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Adam Bede – George Eliot

Com simples gota de tinta, os adivinhos procuram revelar o futuro e os acontecimentos passados. É isso que pretendo fazer contigo, caro leitor. com uma gota de tinta e o bico da minha pena vou conduzir-te à oficina de Jonathan Burge, carpinteiro e mestre de obras na aldeia de Hayslope, tal como era no dia 18 de Junho do ano da graça de 1799. Cinco operários faziam portas, caixilhos de janelas revestimentos de madeira. A tarde estava quente; pela porta entreaberta entrava o cheiro forte, exalado por uma pilha de pranchas de pinho que se encontrava fora e confundia-se com o perfume dos sabugueiros cujas flores cor, de neve emolduravam a janela aberta de par em par; o sol doirava de passagem as delgadas aparas que se levantavam diante da plaina, impelida por mão firme, e valorizava a beleza dos painéis de carvalho encostados à parede. Um cão de pastor, de pelagem acinzentada e áspera, arranjara cama macia sobre as aparas; estava estendido, com o focinho apoiado nas patas dianteiras e, de vez em quando, levantava a cabeça para relancear. um olhar ao mais alto dos cinco operários, que esculpia um florão no centro de um pano de chaminé. Dominando o ruído das plainas e dos martelos, esse operário cantava com voz forte de barítono: Desperta minha alma e com o sol Durante o dia cumpre o teu dever, Sacode a tua indolência. Nessa altura, ao tomar uma medida que solicitava toda a sua atenção, a voz sonora tornou-se num simples murmúrio; mas logo recomeçou com redobrado vigor: Que as tuas palavras sejamsinceras E a tua consciência pura como a água. ” Essa voz só podia sair de um peito vigoroso e esse peito pertencia a um homem musculoso, robusto, de alta estatura. Tinha quase um metro e oitenta de altura, as costas tão aprumadas e a cabeça tão direita sobre os ombros que, quando se endireitava para apreciar o conjunto do seu trabalho, mais parecia um soldado na posição de sentido. As mangas arregaçadas acima do cotovelo punham a descoberto o braço talhado para alcançar prêmios em jogos de força, enquanto a mão, comprida e esguia, e os dedos afuselados demonstravam a sua aptidão para trabalhos delicados. Pela sua estatura atlética, Adam Bede era um Saxão digno de usar o nome do venerável historiador, o seu, mas os cabelos negros, contrastando com a cor clara do chapéu de papel, os olhos iescuros e brilhantes e as espessas sobrancelhas deixavam adivinhar antepassados célticos. O rosto era corado, com feições grosseiras e a sua única beleza consistia na expressão inteligente e benévola. O operário seguinte era irmão de Adam. Quase tão alto como ele, tinha a mesma cor de pele e o mesmo tom de cabelo, mas aí terminava a semelhança. Os largos ombros de Seth eram ligeiramente curvados, os olhos claros, as sobrancelhas menos espessas e móveis, o olhar não tão vivo, mas inteligente e meigo. Os cabelos, não tão bastos e lisos como os de Adam, eram finos e ondulados, deixando a descoberto a fronte mais alta do que larga. O concerto dos ruídos e do canto foi interrompido por Seth, que encostou à parede a porta emque estivera a trabalhar com todo o cuidado, declarando: – Pronto, acabei a porta. Os outros operários levantaram a cabeça. Jim Salt, ruivo e gordo, a quem chamavam Sandy Jim(*), suspendeu o trabalho da plaina e Adam, cujo olhar reflectia a maior surpresa, observou: – O quê? Dízes que acabaste a porta, Seth? – Ora essa! – protestou Seth, não menos surpreendido – Falta-lhe alguma coisa? Os outros soltaram ruidosa gargalhada. Adam limitou-se a sorrir e, em voz branda, notou: – Faltam-lhe os painéis. As gargalhadas voltaram; a fazer-se ouvir quando Seth, corado até à raiz dos cabelos, bateu comos punhos na cabeça. – Muito bem! -exclamou um homenzinho/ baixo é ágil, a quem chamavam Wiry Ben (2), correndo a levantar a porta – Vamos pendurá-la na parede da oficina e escreveremos por baixo: “Trabalho de Seth Bede, o metodista”. Jim, dá-me a lata da tinta.


