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Adeus a inocencia – Drusilla Campbell

Madora Welles tinha 12 anos quando aprendeu que algumas garotas têm sorte na vida, e outras nem tanto. No dia em que seu pai foi a pé para o deserto, ela aprendeu que a sorte pode esgotar-se num único dia. Depois disso, não houve mais papai contando toda a história de João e o pé de feijão, do início ao fim, em um minuto cravado. Não houve mais mamãe toda sorrisos de prontidão com um cronômetro para certificar-se de que ele não trapaceasse. Garotas de sorte não tinham pais que mudavam de felizes para tristes, de tranquilos para furiosos ao extremo, no intervalo de uma hora, trancavam-se no galpão e golpeavam coisas com um martelo. Nenhuma garota de sorte já teve um pai que foi para o deserto e meteu uma bala na cabeça. Yuma, Arizona: a cidade se posta como uma rede nas planícies desérticas. Edifícios térreos, restaurantes de fast-food em cada esquina, poeira, calor e vento, muitos militares e um time de beisebol muito bom. Isso é tudo. A mãe de Madora, Rachel, dizia que Yuma matou seu marido, dizia que a estava matando também. Para salvar-se, ela ligava a televisão, entrava nas histórias de outras pessoas e se perdia. Por muito tempo ela se esqueceu de se preocupar com a filha. Negligenciando a escola, bebendo e atirando-se no rio de drogas que corria pelo centro de Yuma, Madora tinha 17 anos quando conheceu Willis Brock. A melhor amiga de Madora era Kay-Kay, uma garota de família com uma sorte pouco melhor que a dela. Em vez de usar uma arma, o pai de Kay-Kay bebeu por muitos anos até morrer, quando ela e Madora se grudaram uma na outra como gêmeas separadas no nascimento. Rachel percebeu encrenca ao vê-la entrar pela porta mascando chiclete e cheirando a tabaco, mas a essa altura Madora já parara de ouvir a mãe. Rachel adormeceu em frente à televisão, na velha poltrona reclinável La-ZBoy [1] que ainda cheirava a Old Spice. [2] Madora, Kay-Kay e um garoto chamado Randy, que conhecia alguém que conhecia outro alguém que tinha um carro, seguiram para o sul de Yuma, adentrando o deserto próximo à fronteira, onde, tinham ouvido falar, havia uma casa de festas e muito agito. Rachel dissera mil vezes à filha que ficasse longe da fronteira, mas, nos anos após o suicídio do pai, a vida de Madora fora só fuga e rebeldia; e as drogas e o cenário remoto a estimulavam. Até chegarem os motociclistas, ela se divertia bebendo uísque diretamente na garrafa e fumando maconha, adotando as sugestões sociais de Kay-Kay. Inconscientemente, ela copiava da amiga a postura de ombros descaídos, ressabiada e atenta a não rir demais ou muito alto. Não que houvesse muita graça em festas assim; e o que passava por conversa eram insultos e impertinências, discussões e despropósitos, queixas intrincadas e comparações dessa noite com outras, dessa erva com o bagulho que fumaram na semana anterior. O pensamento de Madora não era nem introspectivo nem analítico, mas ela sabia que era diferente de Kay-Kay e dos vagabundos em torno dela e desejava não ser. Ela queria erradicar de si mesma a parte que era como o pai: um sonhador, um esperançoso, uma pessoa de fazer pedidos às primeiras estrelas. Na festa aquela noite no deserto, ela guardou para si as noções românticas e perduráveis que flutuavam no fundo de sua mente.


