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Acqua Toffana – Patricia Melo

Um vidro se espatifa no banheiro. Acordo. Há alguém dentro de casa. Não. O barulho estava dentro do sonho. Eu estava sonhando com o Rio de Janeiro, corria no Leblon, atropelei um carrinho de bebê, o recémnascido caído no asfalto, a mãe, paf, me deu um tapa na cara. Não tinha barulho de vidro se quebrando. Há um homem dentro de casa, eu não sonhei barulho nenhum. Vou até a porta, colo meu ouvido à madeira. Nada. Nenhum barulho. O barulho está dentro de mim. Não. Pode ter sido no andar de cima. O barulho era muito próximo. Foi no meu banheiro, eu tenho certeza. Impossível. Eu sonhei. Acordei quando o carrinho rolou. Estranho, no sonho, nada se quebrou. A criança. Não tinha vidro. Não tem ninguém em casa, preciso parar com isso. Medo do quê? Quem pode estar aqui? Não tem ninguém em casa, bobagem, está tudo trancado. Abro a porta do quarto.


Tudo em ordem. Vou andando pelo corredor, pés descalços. Tudo em ordem. Não há ninguém em casa. Dou meia-volta, o banheiro, tudo em ordem. Entro no quarto, tranco a porta. Viro-me e vejo um homem ao lado de minha cama. É negro, tem um revólver na mão. Ele dá um tiro, meu corpo cai, não acertou. O sangue, puta merda, ele me atingiu. Onde? Nossos olhos se cruzam. Animais. Outro tiro, não sinto nada. Acertou de novo, barriga. Ele destranca a porta, foge. Eu vou morrer e tudo será igual sem mim. Comedor de cadáveres! Engole o meu sangue também. Canalha! Islands in the stream, 00:45. Deve acabar às 3h. 1977, 110 minutos. Direção: Franklin Schaffer. Claire Bloom, David Hemmings etcétera. O pesadelo aconteceu em dez minutos, no intervalo, eu estava vendo a chamada de um filme policial, Charles Bronson com o pé na garganta de um infeliz: “Diga adeus, desgraçado.” Três tiros. Não consigo dormir.

Meu medo é biológico, começa sempre depois que Rubão sai de casa, atravessa a noite, as noites, as passadas e as amontoadas no futuro. Queda de avião. Dormir sozinha. Rubão não voltar nunca mais ou qualquer outra variação do abandono. Morrer afogada ou queimada. Medo de perder. Medo de Deus. Da vingança de Deus. Não tenho muito caráter com Deus. De dia, quero que ele se foda, e à noite quero que ele exista e me proteja. Acabei de assistir a Shark’s paradise. 94 minutos. Direção: Michel Jenkins. Mar também é uma categoria do meu pavor. Mar que é avesso do mundo e imensidão líquida, mar que é a imagem da demência e da morte, eu li isso em algum lugar e é verdade, mar é o avesso. Barulho na cozinha. Barulho psicológico, eu imagino. Tranquei as portas da sala, cozinha, corredor e banheiro. Meu quarto não é seguro, coloco móveis para reforçar a barreira que me separa do resto da casa. O telefone está bem ao meu lado, polícia 190. A viatura, eu sei, não vai chegar a tempo. Posso ser assassinada. Estuprada. Esfaqueada. Estrangulada.

Odeio o barulho de uma casa vazia. Paz fabricada. Sempre achei o silêncio um mau presságio, ato subversivo de forças malignas. Quando nos casamos, ele me levava. Isso foi bem no começo. Ele trabalha à noite no Canal 8, edita o programa Fornada especial. A apresentadora é um monte de pano franzido, pregas, godê, tudo bata, uma gorda solta, que se comporta com muita naturalidade, cento e oitenta quilos de naturalidade. Dizem, no estúdio, que ela não sabe fritar um ovo. Foi escolhida porque é gorda natural. Gosto das receitas dela, minhas queridas. Eu ficava vendo a edição, eu sei tudo, sei editar. Ilha de edição, Canal 8 de televisão. Programa Fornada especial. Madrugada quente. Uma moça está sentada com a preocupação de ocupar o menor espaço possível naquele cubículo tecnológico. Olhos verdes. Ela sou eu. Ao meu lado, um homem coloca caracteres nas imagens. Passam dois editores, olham o casal e mostram todos os dentes num sorriso nojento. RUBÃO Você viu outro editor que faz isso? EU Eu não consigo dormir. RUBÃO Eu não entendo. Do que você tem medo? Lembrei de uma entrevista que li no jornal, uma prostituta de luxo dizendo que o namorado chorava toda a noite, mas que ela tinha muitas contas a pagar. Eu chorei muito. Mas ele tinha muitas contas a pagar. Nunca mais Rubão me levaria.