– Qualquer de vocês poderá ter distracção semelhante – atalhou Adam – e então já não riria. – Não me apanharás, Adam. Muita água correrá nos rios antes que a minha cabeça esteja cheia de idéias metodistas – protestou Ben. – Está quase sempre perturbada pelo álcool, o que ainda é pior. Ben já tinha na mão a lata da tinta vermelha e, com o braço no ar, fingia pintar um imaginário. – Acaba com isso – intimou Adam, que largou as ferramentas e em poucas passadas alcançou Ben, a quem prendeu pelo braço – acaba com isso, já disse, ou te sacudo até pedires misericórdia. O outro tremia, preso pelo pulso forte de Adam. Mas era um homenzinho teimoso que não gostava de ceder. (1) – Jim Areia(2) – Ben Arame. Com a mão esquerda tirou o pincel da direita, que Adam não deixava mover, e fingiu que ia escrever. Num abrir e fechar de olhos, Adam obrigou-o a dar meia-volta, prendeu-lhe o outro braço e, empurrando-o, encostou-o à parede. Seth, então, interveio: – Deixa-o, Adam. Ben estava a brincar e tem razão. Eu próprio faço o mesmo. – Não o largo enquanto não me prometer que não volta a falar na porta – declarou Adam. – Vamos, nada de questões – pediu Seth, em tom persuasivo – Adam nunca desiste, bem sabes, Ben. Seria mais fácil fazer passar um grande carro por atalho estreito. – Não tenho medo do Adam – declarou Ben – mas estou disposto a deixar a porta em paz, visto tu. mo pedires, Seth. – Fazes bem, Ben – aprovou Adam, a rir, largando-lhe os braços. Voltaram todos ao trabalho. Ben, porém, que acabava de sofrer um desaire numa prova de força, tentou remediar a humilhação com um dito de espírito. – Em que estavas tu a pensar, Seth, quando te esqueceste dos painéis da porta? No sermão ou no lindo palminho de cara da pregadora? – Vai ouvi-la, Ben – respondeu Seth, com ar prazenteiro – Ela prega esta tarde no largo. Aprenderia” coisas bem mais interessantes do que as canções indecorosas que tanto aprecias. Serias um pouco mais piedoso e com isso alcançarias o melhor salário que até hoje ganhaste.

– Tudo tem a sua altura, Seth. Pensarei nisso quando tiver disposição; os celibatários não precisam de salários elevados. Se lhe fizesse a corte, talvez me convertesse como tu, Seth; mas, comcerteza, não gostarias de que eu me atravessasse entre ti e a linda pregadora e a conquistasse? – Não há perigo, Ben. Ela não é para ti nem para mim. Vem ouvi-la e depois já não falarás com tanta leviandade a seu respeito. – Estou quase tentado a fazer-te a vontade, se não tiver companhia no Holly Bush. Que texto escolherá ela para o sermão? Devias dizermo, Seth, no caso de eu chegar atrasado. Talvez este: Que procuras aqui? Uma profetisa? Em verdade te digo que não é a, profetisa, mas uma mulher de uma beleza pouco comum”. – Estás a levar as coisas longe de mais, Ben – atalhou Adam – Não faças citações da Bíblia. – O quê, pois tu mudaste de idéias, Adam? Sempre te ouvi atacar as mulheres pregadoras! – Não, não mudei de idéias, nem falei em pregadoras. Disse simplesmente: “Não faças citações da Bíblia”. Tens orgulho nos teus ditos de espírito, não é verdade? Pois então contenta-te com eles. – Queres imitar o Seth e ser um santarrão como ele? Vais hoje ouvir o sermão, aposto. Farias bem em dirigir o canto. O que dirá o reitor quando vir Adam Bed, o seu preferido, tornar-se metodista? – Não te preocupes comigo, Ben. Penso tanto em tornar-me metodista como tu. No entanto, talvez te tornes ainda pior. Mr. Irwine é bastante inteligente para não se intrometer nas idéias religiosas dos outros. É assunto entre Deus e eles, dissemo muitas vezes. – Sem dúvida. Contudo, não aprecia muito os dissidentes. – Também eu não aprecio a cerveja do Josh Tod e, no entanto, não te impeço de a beberes até ficares tonto. A resposta de Adam provocou gargalhadas, mas Seth censurou, com ar muito grave: – Adam, não devemos comparar a religião com a cerveja. Não ignoras que os dissidentes e os metodistas sabem aprofundar tão bem as coisas como as pessoas da igreja.