Não importavam as probabilidades contra isso: um bonitinho entraria pela porta e olharia para ela do mesmo jeito que seu pai algum dia olhara, e ela se sentiria como algum dia se sentiu, como a garota mais sortuda do mundo. Depois das 11 horas, porém, chegaram os motociclistas. Vozes se ergueram, e o ar estalou, a música ficou mais alta, e a antiga casa em ruínas vibrou ao ritmo do baixo. Kay-Kay colocou a boca perto do ouvido de Madora, a respiração era uma tira oleosa de uísque. — Eu vou lá. — Estava muito barulhento, e ela teve de repetir. — Aqueles caras, eles trouxeram anfetamina. Vou lá experimentar. Madora estivera bebendo e puxando fumo a noite toda. As palavras de Kay-Kay não entraram realmente na sua cabeça; mas o que a amiga fazia ela queria fazer igual. — Eu também. Num espaço junto à sala de estar, sentaram-se no chão diante de um barbudo com um incisivo de ouro que disse chamar-se Jammer. Homens e garotas, cabeludos e skinheads, tatuados e de jaquetas de couro, todos estranhos a Madora, recostavam-se uns contra os outros, de pé ou agachados com as costas na parede. Jammer usava uma regata preta tão justa que marcava os músculos mais que desenvolvidos de seus braços, ombros e peito, e suas mãos tinham cicatrizes de queimadura. Segurava um cachimbo de uns 15 centímetros com um bulbo na extremidade e jogava a chama de umisqueiro por baixo do vidro, tomando cuidado para não o tocar com o fogo, girando o cachimbo enquanto o fazia. Madora presenciava fascinada o cubo âmbar-claro dissolver-se dentro do bulbo. Sentiu o lábio doer e se deu conta de que o estava mordendo. Eu não devia estar aqui, pensou, e olhou para KayKay. Um sinal de que a amiga queria ir embora e Madora teria disparado num instante. Mas Kay-Kay estava hipnotizada pelo cachimbo na mão de Jammer. Ela se inclinou para a frente, observando avidamente enquanto Jammer virava e rolava o cachimbo. Uma gota de saliva ficou suspensa de seu lábio inferior. Os outros ali passavam um baseado e falavam baixinho; Madora ouvia ocasionalmente alguém rir. A porta para o restante da casa estava fechada, mas por debaixo dela se podia sentir a batida da música. Na sala esfumaçada, seus olhos lacrimejavam e a visão se turvava.

Um homem agachou-se atrás dela, pressionando os joelhos em suas costas. Segurou-lhe os ombros e exortou-a a reclinar-se. — Relaxa, belezinha, você vai adorar isso. Jammer segurou o cachimbo na direção de Madora, e Kay-Kay deu-lhe uma suave cotovelada e umsorriso de encorajamento. Madora pensou numa festa de aniversário, o momento de expectativa pouco antes de o bolo ser iluminado e de a cantoria começar. O homem atrás dela acariciou-lhe o braço, correndo os dedos ao longo de seu ombro e subindo até os cabelos. — Não tenha medo. Vou cuidar de você — sussurrou ele. Ela pegou o cachimbo entre os dedos e colocou os lábios em volta do tubo. Começou a inalar, mas, assim que o fez, voltou-lhe a imagem da festa de aniversário, e ela viu seu pai segurando o bolo; ela tinha 6 anos novamente, e, acontecesse o que acontecesse, papai sempre cuidaria dela. Sua garganta se fechou, a mão subiu e atirou o cachimbo no chão. Alguém gritou, e a cabeça dela explodiu em luzes brancas, e não houve grito nem conversa, música em lugar algum, apenas uma dor ardente como se sua cabeça fosse um ovo e alguém o tivesse jogado contra a parede. Levantou-se com esforço, caiu de joelhos e ergueu-se novamente. Alguém a agarrou e a empurrou contra a parede. Mãos tatearam na frente de sua camiseta, ela se debateu e tentou gritar, mas sua garganta e pulmões haviam se fechado, paralisados. Mais mãos agarraram-lhe os braços e arrastaram-na pelo chão; suas sapatilhas se soltaram dos pés, e seus calcanhares descobertos se agitaram com violência sobre o linóleo rasgado. Uma porta se abriu, e ela avançou caindo para uma cortina de ar fresco. Alguém a empurrou para uma cadeira, e ela se sentou enrijecida, lutando para respirar. — Fique com ela — rosnou uma voz. — Puta merda, você está bem? — Veio de longe a voz de Kay-Kay. A face esquerda de Madora se contraía em espasmos, enquanto o olho piscava loucamente. — Quer que eu ligue para sua mãe? Ó céus, Madora, não posso chamá-la aqui. Madora queria interromper os espasmos, mas sua mão não conseguia encontrar o rosto. — Ninguém vai sair da festa para levá-la para casa. As mãos, os pés e a cabeça dela estavam atados por cordas.

