— Acorde, gênio. Rothstein não queria acordar. O sonho estava bom demais. Mostrava sua esposa meses antes de se tornar sua primeira esposa, com dezessete anos e perfeita dos pés à cabeça. Nua e cintilando. Os dois nus. Ele, com dezenove anos, tinha graxa debaixo das unhas, mas ela não ligava, ao menos não na época, porque a cabeça dele estava cheia de sonhos, e era com isso que ela se importava. Ela acreditava nos sonhos ainda mais do que ele, e estava certa em acreditar. Naquele sonho, ela estava rindo e esticando a mão para a parte dele que era mais fácil de pegar. Ele tentou se aprofundar no sonho, mas alguém começou a sacudir seu ombro, e o sonho estourou como uma bolha de sabão. Ele não tinha mais dezenove anos nem morava no apartamento de dois cômodos em Nova Jersey. Estava a seis meses do octogésimo aniversário e morava em uma fazenda em New Hampshire, na qual seu testamento especificava que devia ser enterrado. Havia homens no quarto dele. Usavammáscaras de esqui, uma vermelha, uma azul e uma amarelo-canário. Ele notou isso e tentou acreditar que era apenas mais um sonho, que o que antes era agradável havia se transformado em pesadelo, como acontecia às vezes, mas a pessoa soltou seu braço, segurou seu ombro e o jogou no chão. Ele bateu a cabeça e deu um grito. — Pare com isso — disse o homem de máscara amarela. — Quer que ele desmaie? — Olha só. — O de máscara vermelha apontou. — O velhote está duro. Devia estar tendo umsonho e tanto. Máscara Azul, o responsável por sacudi-lo, disse: — É só vontade de mijar. Nessa idade, nada mais faz levantar. Meu avô… — Cala a boca — disse Máscara Amarela. — Ninguém liga para o seu avô.
Apesar de atordoado e ainda envolto em um leve véu de sono, Rothstein sabia que estava encrencado. Duas palavras surgiram em sua mente: invasão domiciliar. Ele olhou para o trio que se materializara em seu quarto, com a cabeça velha doendo (ele ficaria com um hematoma enorme na lateral direita, graças aos anticoagulantes que tomava) e o coração com as paredes perigosamente finas batendo no lado esquerdo do peito. Os homens ficaram de pé junto a ele, os três usando luvas, jaquetas xadrez e balaclavas horríveis. Invasores de domicílio, e ali estava ele, a oito quilômetros da cidade. Rothstein organizou os pensamentos da melhor forma possível, afastou o sono e disse para si mesmo que havia pelo menos uma coisa boa naquela situação: se eles não queriam que visse seus rostos era porque pretendiam deixá-lo vivo. Talvez. — Cavalheiros — disse ele. O sr. Amarelo riu e fez sinal de positivo para ele. — Bom começo, gênio. Rothstein assentiu, como se tivesse recebido um elogio. Olhou para o relógio na mesa de cabeceira, viu que eram duas e quinze da manhã e encarou novamente o sr. Amarelo, que talvez fosse o líder. — Tenho pouco dinheiro, mas podem ficar à vontade. Só peço que vão embora sem me machucar. O vento soprou e empurrou as folhas secas de outono pela lateral oeste da casa. Rothstein estava ciente do aquecedor ligado pela primeira vez no ano. O verão não tinha sido ontem? — De acordo com nossas fontes, você tem bem mais do que um pouco — disse o sr. Vermelho. — Shh. — O sr. Amarelo ofereceu a mão para Rothstein. — Levanta, gênio. Rothstein aceitou a mão, se levantou lentamente e se sentou na cama.
Ele respirava comdificuldade, mas estava bem ciente (a autopercepção fora uma maldição e uma bênção durante toda a sua vida) da imagem que devia oferecer: um velho com pijama azul frouxo, o cabelo se restringindo a tufos acima das orelhas. Isso foi o que sobrou do escritor que, no ano em que JFK se tornou presidente, apareceu na capa da revista Time: JOHN ROTHSTEIN, O GÊNIO RECLUSO DOS EUA. Acorde, gênio. — Recupere o fôlego — disse o sr. Amarelo. Ele pareceu solícito, mas Rothstein não lhe deu confiança. — Depois, vamos para a sala, onde as pessoas normais conversam. Demore o tempo que precisar. Fique calmo. Rothstein respirou lenta e profundamente, e seu coração se acalmou um pouco. Ele tentou pensar em Peggy, com os seios pequenos (mas perfeitos) e as pernas longas e macias, mas o sonho estava tão distante quanto a própria Peggy, agora uma velha que morava em Paris. Com o dinheiro dele. Pelo menos Yolande, seu segundo esforço em prol da alegria marital, estava morta, o que botara um fim à pensão. Máscara Vermelha saiu do quarto, e Rothstein ouviu barulhos vindos do escritório. Alguma coisa caiu. Gavetas foram abertas e fechadas. — Está melhor? — perguntou o sr. Amarelo, e quando Rothstein assentiu: — Então venha. Rothstein se deixou levar para a pequena sala de estar, acompanhado pelo sr. Azul à esquerda e o sr. Amarelo à direita. No escritório, a busca prosseguia. Em pouco tempo, o sr. Vermelho abriria o armário, afastaria os dois casacos e três suéteres e deixaria o cofre à mostra. Era inevitável.