– Não zombo das crenças seja de quem for, Seth. Cada qual deve seguir a sua consciência, embora, em minha opinião, essa consciência devesse indicar-lhes o caminho da igreja; teriam muito que aprender. Será talvez exagero, mas, neste Mundo, precisamos de mais alguma coisa do que do Evangelho. Repara nos canais, nos aquedutos, nos motores, nos teares de Arkwright em Cromford. O Evangelho não nos ensina a fabricar essas coisas: Mas, na opinião de certos pregadores, um homemnão devia fazer mais nada senão fechar os olhos e olhar para dentro de si mesmo. Sei muito bem que devemos amar a Deus em nós e respeitar a Sua palavra que está na Bíblia. Mas o que nos ensina a Bíblia? Que o espírito de Deus sopra sobre o operário que constrói o tabernáculo para que ele faça as esculturas com mão hábil. E essa a minha maneira de ver; o espírito de Deus está em toda a parte e em todas as coisas ao mesmo tempo, nos dias da semana como ao domingo, nas grandes obras e invenções, no cálculo e na mecânica. Deus auxilia os nossos cérebros e as nossas mãos, tanto como as nossas almas; e se um homem se entretém fora das horas do trabalho, se constrói um forno para evitar que sua mulher vá ao padeiro, ou se cultiva o seu jardim ou umpedaço de terra para que cresçam duas batateiras em vez de uma, é mais útil e está mais perto de Deus do que se passasse o seu tempo atrás dos pregadores, a rezar e a gemer. – Bravo, Adam – aprovou Sandy Jim, que parara de aplainar para ir buscar outra prancha, enquanto Adam falava – Há muito tempo não oiço tão lindo sermão! Minha mulher, precisamente, há mais de um ano que anda a maçar-me para eu lhe construir um forno. – Há muita verdade nas tuas palavras – concordou Seth, com ar grave – mas não ignoras que, ao ouvir os pregadores, de quem dizes tanto mal, mais de um preguiçoso tomou gosto pelo trabalho. É o pregador quem faz abandonar a taberna e, se um homem se torna piedoso, não deixa de trabalhar por isso. – Não – acudiu Wiry Ben – mas por vezes esquece-se de fazer os painéis das portas, não é verdade, Seth? – Arranjaste uma brincadeira para me arreliar toda a vida. Mas, se me enganei, a culpa não foi da religião. A culpa foi do próprio Seth Bede, que tem a cabeça oca; a religião não a melhorou e é pena. – Não faças caso – respondeu Wiry Ben – com painéis ou não, és um excelente rapaz. E não te zangas quando brincam contigo, como alguns dos teus parentes, embora sejam operários dos mais hábeis. – Seth, meu rapaz – aconselhou Adam, sem acusar o bote dirigido contra ele – não te ofendas com o que eu disse. Não era contigo. Cada um vê as coisas da sua maneira. – Não, Addy. Tu és como o teu cão Gyp. Ladra-me de vez em quando, para em seguida vir lamber-me a mão: Recomeçaram todos a trabalhar em silêncio, até que o relógio bateu as seis horas. Mal deu a primeira badalada, Sandy Jim largou a plaina e foi buscar o casaco; Mum Taft, que, fiel ao seu nome, não abrira a boca durante a conversa anterior, largou o martelo, precisamente no momento em que o levantava, e o próprio Seth se endireitou, levando a mão ao chapéu de papel. Apenas Adam continuou a trabalhar como se coisa alguma se tivesse passado.