Era ridículo eu ficar assistindo à edição. Era ridículo eu ter medo de ficar sozinha. Era ridículo, ele dizia. Esse foi o nosso primeiro nódulo matrimonial. Quando acaba a programação, fico na janela. Altura é uma categoria especial do meu pavor. Talvez a mais sofrível, passo muito tempo na janela. Se conseguirem destrancar todas as portas e entrar no meu quarto, ainda posso gritar para alguém na rua. Fico olhando o chão, meu corpo se debatendo nos toldos até chegar na calçada. Seria uma sorte cair numa copa frondosa. Quem se joga do décimo quinto pensa em alívio e não em salvamento. Eu não me joguei, eu caí, fui atirada, me empurraram. Eu mergulhei, para falar a verdade. Em vinte minutos, passaram dois carros. Vejo meu marido entrar na garagem. Volto à superfície aliviada. Tiro os móveis que bloqueiam a porta e vou nadando até o elevador. Ele me encaixa na cintura e me coloca na mesa da cozinha. Encharca meu sexo de vodca, bebemos. Diz coisas que não vou esquecer. Nunca. Dormimos concentrados numa solução de sal, vodca e porra até duas, três da tarde. 18:45. Ele me beija. “Tchau, amor.

” 2 Eu ainda não sei o seu nome. Otávio. Doutor Otávio, meu marido não vale nada. Duas pastas. Um telefone. Um cinzeiro de plástico com seis pontas de Hollywood. Umpapel rabiscado. No anular, anel dourado com pedra vermelha. Os dedos se abraçam. Ele está interessado no que eu estou contando. Um camafeu. Esse foi o primeiro presente que eu ganhei do Rubão. Não é joia. É bijuteria de bom gosto. Ele costumava chegar em casa às 4h. Nesse dia, chegou às 7h. “Tive problemas na edição.” O frango queimou, eu disse. Ele riu e me deu o camafeu. Eu queria que nossa história acabasse assim, ele rindo e me dando o camafeu. “Eu vou dar uma saída, preciso resolver umas coisas.” Quando ele fala daquela forma, não o conteúdo, o tom, os olhos, eu sei o que é. Dor. Rubão tem oito anos. Está sentado na poltrona, balança as pernas.

Seus pés não alcançam o chão. A mãe aparece. Ela beija sua testa e diz: “Vamos, querido.” Rubão, agora homem-feito, estaciona o carro na Bela Cintra, esquina com alameda Itu. O zelador o conhece há quinze anos. Ele sobe dois lances de escada e toca a campainha. Helena abre a porta. O pai, sentado na poltrona, manta nas pernas, assistindo televisão: “Quem é?” Helena pega o dinheiro das mãos de Rubão, fecha a porta rapidamente e responde: “Ninguém.” O delegado examina o camafeu. Estou nervosa. Seu Otávio, doutor Otávio, quando ele falou que precisava resolver algumas coisas, pensei que fosse isso. Às vezes, ele vai lá depois de uma noite inteira editando. Estaciona o carro umpouco mais longe e fica esperando Helena aparecer com o velho, os dois caminhando sob o sol. Já vi seus olhos umedecerem. “Quem é Helena?”, perguntou o delegado. Helena é a mulher que cuida do pai do Rubão. Eu sempre achei que Helena é apaixonada pelo velho. O Rubão ri quando eu falo isso. Impossível uma mulher amar seu pai. O delegado é marrom-acinzentado, parece muçulmano, tem olheiras, bigodes, olhos de sapo. Fala para dentro do seu próprio pulmão: “Quando você começou a perceber mudanças no comportamento do seu marido?” As coisas começaram a piorar exatamente na hora em que ele me disse: “Vou dar uma saída. Preciso resolver umas coisas.” Foi há dois meses. Minhas tardes passaram a ser ocupadas por reprises. Vi quatro vezes The tall men.