Tudo bem. Desde que deixem os cadernos. E por que eles os levariam? Bandidos assim só estão interessados em dinheiro. Não devem nem ler nada mais complicado do que a seção de cartas de revistas masculinas. Mas ele não tinha certeza quanto ao homem da máscara amarela. Ele parecia estudado. Todas as lâmpadas da sala estavam acesas, e as persianas não estavam fechadas. Vizinhos acordados talvez se perguntassem o que estava acontecendo na casa daquele velho escritor… se ele tivesse vizinhos. Os mais próximos ficavam a três quilômetros de distância, na estrada principal. Ele não tinha amigos nem recebia visitas. Qualquer vendedor ocasional era expulso na mesma hora. Rothstein era um sujeito velho e peculiar. O escritor aposentado. O ermitão. Pagava seus impostos e era deixado em paz. Azul e Amarelo o levaram até a poltrona virada para a TV que mal assistia e, como ele não se sentou imediatamente, o sr. Azul o empurrou para baixo. — Calma! — disse Amarelo com rispidez, e Azul deu um passo para trás, resmungando. O sr. Amarelo era o líder. O sr. Amarelo era o mandachuva. Ele se inclinou na direção de Rothstein, as mãos apoiadas nos joelhos da calça de veludo. — Quer uma dose de alguma coisa para se acalmar? — Se você está falando de álcool, parei vinte anos atrás. Ordens médicas.
— Que bom. Vai a reuniões? — Eu não era alcoólatra — disse Rothstein com irritação. Era loucura ficar irritado em uma situação daquelas… ou não? Quem saberia como agir depois de ser arrancado da cama no meio da noite por homens usando máscaras de esqui coloridas? Ele se perguntou como escreveria uma cena daquelas e não teve ideia; ele não escrevia sobre situações assim. — As pessoas acham que todo escritor homem e branco do século XX só pode ser alcoólatra. — Tudo bem, tudo bem — disse o sr. Amarelo. Era como se ele estivesse acalmando uma criança rabugenta. — Quer água? — Não, obrigado. O que quero é que vocês três vão embora, então vou ser bem sincero. — Ele se perguntou se o sr. Amarelo sabia a regra mais básica do discurso humano: sempre que alguém dizia que ia ser sincero, na maioria dos casos a pessoa estava se preparando para mentir mais rápido do que um cavalo a galope. — Minha carteira está na cômoda do quarto. Tem pouco mais de oitenta dólares nela. Tem um bule de cerâmica em cima da lareira… Ele apontou. O sr. Azul se virou para olhar, mas o sr. Amarelo, não. O sr. Amarelo continuou observando Rothstein, e os olhos por trás da máscara pareciam estar se divertindo. Não está dando certo, pensou Rothstein, mas ele persistiu. Agora que estava acordado, estava puto da vida, além de com medo, embora soubesse que era melhor não demonstrar nada disso. — É onde guardo o dinheiro da faxineira. Cinquenta ou sessenta dólares. É tudo que tem na casa. Peguem e vão embora.
— Mentiroso de merda — disse o sr. Azul. — Você tem bem mais do que isso, cara. Nós sabemos. Pode acreditar. E como se eles estivessem em uma peça e aquela fala fosse a deixa, o sr. Vermelho gritou do escritório: — Bingo! Achei um cofre! E dos grandes! Rothstein sabia que o homem de vermelho o encontraria, mas seu coração despencou mesmo assim. Era burrice guardar dinheiro vivo, não havia nenhum motivo para isso além de ele não gostar de cartões de crédito e cheques e ações e transferências, todos correntes tentadoras que prendiam as pessoas à máquina sufocante e destruidora do débito e crédito dos Estados Unidos. Mas o dinheiro talvez fosse sua salvação. O dinheiro podia ser substituído. Os cadernos, mais de cento e cinquenta, não. — Agora, a combinação — disse o sr. Azul. Ele estalou os dedos enluvados. — Fale logo. Rothstein estava quase com raiva suficiente para recusar. De acordo com Yolande, a raiva fora seu estado natural durante toda a vida (“Devia sentir raiva desde o berço”, dizia ela), mas também estava cansado e com medo. Se negasse, eles arrancariam a combinação por meio de violência. Talvez até tivesse outro ataque cardíaco, e era quase certo que mais um acabaria com ele. — Se eu der a combinação do cofre, vocês pegam o dinheiro e vão embora? — Sr. Rothstein — disse o sr. Amarelo, com uma gentileza que pareceu genuína (e, portanto, grotesca) —, você não está em posição de barganhar. Freddy, vá buscar as bolsas. Rothstein sentiu um sopro de ar frio quando o sr. Azul, também conhecido como Freddy, saiu pela porta da cozinha.