No entanto, vendo os outros largarema ferramenta, ergueu os olhos e protestou com indignação: – O que é isso? Largam a ferramenta quando o relógio começa a dar horas, como se tivessem medo de trabalhar um minuto mais. Não posso ver uma coisa dessas! Seth mostrou-se arrependido e suspendeu os preparativos para a. saída, mas Mum Taft quebrou o silêncio e declarou: – Adam, meu amigo, falas como um garoto. Quando tiveres quarenta e seis anos, como eu, em vez de vinte e seis, não terás tanto prazer em trabalhar para os outros. – Estás a dizer asneiras – protestou Adam, ainda irritado – A idade nada tem a ver com o caso. Ainda não estás inutilizado para o trabalho, creio eu. Detesto ver um operário deixar cair os braços, como se tivesse apanhado um tiro, antes de o relógio acabar de dar horas. Dá-me a impressão de que não tem muito orgulho no que faz. O relógio continua a trabalhar, mesmo depois de o largarem. – Já basta, Adam, já basta – protestou Wiry Ben -‘ deixa-nos em paz. Há pouco, censuravas os pregadores, mas gostas de fazer sermões tanto como eles. Se preferes o trabalho ao jogo, por mimprefiro o jogo ao trabalho. Até devia agradar-te, porque assim tens mais que fazer. E, com estas palavras, que considerou sem réplica, Wiry Ben pôs o cesto ao ombro e abandonou a oficina, logo seguido por Mum Taft e por Sandy Jim. Seth ficou parado a olhar para Adam com ar pensativo. (*) – Boca calada. – Passas por casa antes de ires para a predica perguntou-lhe Adam, erguendo os olhos. – Não. vou pôr o chapéu e a ferramenta em casa de Will Maskery. Depois acompanharei Dinah Morris a casa, se ela consentir. Dos Poyser ninguém vem com ela, bem sabes. Não voltarei antes das dez. – Direi à mãe para não esperar por ti. Até ali, Gyp não abandonara a sua confortável cama, limitando-se a levantar a cabeça a fim de vigiar Adam, depois da saída dos outros operários. Mas, logo que Adam guardou a régua na algibeira e começou a enrolar o avental em torno da cintura, deu um salto o foi pôr-se ao lado do dono.

Se tivesse cauda, com certeza a abanaria, mas, privado desse meio de se manifestar, estava condenado a mostrar-se mais fleumático do que era, como acontece com muitas pessoas. – Estás preparado para levar o cesto, não é verdade, Gyp – perguntou Adam, no mesmo tom carinhoso com que falava a Seth. Gyp pulou, soltou pequeno latido como para responder: “Estou, sim”. Pobre amigo, o seu vocabulário era dos mais reduzidos! O cesto servia para transportar o jantar de Adam e de Seth, nos dias de trabalho. Um dignitário, numa procissão, não toma ares tão solenes, tão firmes, como Gyp tomava ao trotar ao lado do dono com o cesto entre os dentes. Ao sair da oficina, Adam fechou a porta à chave e foi entregá-la numa casa que ficava do outro lado da rua, mesmo em frente. Era uma casa baixa, com telhado de colmo escuro e as paredes caiadas de ocre, o que lhe dava um aspecto alegre, agradável à vista, mesmo àquela hora do crepúsculo. As janelas, guarnecidas de chumbo brilhavam e a soleira da porta, de pedra, estava tão limpa como os seixos da praia depois da maré cheia. À porta, uma mulher de idade, com um vestido de riscas pretas, lenço vermelho e touca branca, chamava as galinhas, que corriam para ela com a esperança de apanharem alguma batata ou um punhado de cevada. como estava de cabeça baixa, não viu Adam antes deste se lhe dirigir. – Aqui está a chave, Dolly. Deixe-a em casa, por minha causa, quando eu voltar. – Está descansado. Não queres entrar, Adam? Miss Mary está lá em cima e master Burge não deve demorar-se. com certeza, gostaria de que ficasses para cear. – Não, Dolly, obrigado. vou para casa. Boa noite. A passos largos, seguido por Gyp, abandonou a rua e dirigiu-se para a estrada principal, que, já fora da aldeia, descia o vale. Quando chegou ao sopé da colina, seguiu cantando, enquanto um homem que passava a cavalo, com a manta ao ombro, detinha a montada e voltava-se para trás a fim de o ver passar. II – A PRÉDICA Pelas sete horas menos um quarto, na pequena aldeia de Hayslope reinava desusada animação e pela rua estreita, chamada Donnithorne Arms, que seguia até ao cemitério, as pessoas saíam, apressadas, de suas casas, atraídas, evidentemente, por interesse maior do que o de passearem. A hospedaria de Donnithorne ficava à entrada da aldeia. Ao lado via-se uma pequena capoeira e o portão da quinta. Tudo isto prometia ao visitante, que ali parasse, saborosas refeições e consolava-o da ignorância em que o deixava a tabuleta enferrujada, exibindo o brasão da antiga família dos Donnithorne. Mr.