EUA. 1955, 122 minutos. Com Clark Gable, Jane Russel e grande elenco. Ele saía todas as tardes. Não ficava mais comigo na cama, fazendo sexo, comendo pipoca e ouvindo Stevie Wonder. Ele gostava de dançar aquela música: “You are the sunshine of my life.” Às vezes, a gente ficava na cama o dia inteiro, sexo três, quatro vezes sexo. Eu era inteiramente feliz. Ele gostava de sexo oral, uma fruta cheia de água, ele dizia. Uma mulher desidratada cede completamente. Sexo sempre com a televisão desligada. Ele me proibia. Dizia que aquilo era demais: “Como você consegue ver estas porcarias?” De vez em quando, eu espiava Fornada especial para ver o estilo da edição. Estava piorando muito. Cattle drive. EUA. 1951. 72 minutos. Direção: Kurt Neumann. Bois desfilando na tela. Eu sozinha na cama. Ele telefonava dizendo que não ia voltar, não deu tempo etcétera. Bois. Durante uma semana inteira assisti à sessão da tarde. Niagara com Marilyn Monroe.

EUA. 1953. 89 minutos. As loiras têm um estranho destino, isso o cinema me ensinou. Teve uma época em que meu pai só tomava White Horse e escutava Frank Sinatra. Hoje eu acho que ele estava sofrendo de amor. Quando estou sangrando só quero White Horse and Frank Sinatra. Delegado, presta atenção: eu estava infeliz, mas isso era tudo. Eu não entendia, mas isso era tudo. Eu me sentia triste e isso era tudo. Nada que um WHITE HORSE não pudesse superar. Rubão continuava me trazendo presentes. Veja. O delegado me observa. Braços nus, músculos, vinte e dois anos, olhos claros. Coloco sobre a mesa: uma corrente de ouro, uma fivela feia, um cinto de roqueiro. Ele me dava estas coisas. O delegado vasculha meus olhos, quer dizer alguma coisa, todos dizem. Observa a fivela, o cinto. “E então?” Descruzo as pernas, tenho vontade de chorar. Um dia, delegado, ele chegou em casa usando uma camiseta nova. Por quê? ELE Um azar. Eu estava entrando no banco, estão pintando a fachada, o pintor espirrou tinta na minha camiseta. Tinta azul. Fiquei puto.

Comprei essa camiseta, achei melhor. Até esse momento, eu era infeliz e isso era tudo. O amor não se dissolve, o amor acaba. Como alguém que é atropelado e morre instantaneamente. Acaba assim, o amor. Quem percebe isso ainda tem chance. Quem não percebe vai de graça até o inferno. Eu não percebi. Voltei cada palavra: AZAR. COMPREI ESTA CAMISETA. ACHEI MELHOR. A palavra AZAR entregou tudo. Se houvesse caído tinta, ele não diria daquele jeito tão civilizado. Não foi azar. ELE não ficou puto. EU fiquei. ELE não teve azar nenhum. EU tive. ELE apenas mentiu. EU aceitei, quieta. Estava passando The spy with a cold nose. Inglaterra. 1966. Desliguei a televisão e comecei a cuidar da minha vida. 3 O delegado é um desses sujeitos que desprezo.

Estufado de comida e gases. Quando pode, enfia os olhos dentro do meu decote. “Aonde a senhora quer chegar?” Está tudo muito confuso, delegado. Quero esclarecer tudo. Quero ajudar a polícia. O senhor gosta de reprises? Rubão tem oito anos. Está sentado na poltrona, seus pés não alcançam o chão. A mãe aparece. Atrás dela, há um homem sem camisa, pés descalços. Rubão não tira os olhos da mãe. Ela beija sua testa e diz: “Vamos, querido.” O senhor viu aquele homem, doutor Otávio? Aquele que estava atrás da mãe de Rubão, semcamisa? Rubão nunca me falou sobre ele, mas Helena me contou. Helena também me contou que era mentira: Rubão não estava indo visitar o pai todas as tardes. Ele foi lá no mês passado, entregar dinheiro. O pai não quer saber do Rubão. Há muito tempo. Era mentira. Nosso carro está estacionado na esquina com a Itu. Ainda estou atordoada. Então o Rubão está mentindo, eu pensei. Bati a porta e dei partida. Foi quando eu vi. Um sapato de mulher embaixo do banco. Um único pé. Tremi, doutor Otávio.