Ela sacudiu a cabeça como uma marionete. — Jammer disse que você só inalou forte demais. Sortuda, hein? Está ouvindo, Mad? Ele disse que apenas uma em cada trilhão de pessoas reage mal como você. Podia ter morrido. Nem acredito na sorte que teve. Alguém mexia seu cérebro com uma colher de pau. — Ninguém quer ir embora ainda, e, de todo jeito, Jammer disse que você vai se sentir melhor. Então ela ficou sozinha na varanda anterior da casa. Um coiote cruzando o terreno parou para olhá-la, o luar refletido em seus olhos amarelos. Kay-Kay retornou e sentou-se ao lado dela por alguns instantes, segurando-lhe as mãos suadas, e depois entrou de volta na casa. A temperatura do deserto caiu, e o ar frio e seco pairava sobre tudo. O suor no corpo de Madora secou, e ela estremeceu; seus dentes tiritavam como ossos dentro de um saco de papel. Ela flexionou as pernas, os pés sobre a cadeira e envolveu os joelhos com os braços. Descansou o rosto sobre os joelhos e tentou fechar os olhos, mas as pálpebras saltaram como se tivessem molas. Na casa, alguémdesenterrara o CD de uma gravação antiga do The Doors. Os rif s de teclado orquestravam seus sentidos, e a batida penetrava-lhe profundamente. Seus músculos doíam com isso. Luzes de carro riscavam os cactos e opúncias de ponta a ponta. Por um momento, ela ficou cega, depois a visão se turvou, e a figura vindo em sua direção pareceu emergir da água como algo abençoado, uma visão sagrada. Sem saber por quê, ela tentou levantar-se da cadeira onde estava encolhida. As pernas vacilaram sob o corpo, e ele estendeu a mão, ajudando-a a equilibrar-se. — Ei, garotinha, é melhor ficar sentada. Ela viu dois dele, às vezes três, flutuando como uma miragem; mas sua voz era clara e forte. Abaixo desta, a batida estalando e os rif s de teclado enfraquecendo até parecerem vir de lá longe no deserto, onde devia haver uma festa acontecendo, mas nada disso a preocupava mais. — Não tenha medo, garotinha.

Willis não vai deixar que nada de ruim lhe aconteça. Cinco Anos Depois Madora Wilde levantou-se da sala de estar conjugada onde passara a noite e bebeu uma xícara de café instantâneo, postando-se no alpendre em frente à cozinha. O piso de cimento estava frio e um pouco úmido, e os pés descalços fincaram-se agradavelmente nele. Passou os dedos pelos cabelos castanho-claros, uma cor que seu pai muito tempo atrás descrevera como de rato. Ratinha fora um dos apelidos carinhosos que ele lhe deu. Ratinha, Pug [3] , por causa do nariz arrebitado, Pombinha, por causa da baixa estatura. Queridinha. Como era estranho que a voz de seu pai, mesmo dez anos após a sua morte, ainda lhe viesse à mente, como se ele estivesse lhe enviando mensagens por um circuito disponível apenas para eles. Antes das 6 horas numa manhã de verão, enquanto a lua se punha no horizonte ocidental, o céu sobre as Montanhas de Laguna era uma camada de amarelo-claro, e o ar frio cheirava a sálvia e pimenta, a areia úmida e pedra. O chaparral acidentado cobria o fundo e as encostas do Evers Canyon, suavizado pelas flores creme da camisola e as curvas e concavidades dos rochedos desmoronados cor de biscoito. As rochas eram antigas, disse Willis, talvez de 200 milhões de anos. Madora tinha 22, e 200 milhões era um número tão grande que ela não sabia ao certo nem como escrever. Por detrás das Lagunas, o sol nascia e beijava o topo do Evers Canyon, que assomava logo atrás da casa de Madora. Na cidade mais próxima, Arroyo, e em San Diego, uns 50 quilômetros a oeste, as pessoas acabavam de acordar, mas Madora estava alerta quando ela e o cão atravessaram o quintal e o beco sem saída para onde uma placa castigada pelo tempo sinalizava uma trilha para a