Gasson, o dono da hospedaria, conservava-se à porta, com as mãos nas algibeiras, abanando a cabeça e olhando para um campo sem vedação, no meio do qual se erguia frondoso bordo. Era para esse campo que se dirigiam as pessoas que lhe passavam pela porta. Quando por fim tirou as mãos das algibeiras e encolheu os ombros, viu parar um cavaleiro diante da porta da hospedaria. – Tira-lhe o freio e dê-lhe de beber, rapaz – ordenou ao moço de blusa “que acabava de sair do pátio. Depois, voltando-se para o estalajadeiro, acrescentou: – Que aconteceu na aldeia? Temos desordem? – Trata-se de uma predica metodista. Avisaram todos de que uma rapariga vai pregar no largo – respondeu Casson, numa voz aguda e desdenhosa – Quer entrar e tomar alguma coisa? – Não. Desejava apenas dar água ao meu cavalo. que diz o VOSSO reitor ao facto de uma mulher vir pregar mesmo nas suas barbas? – O reitor Irwine não reside aqui. Vive em Brorton, do outro latlo da colina. O nosso presbitério está quase em ruínas. Seria impossível lá viver. – Sendo assim, está bem – concordou o viajante-no entanto, parece-me que não devem ter muitos metodistas cá na aldeia. – Não. Há muitos operários. Mr. Burge possui uma estância alén e nos arredores existem muitas pedreiras. Trabalho não falta, mas, mesmo assim, ainda existe uma boa ninhada de metodistas, talvez uma dúzia. Já se encontram além, no largo. Verdadeiramente, não são bem da aldeia. Em tlayslope só há dois, Will Maskery, o carpinteiro de cairos, e Seth Bede, um rapaz que trabalha além, na estância, como carpinteiro. – A pregadora vem então de Treddleston? – Não. Vem de Stonyshire, a doze léguas daqui. Está de visita em. casa de Mr. Poyser, na herdade do castelo São aquelas quintas e as nogueiras que ficam daquele lado.

Eles não gostam nada que ela se exiba assim, mas ninguém consegue ter mão nestes metodistas quando se lhes mete uma idéia na cabeça. Dizem que muitos têm endoidecido por causa da religião. Contudo, pelo que me disseram, a rapariga é sossegada. Por mim, nunca a vi. – Lamento não ter tempo para aguardar a sua chegada. Saltou pra o cavalo e partiu, mas, perto do largo, a beleza da paisagem que se estendia à direita, o contraste formado pelos metodistas com os grupos de aldeões e, mais ainda, talvez, a curiosidade de ver a pregadora, foram superiores à pressa e obrigaram-no a parar. O largo encontrava-se no extremo da aldeia, no ponto onde a estrada bifurcava. De um lado, continuava subindo a encosta, passando pela igreja, do outro, descia, serpenteando, para o vale. Do lado que subia para a igreja, a linha irregular dos telhados de colmo quase atingia o cemitério; mas, do lado oposto, para noroeste, estendiam-se os prados, os vales cobertos de arvoredo e a sombra escura das colinas mais distantes. As ricas encostas do Loamshire limitavam o Stonysfaire com as suas colinas escarpadas, tal como uma linda rapariga dá o braço ao irmão mais rude e bronzeado; em duas ou três horas o cavaleiro podia passar de uma região desolada, nua, semeada de pedregulhos, para outra, por um caminho que serpenteava à sombra do arvoredo ou subia encostas atapetadas de verdura ou de campos de trigo. A cada passo avistava um velho castelo aninhado no vale ou, coroando as colinas, uma casa de campo ao lado de herdades onde se amontoavam medas doiradas, um campanário escuro, emergindo do amontoado irregular de tectos de colmo, choupanas e telhados vermelhos. Do largo, o olhar podia abraçar todo o conjunto esplêndido que a igreja de Hayslope oferecia ao viajante que, subindo a encosta, parasse no pequeno planalto. Colinas semelhantes a enormes pirâmides avultavam no horizonte como gigantes encarregados de defenderem os prados e searas contra o vento agreste, muito próximas para se envolverem no misterioso véu das brumas lilases, muito afastadas para deixarem aperceber os rebanhos que pastavam na encosta, acariciadas todos os dias pelas horas que passam, imutáveis, sempre áridas e selváticas, quer