O sr. Amarelo, enquanto isso, voltou a sorrir. Rothstein já detestava aquele sorriso. Aqueles lábios vermelhos. — Vamos lá, gênio… entregue a combinação. Quanto mais cedo fizer isso, mais rápido tudo vai terminar. Rothstein suspirou e recitou a combinação do cofre no armário do escritório. — Trinta e um para a direita com duas voltas, três para a esquerda com duas voltas, dezoito para a esquerda com uma volta, noventa e nove para a direita com uma volta e de volta ao zero. Por trás da máscara, os lábios vermelhos se esticaram mais, agora mostrando dentes. — Eu podia ter adivinhado. É sua data de nascimento. Enquanto Amarelo repetia a combinação para o homem no armário, Rothstein fez algumas deduções desagradáveis. O sr. Azul e o sr. Vermelho estavam ali pelo dinheiro, e o sr. Amarelo talvez pegasse uma parte, mas não acreditava que dinheiro fosse o objetivo principal do homem que insistia em chamá-lo de gênio. Como se para comprovar isso, o sr. Azul reapareceu, acompanhado de outro sopro de ar frio vindo de fora. Segurava quatro bolsas vazias, duas em cada ombro. — Olhe — disse Rothstein para o sr. Amarelo, chamando a atenção do homem e sustentando o olhar dele. — Não faça isso. Não há nada no cofre que valha ser levado além do dinheiro. O resto é só um monte de rabiscos aleatórios, mas que são importantes para mim. No escritório, o sr.
Vermelho gritou: — Jesus, Morrie! Nos demos bem! Caramba, tem um monte de dinheiro! Ainda nos envelopes do banco! Dezenas de envelopes! Pelo menos sessenta, Rothstein poderia ter dito, talvez até oitenta. Com quatrocentos dólares cada. De Arnold Abel, meu contador em Nova York. Jeannie paga as contas e traz o restante do dinheiro para casa nos envelopes, e eu os guardo no cofre. Mas tenho poucas despesas, porque Arnold também paga as contas maiores em Nova York. Dou gorjeta para Jeannie de tempos em tempos, e para o carteiro no Natal, mas, fora isso, quase não gasto o dinheiro. Tem sido assim por anos, e por quê? Arnold nunca pergunta o que eu faço com o dinheiro. Talvez ache que tenho um acordo com uma prostituta ou duas. Talvez pense que aposto nos cavalos em Rockingham. E o mais engraçado, ele poderia ter dito para o sr. Amarelo (também conhecido como Morrie), é que eu nunca me questionei. Tanto quanto não me perguntei por que vou enchendo caderno atrás de caderno. Algumas coisas apenas são como são. Ele poderia ter dito essas coisas, mas ficou em silêncio. Não porque o sr. Amarelo não fosse compreender, mas porque aquele sorriso sabichão de lábios vermelhos dizia que talvez compreendesse. E que não se importaria. — O que mais tem aí? — gritou o sr. Amarelo. Os olhos ainda estavam grudados nos de Rothstein. — Caixas? Caixas de manuscritos? Do tamanho que falei? — Caixas não, cadernos — relatou o sr. Vermelho. — A porra do cofre está cheia de cadernos. O sr. Amarelo sorriu, ainda olhando nos olhos de Rothstein.
— Escritos à mão? É assim que você trabalha, gênio? — Por favor — pediu Rothstein. — Deixe os cadernos. O material não foi feito para ser visto. Não tem nada pronto. — E nunca vai ter, é o que eu acho. Você não passa de um acumulador. — O brilho nos olhos dele, o que Rothstein pensava ser um brilho irlandês, tinha sumido. — E você nem precisa publicar mais nada, não é? Não há nenhum imperativo financeiro. Você tem os royalties de O corredor. E de O corredor procura ação. E de O corredor reduz a marcha . A famosa trilogia de Jimmy Gold. Nunca fora de catálogo. É trabalhada nas faculdades de toda a nossa grande nação. Graças a uma conspiração de professores de literatura que acham que existe Deus no céu e você e Saul Bellow na terra, você tem um público cativo de compradores universitários. Está tudo perfeito para você, não está? Por que correr o risco ao publicar uma coisa que pode manchar sua reputação brilhante? Você pode se esconder aqui e fingir que o resto do mundo não existe. — O sr. Amarelo balançou a cabeça. — Meu amigo, você dá um novo significado a ser exigente. O sr. Azul ainda estava parado na porta. — O que você quer que eu faça, Morrie? — Vá ajudar Curtis. Coloque tudo nas bolsas. Se não houver espaço nas bolsas para todos os cadernos, olhe em volta. Até um bicho do mato que nem ele deve ter pelo menos uma mala.
E não perca tempo contando o dinheiro. Quero sair logo daqui. — Tudo bem. O sr. Azul, Freddy, saiu. — Não faça isso — pediu Rothstein, e ficou perplexo com o tremor na própria voz. Às vezes, ele esquecia a idade que tinha, mas não naquela noite. O homem que se chamava Morrie se inclinou na direção dele, os olhos cinza-esverdeados espreitando pelos buracos na máscara amarela. — Quero saber uma coisa. Se você for sincero, talvez a gente deixe os cadernos. Você vai ser sincero comigo, gênio? — Vou tentar — disse Rothstein. — E eu nunca me chamei disso. Foi a revista Time que me chamou de gênio. — Mas aposto que você nunca protestou. Rothstein não disse nada. Filho da puta, estava pensando. Filho da puta espertinho. Você não vai deixar nada, não é? Não importa o que eu diga. — O que quero saber é: por que você não deixou Jimmy Gold em paz? Por que esfregou a cara dele na lama daquele jeito? A pergunta foi tão inesperada que, a princípio, Rothstein não fez ideia do que Morrie estava falando, apesar de Jimmy Gold ser seu personagem mais famoso, pelo qual ele seria lembrado (supondo que fosse lembrado por alguma coisa). A mesma história da matéria de capa da Time que se referira a Rothstein como gênio e chamara Jimmy Gold de “ícone americano de desespero em uma terra de fartura”. Pura bosta, mas fez seus livros serem vendidos. — Se você quer dizer que eu devia ter parado em O corredor, você não está sozinho. Mas quase, ele poderia ter acrescentado. O corredor procura ação solidificou sua reputação como um escritor americano de peso, e O corredor reduz a marcha foi o ponto alto de sua carreira: elogiado aos montes, permaneceu na lista de mais vendidos do The New York Times por sessenta e duas semanas. Ganhou também o National Book Award, mas ele nem apareceu à cerimônia.