Floresta Nacional de Cleveland, um vasto e estéril território de montanhas, rochas e chaparral. Uma rocha 100 metros trilha acima se assemelhava a uma cadeira, e ela muitas vezes ia lá para sentar, pensar e observar as terras enquanto esperava pelo sol; mas essa manhã Willis queria que ela ficasse perto da casa. Madora se recostou na placa da trilha e engoliu o restinho do café enquanto esperava a linha do sol deslizar da borda do cânion e derreter a rigidez em seus ombros e pescoço. Willis disse que ela se sentiria melhor se perdesse uns nove quilos. Era junho, e o tempo mudara, caminhando para pleno verão. As bolas de sálvia-do-deserto [4] espalhadas por todo o terreno inclinado já estavam castanhas. Logo a casa estaria quente como umforno e assim ficaria dia e noite até outubro. Embora Madora abrisse todas as janelas para atrair a mais leve brisa, no beco sem saída do Evers Canyon o ar aprisionado não se deslocava muito. Poeira pousava sobre toda a superfície e aderia à trama grossa das cortinas. Empoava a pele de Madora, entrava nos olhos, nos cabelos e nas orelhas; o nariz ficava tão seco que às vezes sangrava. Junho significava que julho estava a caminho e, logo atrás dele, agosto e setembro, os meses mais quentes do ano. Temporada de fogo.

O pit bull que Madora encontrara quando filhote fazia força contra a perna dela, querendo atenção. Embora Foo tivesse apenas alguns meses de idade, sua personalidade começara a organizar-se nummisto de agressividade e timidez, curiosidade, lealdade e afeição. Durante a noite anterior, os gritos vindos da mulher no trailer atrás da casa pareceram assustá-lo. Ele choramingou até Madora encaixálo na curva de seu corpo, ali no sofá modulado. Havia cinco filhotinhos do tamanho de um repolho na caixa deixada à margem da estrada, mas apenas Foo permaneceu vivo e por pouco não escapou. Marrom e branco e estrábico, ele parecia umpãozinho quente nas mãos dela. Coiotes o teriam pegado se Madora não tivesse visto a caixa. Coiotes e falcões. Aranhas e cobras. O mundo estava cheio de perigo. Na Floresta Nacional de Cleveland, mesmo as plantas tinham pontas e espinhos. Ela enterrou os filhotes na areia ao longo do riacho seco nos fundos da casa e juntou pedras para um túmulo. Com um conta-gotas, deu água para Foo e depois leite evaporado e colocou uma bolsa de água quente e um retalho de cobertor numa caixa para ele aconchegar-se. Willis disse que não poderiam arcar com as despesas de um cão; mas Madora o convenceu do contrário, destacando que um pit bull seria um bom cão de guarda. Precisava de vacinas e uma coleira com seu nome: Foo. Madora queria que ele tivesse uma licença apropriada do condado, mas Willis não gostava de assinar formulários que exigissem seu nome e endereço. Foo tornara-se parte do viveiro de animais feridos e plantas murchas de Madora. Mas ele era mais que isso. Sua presença amigável tornava os longos dias menos monótonos. Ela conversava com ele sobre as coisas que lhe importavam; e, enquanto escutava, os olhinhos brilhantes do cão nunca deixavam o rosto de sua dona, como se ele acreditasse que ela tinha todas as respostas, se ao menos ele pudesse imaginar quais eram as perguntas. Sob o alpendre, havia vasos, floreiras e barris de uísque repletos de zínias, cosmos e petúnias, flores que suportavam o calor desde que fossem regadas. Numa prateleira feita de tijolos e tábuas, uma gaiola improvisada guardava um coelho com uma orelha rasgada por um falcão. Após seis semanas, ele ainda se encolhia no fundo da gaiola. Em outra, mantinha um filhotinho de coiote que ela ajudara a engordar, selvagem e malvado. Encontrara-o do lado oposto ao trailer improvisado onde estava a garota.