Eu já disse que tenho medo de ficar sozinha. Odeio silêncio. Não quero que eles saibamque estou em casa e que estou viva. Porque se os assassinos pensarem que estou morta, estarei salva. Não tem assassino nenhum, eu sei. Está tudo trancado. Cadeado, trancas, ferrolhos, tudo. Todas as portas. As janelas também. Antes de trancar a porta do quarto eu olho embaixo da cama para não correr o risco de ficar sozinha no quarto com o assassino. Naquela noite eu vi o filme The duelists. Inglaterra, 1977. Direção: Ridley Scott. Odeio Keith Carradine. O telefone tocou, pensei que fosse o Rubão. Desligaram. Fizeram isso mais três vezes. O senhor me perguntou quando eu comecei a perceber mudanças no comportamento do meu marido. Eu respondo. Os frequentes passeios, a mentira, a camiseta, o sapato e agora os telefonemas. Não são mudanças? Não são mudanças. São sinais. Ele continuava igual, eu poderia dizer. Carinhoso, presentes. Mas já havia sinais, avisos, é o que eu quero dizer.

4 O delegado é cinza-azulado. Está indeciso. Não sabe se acredita nas minhas palavras. Pensa que sou mais uma doida que aparece aqui. Acende um cigarro. “Você sabe o que está falando?” Sei exatamente. Escute. Às vezes, delegado, tenho a impressão de estar me aliando aos meus inimigos contra mim. Minto. Não é uma impressão. É um velho costume. Eu poderia ter contratado um detetive, mas havia uma inexplicável necessidade de sangrar. Eu me traio sempre. “Tchau, amor.” Ele me beijou e se foi. O beijo já tinha outra qualidade, era industrial. Nosso sexo também já tinha entrado na era industrial. Tchau, amor, igualmente industrial. Ele era o operário do casamento e se despedia de sua mulherzinha. Atrasado e preocupado, como todo industrial. Eu o segui, pensando que esse também era um comportamento da esposa industrial. Seguir o marido, pegá-lo na cama com outra e torturá-lo industrialmente. A operária do casamento também deve fazer sua parte. Ele estacionou na alameda Santos. Entrou num restaurante (péssima escolha).

Sentou-se na última mesa, ao lado de uma loira. Ela era charmosa, uma das mãos ocupada com a gargantilha dourada. A outra, ele acariciava. Beijava. Várias vezes. Quando o casamento atinge a fase industrial, a traição não faz sofrer. É um recurso do controle matrimonial, disse minha mãe. Esqueça. Domine-o. Seja feliz. Mas eu não queria o controle matrimonial. Queria que ele me amasse. Três, quatro vezes sexo, por dia. Queria Stevie Wonder. Pipoca. “You are the sunshine of my life.” Queria o casamento artesanal. Depois do almoço, segui a mulher. Parou num predinho em Pinheiros. O porteiro, subornado, entregou a ficha: Leila, trinta anos, bancária, solteira. Eu tenho vinte e dois anos, delegado. Isso não importa, mas eu tenho vinte e dois anos. E ela, trinta. Quando ela tinha oito, eu nasci. Quando ela tiver quarenta, eu vou ter trinta e dois.

Uma mulher de trinta e dois é muito diferente de uma mulher de quarenta, não é verdade? É esta a diferença. Como Rubão não pensava nisso? Voltei para casa e tranquei: as portas da sala, da área de serviço, da cozinha, da cozinha para o corredor, do corredor para o banheiro, do corredor para o quarto. Ferrolho, trancas, travas, trincos, cadeados. Tranquei tudo. Liguei a televisão. O nome do filme era Antonieta. Direção: Carlos Saura. A primeira cena é assim: uma apresentadora de programa culinário acaba de preparar um prato. O programa é ao vivo. Ela retira o frango do forno, dá algumas dicas e finaliza com um texto do tipo: “Chegamos ao fim de mais um programa, minhas queridas amigas, e, antes de me despedir, quero mostrar algo que vocês nunca viram antes.” Então, ela pega um revólver que estava escondido na bancada e dá um tiro na cabeça, ao vivo, minhas queridas. Assim começava o filme. Fiquei pensando na minha amiga da Fornada especial. À meia-noite o Rubão me ligou. Eu estava silenciosa. “O que você tem?” “Estou triste”, respondi. “Por quê?” “Porque não gosto de ficar sozinha.” Eu tinha medo de contar que sabia que ele tinha uma amante. Isso também pode acontecer com um casamento industrial: o operário sai de casa e larga a mulher sozinha na fábrica, comaquele monte de equipamentos matrimoniais. Como é que eu dormiria? Era preciso pensar melhor. Dois ou três dias depois, resolvi que iria conversar com Leila, a amante. Eu queria ser como a Virginia Madsen naquele filme The hot spot. EUA, 1990. Direção: Dennis Hopper. Aquelas americanas que têm os sentimentos impermeabilizados, mascam chiclete o tempo todo, andam de tamancos altos e dizem para as rivais: “Hei girl, get out of my way.