“A Ilíada dos Estados Unidos pós-guerra”, dissera a citação, se referindo não só ao último, mas à trilogia como um todo. — Não estou dizendo que você devia ter parado em O corredor — disse Morrie. — O corredor procura ação é tão bom quanto o primeiro livro, talvez até melhor. Eles eram verdadeiros. Foi aquele último. Caramba, que grande bosta. Propaganda? Falando sério, propaganda? O sr. Amarelo fez algo que deu um nó na garganta de Rothstein e transformou seu estômago em chumbo. Lentamente, de forma quase contemplativa, ele tirou a balaclava amarela, revelando umjovem com a aparência clássica de um irlandês de Boston: cabelo ruivo, olhos esverdeados, pele branca leitosa que sempre ficaria queimada, nunca bronzeada. E os lábios vermelhos esquisitos. — Casa no subúrbio? Ford sedã na garagem? Mulher e dois filhinhos? Todo mundo se vende, era isso que você estava tentando dizer? Todo mundo toma o veneno? — Nos cadernos… Havia mais dois livros de Jimmy Gold nos cadernos, era isso que ele queria dizer, e os dois fechavam a história. No primeiro, Jimmy enxergava o vazio da vida no subúrbio e abandonava a família, o emprego e a casa confortável em Connecticut. Ele ia embora a pé, só com uma mochila e as roupas do corpo. Tornava-se uma versão mais velha do garoto que largara a escola, rejeitara a família materialista e decidira entrar para o exército depois de um fim de semana regado a bebida emNova York. — O que tem nos cadernos? — perguntou Morrie. — Vamos lá, gênio, fale. Me conte por que você derrubou e pisou na cabeça do Jimmy. Em O corredor vai para o oeste, ele volta a ser ele mesmo, Rothstein teve vontade de dizer. A ser seu eu essencial. Só que agora o sr. Amarelo tinha mostrado seu rosto e estava tirando a pistola do bolso direito da jaqueta xadrez. Ele parecia pesaroso. — Você criou um dos personagens mais importantes da literatura americana, depois o destruiu — disse Morrie. — Um homem capaz de fazer isso não merece viver. A raiva surgiu como uma doce surpresa.
— Se você acha isso — disse John Rothstein —, não entendeu uma palavra do que escrevi. Morrie apontou a pistola. O cano parecia um olho negro. Rothstein apontou um dedo torto de artrite para Morrie como se fosse sua própria arma e sentiu satisfação quando viu o homem piscar e se remexer, desconfortável. — Não me venha com sua crítica literária imbecil. Eu já encarei uma tonelada delas antes mesmo de você nascer. Quantos anos você tem, afinal? Vinte e dois? Vinte e três? O que sabe da vida, o que sabe de literatura? — O bastante para saber que nem todo mundo vende. — Rothstein ficou estupefato de ver lágrimas nos olhos irlandeses. — Não venha me dar um sermão sobre a vida, não depois de ter passado os últimos vinte anos escondido do mundo como um rato. Aquela velha crítica, “Como você ousa abandonar a fama?”, transformou a raiva de Rothstein emfúria, o tipo de fúria que destruía coisas de vidro e quebrava mobília, o tipo que Peggy e Yolande teriam reconhecido. E ele ficou feliz. Era melhor morrer em fúria do que se acovardando e suplicando. — Como você vai transformar meu trabalho em dinheiro? Já pensou nisso? Suponho que sim. Suponho que você saiba que daria no mesmo tentar vender um caderno roubado de Hemingway ou umquadro de Picasso. Mas seus amigos não são tão estudados quanto você, não é? Vejo pelo jeito que falam. Eles sabem o que você sabe? Tenho certeza de que não. Mas você fez promessas falsas a eles. Inventou uma pizza imaginária enorme e disse que cada um podia ficar com uma fatia. Acho que você é capaz disso. Acho que você tem um mar de palavras à disposição. Mas acredito que esse mar seja raso. — Cala a boca. Você parece a minha mãe. — Você não passa de um ladrãozinho comum, meu amigo. E que burrice é roubar o que nunca vai poder vender.