Enquanto Madora atravessava novamente a estrada, de volta para casa, um estranho, um andarilho ou um menino montado em sua mountain bike teria visto uma garota de tez clara embelezada pela inocência, olhos verdes cândidos e pele dourada de sol. Mas quase ninguém nunca subia tão alto no Evers Canyon; havia trilhas muito mais fáceis para a floresta de Cleveland. Madora e Willis tinham morado na casa de três quartos no final da Estrada Red Rock por quase quatro anos, alugando-a de um homem que nunca encontraram e que mantinha o aluguel barato desde que pagassem em dia e não pedissem favores nem melhorias. Na memória de Madora, os meses e estações se embaçavam; um verão era tão quente quanto o outro, um inverno tão seco quanto o próximo. A vida no campo combinava com ela, mas a brutalidade da natureza era assustadora. Durante uma caminhada com Willis, ela se emaranhara numa teia de aranha estendida entre duas árvores em lados opostos da trilha. Enquanto puxava a teia pegajosa dos cabelos e do rosto, uma borboleta pousou em sua mão, com as asas tão foscas e secas como papel. Madora queria destruir a teia, mas Willis admirava a complexidade da trama de seda. Ele disse que havia um ciclo de vida, e coiotes e aranhas eram parte dele tanto quanto garotas e borboletas. Madora não acreditava que a vida fosse um ciclo. Cuidando de seus animais feridos, ela pensava que a vida era mais como o fundo de um cânion, onde alguns ficavam presos e apenas poucos se salvavam. No trailer apoiado sobre blocos de cimento, a garota, chamada Linda, gritara durante horas no meio da noite. Willis trabalhava como provedor de assistência médica domiciliar e, antes disso, ele fizera trabalhos médicos no Corpo de Fuzileiros Navais. Ele assegurava que, em comparação a remendar homens despedaçados por artefatos explosivos caseiros e minas terrestres, ajudar mulheres a darem à luz não era nada. Mas ainda assim ela gritava. Willis lhe dera pílulas, mas, pelos gritos da garota, Madora adivinhou que elas não tinham sido suficientes para aliviar as dores do parto. Qualquer um que passasse por ali poderia ter ouvido o barulho que ela fez, mas a casa era no final da estrada, a mais de um quilômetro e meio do vizinho mais próximo, e os moradores do Evers Canyon não se ocupavam dos assuntos alheios. Na cozinha, Madora seguiu as instruções que Willis a fizera repetir uma meia dúzia de vezes. Ela colocou um balde de plástico limpo dentro da pia, com uma toalha velha dobrada no fundo. Outra toalha ela dobrou ao meio e dispôs sobre o balcão ao lado da pia. No outro lado, colocou uma esponja limpa e um frasco de sabonete líquido extrassuave cor de limão e uma terceira toalha. Na véspera, ela esfregara todas as superfícies da cozinha com um limpador à base de cloro, que fazia os olhos arderem e lacrimejarem. De gatinhas, esfregou o chão da cozinha até achar que desgastaria o velho vinil, revelando as tábuas vazadas abaixo. Depois ela não deixaria Willis usar os sapatos dentro de casa, até ele salientar que, se Foo podia entrar e sair correndo, ele devia poder também. Madora não poderia proibir Foo.

