, ninguém esperaria dele uma insensatez. De outros sim, dele não. Os Kryeqyq concederam a bessa grande à tarde, pouco antes de acabar o prazo da pequena. Umdos anciãos do lugar, que estivera com a família do morto, foi à kullë dos Berisha e deu a notícia, aproveitando para repetir os conselhos de praxe: que Gjorg não abusasse etc. Quando o emissário se foi, Gjorg permaneceu como uma pedra num canto da casa. Restavam-lhe trinta dias de vida sem riscos. Depois disso, a morte o espreitaria em toda parte. Como um morcego, ele só se movimentaria nas trevas, fugindo do sol, da lua cheia e das tochas. Trinta dias, murmurou. Sempre encolhido, na penumbra, como um bandoleiro.
O tiro do fuzil ali na cerca da Estrada Grande cortara de um golpe a sua vida em duas: a parte dos vinte e seis anos até então e a parte de trinta dias que começava agora — de 17 de março até 17 de abril. Depois viria o esvoaçar de morcego, que ele já não contava. Com o canto do olho Gjorg mirou o fragmento de paisagem além da janela estreita. Lá fora corria março, meio risonho, meio gelado, com aquela perigosa luminosidade alpina que só esse mês possuía. Mais tarde viria abril, ou melhor, apenas sua primeira metade. Gjorg sentiu um vazio do lado esquerdo do peito. Abril desde já se revestia de uma dor azulada… Ah, sim, abril sempre lhe causara essa impressão, de um mês um tanto incompleto. Abril dos amores, como diziam as canções. O seu abril despedaçado… Apesar de tudo, foi melhor assim, suspirou, sem sequer saber o que fora melhor, a vingança pela morte do irmão ou a época em que se dera a vendeta. Não fazia meia hora que a bessa de trinta dias havia sido proclamada, e ele quase se acostumara com a ideia de uma vida irremediavelmente dividida em duas. Chegava a sentir que ela sempre fora assim: um longo pedaço, de vinte e seis anos, com uma vida vagarosa, aborrecida mesmo, vinte e seis marços e abris, outros tantos invernos e verões, e mais um pedaço, curto, de quatro semanas, impetuoso, rápido como uma avalanche, com apenas uma metade de março e outra de abril tal qual dois galhos quebrados cintilando na geada. O que faria naqueles trinta dias que lhe restavam? Habitualmente, durante a bessa grande, as pessoas se apressavam em fazer o que nunca tinham feito na outra parte de suas vidas. E se não tivesse sobrado grande coisa por fazer, entregavam-se ao cumprimento dos labores de todo dia. Se fosse tempo de semear, tratavam de concluir a semeadura; se fosse tempo de colher, apanhavam os feixes de trigo; caso não fosse nem um nem outro, cuidavam de coisas mais comuns, como algumconserto no telhado ou no curral. Na hipótese de nem isso ser necessário, simplesmente saíam pelos bosques para ver mais uma vez o voo das cegonhas ou as primeiras geadas de outubro. Os solteiros em geral se casavam, mas Gjorg não se casaria. Sua prometida, uma moça que jamais conhecera, havia adoecido em sua terra distante e morrera fazia um ano, e agora ele não tinha mais noiva. Sem tirar os olhos de seu fragmento de paisagem que se enevoava, Gjorg pensava o que fazer dos trinta dias que lhe restavam. Às vezes eles lhe pareciam pouco, pouquíssimo, uma pitada de tempo que não daria para nada, mas outras vezes os trinta dias se dilatavam terrivelmente, desnecessariamente. “Dezessete de março”, murmurou consigo. Vinte e um de março. Vinte e oito de março. Quatro de abril. Onze de abril. Dezessete de abril.
Dezoito… abril-morto. E depois, sempre isso: abril- morto, abril-morto e mais nada. Maio, nunca. Estava assim, murmurando entre dentes datas ora de abril ora de março, quando ouviu os passos do pai, que descia a escada da kullë. Trazia na mão uma bolsa de lona. “Gjorg, tome aqui os quinhentos groshë {8} do sangue”, disse, estendendo-lhe a bolsa. Gjorg o fitou com os olhos arregalados, ocultando as mãos atrás de si, tratando de guardar distância daquela coisa maldita. “Por quê?”, indagou com voz sumida. “Por quê?” O pai olhou para ele não sem espanto. “Como ‘por quê’? Você esqueceu que é preciso pagar o tributo do sangue?” “Ah”, disse Gjorg com certo alívio. “Ah, sim.” A bolsa continuava sendo oferecida a ele, que estendeu as mãos para apanhá-la. “Depois de amanhã você parte para a kullë de Orosh”, prosseguiu o pai. “Levará um dia para chegar.” Gjorg não tinha a menor vontade de chegar a parte alguma. “Esse assunto tem pressa, pai? É preciso pagar imediatamente?” “Sim, filho. Esse assunto tem pressa. O tributo do sangue deve ser pago logo depois que o sangue é derramado.” A bolsa agora estava na mão direita de Gjorg. Pesava como chumbo. Continha as economias de estações inteiras, semana após semana e mês após mês, à espera da vendeta. “Depois de amanhã, para a kullë de Orosh”, repetiu o pai. Havia se aproximado da janela e olhava atentamente para alguma coisa lá fora. No canto dos olhos tinha um brilho de interesse. “Venha cá”, disse ao filho com suavidade.