— Cala a boca, gênio, estou avisando. Rothstein pensou: E se ele puxar o gatilho? Seria o fim dos comprimidos. O fim dos arrependimentos e dos montes de relacionamentos desfeitos, que ficaram pelo caminho como carros quebrados. O fim da escrita obsessiva, de acumular caderno atrás de caderno como pilhas de cocô de coelho espalhadas por uma trilha no bosque. Uma bala na cabeça não devia ser tão ruim. Melhor do que câncer ou Alzheimer, o grande horror de qualquer um que passou a vida usando o cérebro como ganha-pão. Claro que haveria manchetes, e já tivera muitas antes mesmo da porcaria da história da Time… Mas, se ele puxar o gatilho, eu não vou ter que lê-las. — Você é burro. — De repente, ele estava em um tipo de êxtase. — Se acha mais inteligente do que aqueles dois, mas não é. Pelo menos, eles entendem que dinheiro pode ser gasto. — Ele se inclinou para a frente e olhou para o rosto pálido e cheio de sardas. — Quer saber, garoto? São caras como você que fazem a má fama dos leitores. — Último aviso — disse Morrie. — Foda-se o seu aviso. E foda-se a sua mãe. Ou você atira em mim, ou sai da minha casa. Morris Bellamy atirou nele. 2009 A primeira discussão sobre dinheiro no lar dos Saubers, ao menos a primeira de que os filhos tiveram conhecimento, aconteceu em uma noite de abril. Não foi uma discussão grande, mas até a pior das tempestades começa como uma brisa leve. Peter e Tina Saubers estavam na sala, ele fazendo o dever de casa e ela vendo o DVD do Bob Esponja. Era um que ela já tinha visto muitas vezes, mas parecia nunca se cansar. E isso era bom, porque atualmente não havia acesso ao Cartoon Network no lar dos Saubers. Tom Saubers havia cancelado o serviço de TV a cabo dois meses antes. Tom e Linda Saubers estavam na cozinha, onde Tom fechava a velha mochila depois de enchê-la com barrinhas de cereal, uma vasilha cheia de legumes cortados, duas garrafas de água e uma lata de Coca-Cola.
— Você está louco — disse Linda. — Eu sempre soube que você era competitivo, mas isso já é exagero. Se quiser botar o alarme para as cinco da manhã, tudo bem. Você pode buscar o Todd, estar no City Center às seis e vai ser o primeiro da fila. — Quem me dera — respondeu Tom. — Todd disse que teve uma feira de empregos dessa em Brook Park mês passado e que as pessoas começaram a formar fila na véspera. Na véspera, Lin! — Todd diz muitas coisas. E você sempre escuta. Lembra quando Todd disse que Peter e Tina iam adorar aquele troço de Monster Truck Jam… — Isso não é um Monster Truck Jam, nem um show no parque, nem um show de fogos de artifício. São nossas vidas. Peter ergueu o rosto do dever de casa e olhou rapidamente nos olhos da irmã. O dar de ombros de Tina foi eloquente: coisa de pai e mãe. Ele voltou para os exercícios de álgebra. Mais quatro problemas e ele poderia ir para a casa de Howie. Queria ver se Howie tinha alguma HQ nova. Peter não tinha nenhuma para trocar; sua mesada tivera o mesmo fim da TV a cabo. Na cozinha, Tom começou a andar de um lado para outro. Linda se aproximou e segurou o braço dele com delicadeza. — Sei que são nossas vidas. Ela falou baixinho, em parte para as crianças não ouvirem e ficarem nervosas (ela sabia que Peter já estava), mas também para acalmar os ânimos. Ela sabia como Tom se sentia e era solidária. Ter medo era ruim; se sentir humilhado por não poder mais desempenhar o que ele via como sua responsabilidade principal, a de sustentar a família, era pior. E humilhação nem era a palavra certa. O que ele sentia era vergonha. Durante os dez anos em que ficou na Imobiliária Lakefront, ele foi umdos melhores agentes, e muitas vezes sua foto sorridente ficou estampada na vitrine do escritório.
O dinheiro que ela levava para casa dando aulas para o terceiro ano era só a cobertura do bolo. E então, no outono de 2008, a economia entrou em colapso, e os Saubers se tornaram uma família de renda única. A situação era tal que Tom fora demitido e não seria chamado de volta quando as coisas melhorassem; a Imobiliária Lakefront era agora uma loja vazia com pichação nas paredes e uma placa de VENDE-SE OU ALUGA-SE na frente. Os irmãos Reardon, que herdaram o negócio do pai (e o pai do pai dele), tinham investido muito em ações e perderam quase tudo na crise. Não era muito consolo para Linda que o melhor amigo de Tom, Todd Paine, estivesse no mesmo barco. Ela achava Todd um idiota. — Você viu a previsão do tempo? Eu vi. Vai estar frio. Vai ter névoa vinda do lago pela manhã, talvez até um pouco de geada. Geada, Tom. — Que bom. Espero que tenha mesmo. Vai diminuir os números e aumentar nossas chances. — Ele segurou os antebraços dela suavemente. Não a sacudiu nem gritou. Isso veio depois. — Eu tenho que conseguir alguma coisa, Lin, e a feira de empregos é minha melhor chance esta primavera. Ando gastando sola de sapato… — Eu sei… — E não tem nada. Nadinha. Ah, alguns empregos no porto e nas construções do shopping perto do aeroporto, mas você me vê fazendo esse tipo de trabalho? Estou quinze quilos acima do peso e vinte anos fora de forma. Pode ser que eu consiga alguma coisa no Centro no verão, talvez como vendedor, se as coisas melhorarem um pouco… mas pagaria mal e provavelmente seria temporário. Por isso, Todd e eu vamos à meia-noite e vamos ficar na fila até as portas se abrirem amanhã de manhã, e prometo que vou voltar com um emprego que pague dinheiro de verdade. — E provavelmente algum vírus que todos nós vamos pegar. Aí, podemos tirar dinheiro da cota de alimentos para pagar a conta do médico. Foi nessa hora que ele ficou irritado.