Ele ficaria magoado e confuso. Ela lhe daria um banho e lavaria o chão novamente. Ela ouviu Willis chegar pela esquina da garagem, com as botas esmigalhando o cascalho. Ele abriu a porta de tela e deixou-a bater atrás de si. Trazia um embrulho nos braços, envolto num cobertor de flanela. — Lembra-se do que eu disse a você? Ela fez que sim com a cabeça, pegando o bebê. — Quando tiver acabado, vista nele aquela camisolinha com o cordão na parte inferior. Os cabelos castanho-escuros de Willis tinham escapado do rabo de cavalo e pendiam grossos e lisos de ambos os lados de sua bela face, lançando sombras e aprofundando as linhas de exaustão que acentuavam o declive das maçãs de seu rosto. Ele parecia João Batista num retrato na parede da escola dominical que Madora frequentou quando criança. Nos braços de Madora, o recém-nascido era leve, uma pena dentro de um balão envolto em tecido. — Ele é tão pequeno. — Uns dois quilos e meio, suponho. Nada mal, considerando. — Como Linda está? — Desmaiou, mas vai ficar bem. Ela rasgou feio, então tive de lhe dar mais comprimidos do que gostaria. Mas já suturei. Não esquenta. — Ele saiu da cozinha minúscula para os fundos da casa, a voz abafada pela camisa manchada de suor enquanto a puxava sobre a cabeça. — Enquanto eu estiver fora, quero que vá lá dentro e dê um bom banho nela e troque os lençóis. Comprei uns daqueles absorventes femininos. Ela vai precisar. — Quanto tempo ficará fora? Ele não respondeu. O bebê nos braços de Madora não lhe lembrava suas bonecas, a maneira como seus traseiros de borracha descansavam na curva do braço dela quando tinha 7 anos. Segurava essa massa disforme de um jeito incerto, e foi um alívio colocar o bebê sobre a toalha ao lado da pia. Afastou uma ponta do cobertor fino para que pudesse ver o rosto dele.

Arrependeu-se de pensar que ele era feio, mas era a verdade. A testa baixa da criança estava coberta de cabelos negros, o nariz amassado, e a pele tão vermelha e arranhada como se ele tivesse brigado no parquinho. Ela colocou o dedo indicador na bochecha dele e suas pálpebras inchadas pestanejaram — cílios negros tão grossos! — e abriram-se apenas o suficiente para que Madora pudesse ver que seus olhos tinham a cor das águas profundas. — Você passou um mau bocado, hein, rapazinho? — A voz dela pareceu assustá-lo. Ele sacudiu os braços e pernas, fazendo Madora rir. Com o som, os olhos dele se arregalaram. Ela sorriu para ele e aproximou o rosto, desejando que ele a visse sorrir, como se isso fosse de alguma forma assegurar-lhe uma vida feliz. Tenha sorte, pensou ela. Como Willis a instruíra, colocou alguns dedos de água morna no balde de plástico dentro da pia e retirou o cobertor que envolvia o corpo do bebê. Conteve o nojo à visão de sua carne pintada comum muco pegajoso de sangue e uma substância branca quase parecida com queijo. Uma polegada de umbigo amarrado pendia do abdômen dele. Madora gostaria de saber se todos os bebês eram assimtão horríveis nos primeiros momentos de vida. Seria um desastre e arruinaria todos os planos de Willis se ele tentasse entregar o bebê ao advogado e este o rejeitasse. Willis estava num frenesi de economia, falando sobre faculdade de Medicina e de quanto ele precisava dos 25 mil do advogado em dinheiro vivo. Quando a água encostou no menino, ele ficou rígido e gritou, um acesso extraordinário de surpresa que diminuiu quando seu peito, braços e pernas submergiram. Após um momento, ele pareceu gostar da água; e Madora se perguntou se isso o fazia lembrar-se do tempo antes de nascer. Um bebê no ventre se sentia aprisionado ou protegido? Parecia que, quanto mais velha ela ficava, com mais frequência tais perguntas loucas e irrespondíveis estalavam em sua mente. Ela derramou uma gotinha de sabão líquido na palma da mão e passou delicadamente sobre a pele mosqueada e flácida do bebê. Os olhos dele se fixaram nos dela, quase nem piscando. Não sabia ao certo se ele realmente a via; ainda assim, seu olhar fixo, olhar de águas profundas, tinha uma intensidade impressionante, e ela acreditava que ele a estava memorizando. Dali um ano, se ela o visse num carrinho de bebê dentro de um supermercado, ele ergueria a cabecinha para ela, fixaria os olhos e a reconheceria. Vindo do banheiro, Madora ouviu o som da água do chuveiro batendo na parede de metal do boxe. Normalmente ela não gostava quando Willis usava muita água, mas essa manhã ela não se importaria se ele tomasse uma de suas longas chuveiradas escaldantes e esvaziasse o reservatório. O embrulho de bebê escorregadio descansava em seu antebraço, e ela correu os dedos entre cada um dos dedos dos pés e mãos dele. Espumou o emaranhado de cabelos negros e sentiu a pulsação sob a parte mais macia da cabeça.