sob os tons rosados da madrugada, sob a, doçura Subtil dos dias de Abril ou sob o esplendor do Verão. Logo abaixo, o olhar repousava na massa verdejante de um bosque mais próximo, cortado por campos de cultura, um bosque fresco, matizado com os tons quentes dos carvalhos e com o verde macio das faias ou das tílias. Depois seguia-se o vale onde as árvores se agrupavam de espaço a espaço, como se, desprendidas das alturas, rolassem e se reunissem em volta da imponente moradia para a guardar. No primeiro plano, os raios horizontais do sol filtravam-se por entre as ervas inclinadas, azedas e cicutas de hastes muito altas. Ainda não chegara a altura do Verão, em que o ruído das foices que os homens afiam nos obriga a relancear um olhar de pena pelos prados esmaltados de flores. O visitante teria podido continuar a olhar para leste, para lá dos prados e da estância de Jonathan Burge, para as searas e castanheiros de HalFarm, mas os grupos movimentados interessavam-no mais. Estavam ali representadas todas as gerações da aldeia, desde o velho Taft, com o seu barrete de lã escura, curvado, mas ainda bastante forte para se agüentar alguns anos, até às crianças cobertas por bonés acolchoados. Todos evitavam reunir-se aos metodistas, pois todos eles protestariam se os acusassem de ter vindo ali de propósito para escutar a pregadora. Não, desejavamapenas ver o que ia passar-se. Os homens estavam agrupados diante da forja, isto é, não formavambem um grupo, porque os camponeses nunca se agrupam, não falam baixo uns para os outros, pois são tão incapazes de baixar a voz como uma vaca ou um veado. O verdadeiro camponês volta as costas ao seu interlocutor, faz a pergunta por cima do ombro como se não lhe interessasse a resposta e afasta-se no momento em que o diálogo assume maior interesse. Em conseqüência o grupo formado à porta não era tão compacto que ocultasse o próprio ferreiro. Chad Cranage, encostado à umbreira da porta, com os braços cruzados, ria das próprias graças, preferia-as ao espírito sarcástico de Wiry Ben, que renunciara à taberna pelo prazer de conhecer um novo aspecto da vida.

No entanto, estes dois gêneros de espírito eram igualmente desprezados por Joshua Rann. O avental de coiro e a sujidade indicavam-no, sem dúvida possível, como o sapateiro da aldeia. com a forma como erguia a cabeça e cruzava as mãos sobre o ventre queria dar à entender, a quem não o soubesse, a sua qualidade de sacristão da paróquia. Impelidas pela curiosidade, as mulheres tinham avançado até ao meio do largo para poderemexaminar melhor o trajo quacre e os modos das mulheres metodistas; Debaixo do bordo haviamdisposto um carro para servir de púlpito. à volta colocaram bancos e cadeiras onde estavaminstalados alguns metodistas, com os olhos fechados, entregues às suas meditações e orações. Outros preferiam estar de pé e olhavam para a assistência com melancólica comiseração, o que muito divertia Bessy Cranage, a gorda filha do ferreiro, a quem chamavam a Bess do Chad, que perguntava a si mesma porque fazia aquela gente tanta careta. A Besse despertava a compaixão dos metodistas, porque os seus cabelos arrepiados debaixo da touca, encarrapitada no alto da cabeça, punham a descoberto um enfeite, no qual ela tinha ainda maior vaidade do que nas faces vermelhas: um par de enormes brincos, adornados com falsas granadas, que excitavam o desprezo não só dos metodistas como da prima de Bessy, a Bess do Timóteo, que, apesar dos laços de família, desejaria que os tais brincos desaparecessem. A Bess do Timóteo, que ainda conservava o nome de solteira, era, havia muito, mulher de Sandy Jim e tinha uma boa colecção de jóias, entre as quais o gorducho bebê que embalava nos braços e o garoto de cinco anos que’ brincava perto, com as pernas à vela e uma lata ferrugenta pendurada ao pescoço, como um tambor. O petiz, conhecido pelo nome de Ben da Bess do Timóteo, destemido e curioso como todas as crianças, atravessara os grupos