— Eu queria um pouco mais de apoio. — Tom, pelo amor de Deus, estou tentan… — Talvez até um incentivo. “Legal você mostrar iniciativa, Tom. Estamos felizes de você estar se esforçando pela família, Tom.” Esse tipo de coisa. Se não for pedir demais. — Só estou dizendo… Mas a porta da cozinha se abriu e se fechou antes que ela pudesse terminar. Ele foi para o quintal fumar um cigarro. Quando Peter ergueu o olhar dessa vez, viu inquietação e preocupação no rosto de Tina. Ela só tinha oito anos, afinal. Peter sorriu e deu uma piscadela. Tina retribuiu com um sorriso hesitante, e voltou para os acontecimentos no reino submarino chamado Fenda do Biquíni, onde pais não perdiam o emprego nem levantavam a voz e crianças não perdiam as mesadas. A não ser que não se comportassem, claro. Antes de sair naquela noite, Tom pôs a filha na cama e lhe deu um beijo de boa noite. Deu um também na sra. Beasley, a boneca favorita de Tina. Para dar sorte, ele disse. — Papai, vai ficar tudo bem? — Pode apostar, gatinha — respondeu ele. Ela se lembrava disso. Da confiança na voz dele. — Tudo vai ficar ótimo. Agora, durma. Ele saiu, andando normalmente. Ela também se lembrava disso, porque nunca mais o viu andar assim. No cume do caminho íngreme que levava da Marlborough Street até o estacionamento do City Center, Tom disse: — Opa, espere, pare! — Cara, tem um monte de carros atrás de mim — falou Todd.
— Só vai levar um segundo. Tom pegou o celular e tirou uma foto das pessoas na fila. Já devia haver umas cem. No mínimo. Acima das portas do auditório havia uma faixa que dizia: 1000 EMPREGOS GARANTIDOS! E: “Apoiamos o povo da nossa cidade!”. — PREFEITO RALPH KINSLER. Atrás do Subaru 2004 enferrujado de Todd Paine, alguém meteu a mão na buzina. — Tommy, odeio ser estraga-prazeres na hora que você está eternizando essa ocasião maravilhosa, mas… — Pode ir, pode ir. Já tirei a foto. — Enquanto Todd entrava no estacionamento, onde as vagas perto do auditório já estavam ocupadas, disse: — Mal posso esperar para mostrar a foto para Linda. Sabe o que ela disse? Que se chegássemos às seis seríamos os primeiros da fila. — Eu falei, cara. O SuperTodd não mente. — O SuperTodd estacionou. Ao desligar o Subaru, o cano de descarga soltou um estouro e um chiado. — Quando o sol nascer, vai ter umas duas mil pessoas aqui. Repórteres também. De todos os canais. City at Six, Morning Report, MetroScan. A gente talvez seja entrevistado. — Eu prefiro um emprego. Linda estava certa sobre uma coisa: estava úmido mesmo. Dava para sentir o cheiro do lago no ar, um leve odor de esgoto. E estava quase frio o bastante para Tom ver o próprio hálito. Pedestais com fitas amarelas onde se lia NÃO ULTRAPASSE haviam sido montados, fazendo os candidatos a emprego formarem uma fila cheia de curvas como pregas em um acordeão humano.
Tom e Todd ficaram entre os últimos pedestais. Outros entraram atrás deles na mesma hora, a maioria homens, alguns de jaqueta pesada, outros usando sobretudos de executivo e cortes de cabelo de executivo que estavamcomeçando a perder a forma. Tom achou que a fila chegaria ao final do estacionamento até o nascer do sol, e isso ainda seria quatro horas antes de as portas se abrirem. Uma mulher com um bebê chamou sua atenção. Estava algumas curvas à frente. Tom se perguntou quanto uma pessoa tinha que estar desesperada para levar um bebê para um lugar como aquele emuma noite fria e úmida como aquela. A menina estava em um sling. A mulher conversava com um homem corpulento com um saco de dormir pendurado no ombro, e o bebê estava olhando de um para o outro, como a menor fã de tênis do mundo. Era meio cômico. — Quer dar um gole para esquentar, Tommy? Todd tinha tirado uma garrafa de uísque da mochila e a oferecia para ele. Tom quase disse não, lembrando-se do que Linda dissera ao se despedir (Não chegue em casa com bafo de bebida), mas pegou a garrafa. Estava frio, e um gole não faria mal. Ele sentiu o uísque descer e aquecer sua garganta e barriga. Enxague a boca antes de ir a qualquer um dos stands de emprego, ele lembrou a si mesmo. Homens com bafo de uísque não são contratados para nada. Quando Todd lhe ofereceu outro gole, isso por volta das duas da manhã, Tom recusou. Mas, quando ofereceu novamente às três, Tom aceitou a garrafa. Ele olhou para a quantidade e calculou que Todd estava se fortificando contra o frio de forma bem liberal. Ah, que se dane, pensou Tom, e tomou bem mais que um gole; dessa vez, ele encheu a boca. — Isso aí — disse Todd, a voz um pouquinho arrastada. — Siga pelo mau caminho. Candidatos a emprego continuaram chegando, os carros surgindo no alto da Marlborough Street emmeio à névoa cada vez mais densa. A fila passava dos pedestais agora e não fazia mais curvas. Tom pensava entender as dificuldades econômicas que assolavam o país (ele mesmo não tinha perdido umemprego, um emprego muito bom?), mas, conforme os carros continuaram aparecendo e a fila continuou crescendo (ele não conseguia mais ver onde terminava), ele começou a ter uma nova e assustadora perspectiva. Talvez dificuldades não fosse a palavra certa.