” Leila abriu a porta, tinha acabado de se levantar. LEILA Pois não? EU Eu sou a mulher do Rubão. LEILA Perdeu seu tempo. Ele não está aqui. EU Você acha que eu perdi meu tempo? LEILA Acho. Eu nem sei quem é o Rubão, para falar a verdade. Levou o primeiro tiro quando falava a palavra verdade. O segundo, nem lembro. Depois o terceiro, o quarto e o quinto. Estrebuchou e morreu. Drop-out. Eu estava a caminho da casa de Leila, quando notei o disparo na imagem, umdefeito de gravação. Tive de gravar de novo. Vou contar exatamente como foi. Prédio de Leila. Externa. Dia. PORTEIRO A senhora não ficou sabendo? Ela morreu faz dois dias. Foi assassinada. Abusaram dela e tudo. Foi encontrada pelada num terreno aqui perto, sem roupa, machucada. Abusaram muito dela. Foi uma judiação o que fizeram com a dona Leila. A polícia está procurando o homem. Uma judiação mesmo.

É por isso que eu sou a favor da pena de morte. A senhora não acha? Eu queria que isso fosse um drop-out. Mas não era. Leila foi assassinada. Rubão arrasado. Rubão viúvo. Rubão nunca mais meu. Ela tinha uma terrível vantagem sobre mim: estava morta. Nesse estágio amoroso, a morte eleva o amante à condição de perfeito, sublime. Rebecca, a mulher inesquecível. Não me lembro o país. O ano. Nem o diretor. Isso não é comum, tenho facilidade para guardar números e nomes. Cheguei em casa e Rubão estava lá, assistindo televisão. Aquelas reportagens, catástrofes, incêndios, acidentes, terremotos, guerras, edição especial. Enchente. Perdeu o filho de três anos. Perderam a casa. Houve explosões. Perdeu a mulher. Queimou tudo. Perdeu tudo. As duas pernas. Morreu, queimou, afundou, explodiu, acabou o mundo.

E o repórter perguntando: “Como você está se sentindo?” Autópsia sentimental dos sobreviventes, é o que querem os telespectadores. Como se sente seu pulmão? E seu fígado? A dor ataca onde exatamente? Eu queria fazer isso com o Rubão. Morreu, afundou, explodiu, acabou o mundo. Houve explosões. Queimou tudo. Perdeu tudo. O que você está sentindo, Rubão? Em números, por favor. Grau de tristeza, de sofrimento, gráficos da solidão. Em números, dólares, quanto foi? Quanto foi que eu perdi nessa merda? “O que foi?”, ele me perguntou. “Você está estranha.” Isso eu achei estranho. Ele estava normal. Falou normal. Me olhou normal. Não estava sangrando. Quis me abraçar, agora que ele não tem Leila. Ou ele não sabe que Leila morreu? Talvez ele esteja apenas estranhando, telefona há dois dias, ela não atende. Ou eles marcaram um encontro, ela não foi, ele ficou com raiva e resolveu dar o troco amoroso. Ele me puxou para a cama. Queria sexo industrial. “O que você tem?”, ele me perguntava. Tive vontade de contar que Leila morreu. Mas ele tirou minha roupa, segurou meus pulsos contra a cama e me beijou. Explodiu, queimou, afundou, morreu. Tenho vontade de chorar quando lembro dele me invadindo.

Daqueles músculos concentrados na invasão. Três, quatro vezes sexo. Sexo oral desidrata, eu sinto. Quando eu estava saindo do quarto, ele me encostou na parede, me levantou, me penetrou e fizemos sexo novamente contra a parede. Contra Leila. Contra o casamento. Contra o amor. Sexo apenas. Sexo artesanal. Leila não era nada. Rubão era meu, foi o que pensei. Sexualmente meu. Fizemos pipoca e dormimos toda a tarde.

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