de mulheres e garotos e fora girar à volta dos metodistas, para quem olhava com espanto, de boca aberta, batendo na lata com um pau, como acompanhamento. Como uma das velhotas pretendesse afastá-lo, Ben começou por lhe dar umpontapé e depois fugiu, indo refugiar-se perto do pai. – Este grande maroto – ralhou Sandy Jim, com uma pontinha de vaidade – Larga esse pau, se não queres ficar sem ele. Para que deste pontapés? – Deixa-o vir para o pé de mim – disse a mulher -‘ vou mandá-lo ferrar como os cavalos. Olá, Mr. Gasson continuou, como o homem se aproximasse – Como vai isso hoje? Vem ajudar-nos a soluçar e a gemer? Dizem que as pessoas nunca deixam de o fazer quando escutam as prédicas metodistas. Por mim, vou gemer com tanta força como a nossa vaca quando tem cólicas e, dessa forma, a pregadora julgará que entrei no bom caminho. – Não sejas idiota, Chad – aconselhou Casson, com dignidade – Mr. Poyser não deve ficar muito satisfeito quando vir a sobrinha de sua mulher a pregar, mas ainda ficará mais zangado se lhe faltarem ao respeito. – Além disso, gosto de vê-la – acrescentou Wiry Ben – Agradam-me as mulheres bonitas quando pregam. Converter-me-iam mais facilmente do que um homem feio. Não me admiraria muito se antes de acabar a predica eu me fizesse metodista e começasse a cortejar a pregadora como o Seth Bede. – O Seth olha para muito alto, em minha opinião comentou Casson – Os parentes da rapariga não devem gostar que esta se case com um carpinteiro. – Ora – atalhou Ben, com ar impertinente – os parentes não devem meter-se no caso. A mulher do Poyser, pode levantar a cabeça, mas esta Dinah Morris, pelo que dizem, trabalha numa fábrica e ganha a sua vida com dificuldade. Um rapaz perfeito e metodista como o Seth não pode ser considerado mau partido para ela. Além disso, não ignoram que os Poyser gostam tanto do Adam como se ele fosse seu sobrinho.

– Aí vem o Seth, acompanhado por Will Maskery com o seu ar assustado, como se tivesse medo de fazer mal a um prego quando lhe bate na cabeça. E aí vem também a linda pregadora. Tirou o chapéu Quero ir vê-la mais de perto. Muitos homens seguiram Wiry Ben e até o viajante impeliu o cavalo mais para o largo, enquanto Dinah se aproximava em passo rápido, precedendo os companheiros. Ao lado de Seth dava a impressão de ser baixa, mas, quando subiu para o carro, parecia mais alta do que a maioria das mulheres, por ser bastante delgada e talvez pelo corte simples do seu vestido preto. Quando a viu mais de perto, o viajante ficou ainda mais surpreendido com os seus modos naturais do que com a sua beleza. Calculara vê-la chegar em passo de marcha e com ar, solene; estava certo de que o semblante reflectiria a satisfação de ser santa, ou profética amargura. Só conhecia duas espécies de metodistas: as que tinham êxtases e as que se enfureciam. Pelo contrário, Dinah dispunha-se a pregar como quem vai para o mercado, sem se preocupar comaparências, sem corar ou tremer, sem afirmar, pela sua atitude: “Sou demasiado bonita e nova para pregar, sei-oo tão bem como vós”, sem fazer olhinhos, sem morder os lábios, sem tomar ares de santa. As mãos desenluvadas não apertavam o clássico livro de orações. Estavam cruzadas, enquanto os olhos claros olhavam em volta, mas não viam, como se a sua dona estivesse mergulhada numsonho íntimo. Os ramos altos e frondosos defendiam-na do sol e, nessa tonalidade branda, o tomdelicado da cútis parecia o de uma flor apenas desabrochada. Era branca, de uma transparência delicada com o rosto oval, a boca carnuda de desenho firme, as narinas delicadas. Os cabelos, de umloiro ardente, estavam apartados em bandos, descobrindo a fronte baixa, As sobrancelhas claras eram bem desenhadas, as pestanas compridas. Os olhos não eram belos, mas tinham uma expressão ingênua e cândida, meiga e grave, que repelia censuras e fazia calar os gracejos nos lábios de quempretendesse dirigir-lhos.

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