Talvez a palavra certa fosse calamidade. À sua direita, no labirinto de pedestais e fitas que levava às portas do auditório escuro, o bebê começou a chorar. Tom olhou ao redor e viu o homem com o saco de dormir segurando as laterais do sling para que a mulher (Meu Deus, pensou Tom, ela mal parece ter saído da adolescência) pudesse tirar o bebê. — Que porra é exa? — perguntou Todd, com a voz mais arrastada do que nunca. — Um bebê — respondeu Tom. — Uma mulher com um bebê. Uma garota com um bebê. Todd olhou. — Cacete. Isso que eu chamo de irra… irri… Você sabe, falta de responsabilidade. — Você está bêbado? Linda não gostava de Todd, não via o lado bom dele, e, no momento, Tom também não sabia se via. — Um pouquinho. Vou estar sóbrio quando as portas se abrirem. E trouxe umas balinhas de menta. Tom pensou em perguntar a Todd se ele também levara colírio, pois seus olhos estavam ficando bem vermelhos, mas decidiu que não queria entrar naquela discussão. Voltou a atenção para onde estava a mulher e o bebê chorando. Primeiro, achou que elas tinham ido embora. Depois, olhou para baixo e a viu entrando no saco de dormir do homem com o bebê contra o peito. O homem estava segurando a abertura do saco de dormir para ela. O bebê ainda chorava desesperadamente. — Não dá pra calar a boca dessa criança? — gritou um homem. — Alguém devia chamar um assistente social — acrescentou uma mulher. Tom pensou em Tina naquela idade, imaginou-a naquela madrugada fria e enevoada e sufocou a vontade de mandar o homem e a mulher calarem a boca… ou melhor ainda, de oferecer ajuda. Afinal, todos eles estavam naquilo juntos, não estavam? Todo aquele bando de gente ferrada e azarada. O choro diminuiu e então parou.
— Ela deve estar amamentando — disse Todd. Ele apertou o peito para demonstrar. — É. — Tommy. — O quê? — Você sabe que Ellen perdeu o emprego, não sabe? — Caramba, não. Eu não sabia. — Fingindo não ver o medo no rosto de Todd. Nem o brilho de lágrimas nos olhos dele. Possivelmente, da bebida ou do frio. Ou talvez não. — Disseram que vão chamá-la de volta quando as coisas melhorarem, mas disseram a mesma coisa para mim, e estou desempregado há quase seis meses. Já gastei todo o meu seguro. Não temmais nada. E sabe o que tenho no banco agora? Quinhentos dólares. Sabe quanto tempo duramquinhentos dólares quando um pão no Kroger custa um dólar? — Não muito. — Isso mesmo. Eu tenho que conseguir alguma coisa aqui. Preciso. — Você vai conseguir. Nós dois vamos. Todd ergueu o queixo para o homem corpulento, que agora parecia estar montando guarda acima do saco de dormir para que ninguém pisasse sem querer na mulher com o bebê lá dentro. — Você acha que eles são casados? Tom não tinha pensado no assunto. Parou para refletir. — Acho que sim. — Então os dois devem estar desempregados.
Se não, um deles teria ficado em casa com a criança. — Talvez pensem que aparecer com o bebê possa melhorar as chances deles — sugeriu Tom. Todd se animou. — O apelo à pena! Não é má ideia! — Ele levantou a garrafa. — Quer um gole? Ele tomou um gole pequeno e pensou: Se eu não beber, Todd vai. Tom foi despertado do cochilo induzido pelo uísque por um grito exuberante: — Vida é descoberta em outros planetas! Essa piadinha foi seguida de gargalhadas e aplausos. Ele olhou ao redor e viu que já era dia. A luz do sol estava fraca e enevoada, mas era dia mesmo assim. Atrás das portas que levavam ao auditório, um sujeito de macacão cinza (um sujeito sortudo com emprego) empurrava um balde com esfregão pelo saguão. — Que foi? — perguntou Todd. — Nada — disse Tom. — Só um zelador. Todd espiou na direção da Marlborough Street. — Caramba, e eles continuam chegando. — É — respondeu Tom. Pensando: E se eu tivesse ouvido Linda, estaríamos no fim de uma fila que vai quase até Cleveland. Foi um bom pensamento, um pouco de vingança era sempre bom, mas ele desejava ter dito não para a bebida de Todd. Sua boca estava com gosto de caixa de areia de gato. Não que ele já tivesse comido aquilo, mas… Alguém algumas curvas depois na fila, não muito longe do saco de dormir, perguntou: — É um Mercedes? Parece um Mercedes. Tom viu uma silhueta comprida no alto do caminho que descia pela Marlborough Street, com os faróis de neblina amarelos acesos. Não estava se movendo. — O que ele pensa que está fazendo? — perguntou Todd. O motorista do carro de trás devia ter se perguntado a mesma coisa, porque afundou a mão na buzina em um toque longo e irritado que fez as pessoas se remexerem, resmungarem e olharem emvolta. Por um momento, o carro com os faróis de neblina amarelos ficou onde estava. Em seguida, disparou.