Gjorg se achegou a ele. Embaixo, no quintal da casa, o varal ostentava uma camisa solitária. “A camisa de seu irmão”, disse o pai quase num suspiro. “A camisa de Mëhill.” Gjorg fixou os olhos nela. Era branca e esvoaçava ao vento; bailava, inflava-se alegremente, como se tivesse alma. Um ano e meio depois que o irmão morrera, a mãe por fim lavara a camisa que o desgraçado vestia naquele dia. Durante um ano e meio ela estivera pendurada, tinta de sangue, no andar superior da casa, como exigia o Kanun, à espera do momento de ser lavada, após a vingança. Dizia-se que quando as manchas de sangue na camisa começavam a amarelar, era indício seguro de que o morto se sentia atormentado pela demora da vendeta. Com frequência, em momentos solitários, Gjorg subira ao aposento deserto para olhar a camisa. O sangue amarelava cada vez mais. Aquilo significava que o morto não encontrara descanso. Incontáveis vezes Gjorg vira em sonhos a camisa em meio à água e à espuma, alvejando e espalhando luz como um céu de primavera. Todavia, pela manhã ele a encontrava sempre ali, cheia de manchas vermelhas de sangue seco, e outra vez fixava os olhos nela, até cansar. Isso semana após semana, transmitindo os sinais que enviava o morto das profundezas da terra onde estava. Agora, finalmente, a camisa fora pendurada no varal. Mas Gjorg, para seu espanto, não sentia nenhum alívio. Entretanto, assim como uma nova bandeira hasteada depois da retirada da velha, no andar superior da kullë dos Kryeqyq pendia a camisa ensanguentada do novo morto. As estações, o calor e o frio, haveriam de influir nas mudanças da cor do sangue seco, assimcomo talvez o tipo de tecido. Mas ninguém levava isso em conta, e cada metamorfose era interpretada como uma misteriosa mensagem que não se poderia contestar. 2 FAZIA HORAS QUE GJORG caminhava pelo Rrafsh, {9} e não havia nenhum sinal de que se aproximava da kullë de Orosh. Sob a chuva miúda, sucediam-se quebradas sem nome, ou cujos nomes ele não conhecia, uma após outra, descarnadas e tristes. As cristas dos montes mal se distinguiam por trás delas, mas o nevoeiro era tamanho que facilmente se acreditava ver, através de seu véu, a silhueta pálida de uma única montanha, multiplicada como numa miragem, e não um amontoado de cumes, um mais descalvado que o outro. A névoa tornava as montanhas imateriais, contudo, surpreendentemente, assim pareciam ainda mais opressivas que nos dias claros, quando nenhuma máscara ocultava seus penedos e abismos. O barulho dos pedregulhos da estrada sob a sola das alpercatas de Gjorg era abafado.
As aldeias rareavam, bem como os lugarejos com subprefeituras. Mas mesmo que abundassem, Gjorg não cogitava parar em parte alguma. Devia chegar o quanto antes à kullë de Orosh, pois, segundo as palavras do pai, sempre havia urgência quando se tratava de sangue e das coisas a ele relacionadas, até mesmo os tributos. A maior parte do caminho era quase um deserto. Aqui e ali, em meio à bruma, surgiam montanheses solitários que, como ele, viajavam para algum lugar. Ao longe, davam a impressão de não ter nome nem substância, como tudo o mais naquele dia nebuloso. Os povoados eram tão silenciosos quanto a estrada. Dos telhados íngremes das casas esparsas subiam intrigantes fiapos de fumaça. “Uma casa é qualquer tipo de construção, desde que tenha fogo e solte fumaça.” Gjorg não sabia dizer por que repetia consigo aquela definição do Kanun, que sabia desde menino. “Não se entra numa casa sem chamar o dono e esperar a resposta.” “Mas eu não pretendo bater à porta de ninguém!”, exclamou consigo em tom queixoso. A garoa não cessava. Gjorg avistou pela terceira vez um grupo de montanheses que andavam em fila indiana carregando sacos de milho. Sob o peso dos sacos, suas costas pareciam mais curvadas do que seria de esperar. “Talvez o milho esteja molhado”, pensou. Os montanheses e suas cargas ficaram para trás, e ele estava de novo sozinho no meio da Estrada Grande. Os limites do caminho ora apareciam claramente ora se esfumavam nas duas margens. Aqui e ali a água e os deslizamentos de terra tinham estreitado seu leito. “A largura do caminho deve ter as dimensões da haste de uma bandeira.” Ao remoer mais essa regra, Gjorg se deu conta de que havia tempo rememorava, ainda que a contragosto, as definições do Kanun sobre caminhos e caminhantes. “Pela estrada passa gente, passa gado, passam os vivos, passam os mortos.” Sorriu. Por mais que fizesse, não se libertaria daqueles cânones. Seria inútil se enganar.
O Kanun era mais poderoso do que parecia. Estendia-se por toda parte, deslizava pelas terras, pelas bordas dos campos lavrados, penetrava nos alicerces das casas, nos túmulos, nas igrejas, ruas, feiras, festas de noivado, erguia-se até os cumes alpinos, talvez ainda mais alto, até o próprio céu, de onde caía em forma de chuva para encher os cursos de água que eram o motivo de um terço dos assassinatos. Começara com aquilo sem pensar, desde o dia em que compreendera que deveria matar um homem. Era um fim de verão. No átrio da kullë, onde estava sentado com dois companheiros, seguia com os olhos as fagulhas do fogo, avivadas pelo adensamento do crepúsculo, quando a mãe o chamara: “Seu pai quer falar com você”. Ao voltar do terceiro andar da kullë, viera com uma expressão tão carregada que os companheiros perguntaram: “Que há com você?”. Depois de lhes contar, esperava que dissessem: “Pobre coitado!”, mas não disseram. Olharam para ele com um ar espantado em que não se distinguia se havia pena ou admiração.
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