Não para a esquerda, na direção do estacionamento lotado, mas diretamente para as pessoas presas no labirinto de pedestais e fitas. — Ei! — gritou alguém. A multidão oscilou para trás em um movimento de maré. Tom foi empurrado em cima de Todd, que caiu de bunda no chão. Ele lutou para manter o equilíbrio, quase conseguiu, mas o homem na frente dele, gritando — não, berrando —, enfiou a bunda na virilha de Tom e um cotovelo em seu peito. Tom caiu em cima do amigo, ouviu a garrafa de uísque se quebrar entre os dois e sentiu o odor pungente do restante da bebida se espalhando pelo chão. Que ótimo, agora vou ficar com cheiro de bar em noite de sábado. Ele ficou de pé a tempo de ver o carro (era mesmo um Mercedes, um grande sedã tão cinza quanto aquela manhã enevoada) se chocar contra a multidão, jogando corpos longe enquanto seguia emfrente, desferindo um arco impreciso. Sangue escorria da grade. Uma mulher saiu deslizando pelo capô com os braços esticados e sem os sapatos. Bateu no vidro, tentou segurar um dos limpadores de para-brisa, errou e caiu para o lado. A fita amarela de NÃO ULTRAPASSE se partiu. Um pedestal bateu na lateral do grande sedã, mas isso não diminuiu nem um pouco sua velocidade. Tom viu as rodas da frente passarem por cima do saco de dormir e do homem corpulento, que estava agachado de forma protetora sobre ele, com uma das mãos esticadas. Agora, estava indo direto para Tom. — Todd! — gritou ele. — Todd, levanta! Ele procurou as mãos de Todd, encontrou uma e puxou com força. Alguém se chocou nele, e Tom caiu no chão de joelhos. Ouvia o som do motor do carro, aceleradíssimo. Bem perto agora. Ele tentou engatinhar, mas um pé o acertou na têmpora. Ele viu estrelas. — Tom. — Todd estava atrás dele agora. Como isso tinha acontecido? — Tom, que porra é essa? Um corpo caiu sobre ele, e de repente havia outra coisa em cima dele, um peso enorme que o empurrava para baixo e ameaçava transformá-lo em geleia.
Sua bacia se partiu como ossos secos de galinha. O peso sumiu. Uma dor com peso próprio se adiantou para tomar o lugar. Tom tentou levantar a cabeça e conseguiu tirá-la do chão por tempo suficiente para ver os faróis traseiros piscando na névoa. Viu estilhaços cintilantes do vidro da garrafa quebrada. Viu Todd deitado de costas com sangue escorrendo da cabeça e criando uma poça no asfalto. Marcas vermelhas de pneus sumiam na meia-luz da névoa. Ele pensou: Linda estava certa. Eu devia ter ficado em casa. Ele pensou: Vou morrer, e talvez isso seja bom. Porque, ao contrário de Todd Payne, eu não peguei o dinheiro do seguro. Ele pensou: Mas acabaria tendo que fazer isso alguma hora. E então, escuridão. Quando Tom Saubers acordou no hospital quarenta e oito horas depois, Linda estava sentada ao seu lado. Ela segurava sua mão. Ele perguntou a ela se sobreviveria. Ela sorriu, apertou a mão dele e disse que ele podia apostar sua bundinha nisso. — Estou paralítico? Fale a verdade. — Não, querido, mas está com muitos ossos quebrados. — E o Todd? Ela desviou o olhar e mordeu o lábio. — Ele está em coma, mas acham que vai acabar acordando alguma hora. Eles conseguem saber pelas ondas cerebrais, eu acho. — Um carro veio. Não consegui sair da frente. — Eu sei.
Você não foi o único. Foi algum maluco. Ele escapou, ao menos por enquanto. Tom não podia estar menos preocupado com o homem dirigindo o Mercedes-Benz. Não estar paralítico era bom, mas… — Quão ruim é minha condição? Nada de mentiras, seja sincera. Ela o encarou, mas logo desviou o olhar. Mais uma vez observando os cartões de melhoras na mesa de cabeceira, ela disse: — Você… Bem, vai demorar um tempo até conseguir andar de novo. — Quanto tempo? Ela levantou a mão dele, que estava bem arranhada, e deu um beijo. — Os médicos não sabem. Tom Saubers fechou os olhos e começou a chorar. Linda escutou por um tempo e, quando não conseguiu mais suportar, se inclinou para a frente e começou a apertar o botão do injetor de morfina. Só parou quando a máquina não liberou mais doses. Nesse ponto, ele já estava dormindo.
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