Willis dissera-lhe como se chamava essa região delicada e avisou-a para ter cuidado com ela. Tremia com a fragilidade de seu corpo, e lágrimas salgaram a água morna. Apoiando as nádegas dele na palma da mão, ela removeu o resíduo pegajoso do canal do parto, subindo os dedos até embaixo do queixo e as axilas. Entre as perninhas, uma nuvem de bolhas estourou na superfície do banho, e Madora riu. Ergueu-o da água, longo, mole e magro; e, ao fazer isso, ele voltou a gritar, um som penetrante que Madora entendeu imediatamente como surpresa e frio. Ela rapidamente o envolveu numa toalha nova e segurou-o contra seu coração, dando tapinhas e cantarolando promessas carinhosas de que ele embreve estaria aquecido. Ninguém precisava dizer a ela como o segurar e bater levemente nele para secá-lo. A habilidade nasceu com ela, um instinto. Desde que segurara a primeira boneca, ela desejou ser mãe. No Ensino Médio, feira de carreiras nunca lhe interessava. Kay-Kay falara de ingressar no Exército e chamou Madora de covarde porque a ideia não a atraiu. Os sons da água do banho pararam, e a porta de plástico bateu contra a parte externa do boxe. — Temos que correr agora — sussurrou ela, atrapalhando-se com a fralda descartável, sem determinar de imediato a parte de frente e a de trás. — Não queremos que Willis fique bravo, não é? — No ar seco da manhã de junho, os cabelos dele eram um nimbo escuro, flutuando como os resquícios de doces sonhos desde antes de ele nascer. Madora deslizou a camisolinha de algodão pela cabeça do bebê e amarrou-a na parte inferior com um cordão, juntando os pezinhos. A camisola era azul, para um menino, embora não soubessem à época qual seria o sexo do bebê. Teria sido perigoso levar Linda até um médico, por isso Willis tratara de tudo. Pela perfeição desse garotinho, parecia que ele estivera certo ao dizer que um médico não era necessário. — Por todo o mundo mulheres têm bebês sem a ajuda de médicos. Durante os cinco meses no trailer, Linda nunca falara sobre o pai da criança, mesmo quando Madora lhe perguntava diretamente. Quem quer que fosse, Madora sabia que ele não merecia nada tão precioso como o cordeiro agora em seus braços. Nem Linda merecia. Willis providenciara para que ele fosse adotado por meio de um advogado especializado nessas questões, um amigo do sobrinho de um dos clientes de Willis. O advogado de adoção não fez muitas perguntas e disse a Willis que não seria necessário que Linda assinasse nenhum documento. Ele entregaria o bebê aos novos pais.

Haveria uma certidão de nascimento com o nome deles. Ele não precisaria ser alimentado imediatamente, segundo Willis; mas ela esperava que o advogado tivesse feito planos para conseguir provisões em caso de necessidade. Deveria haver outra pessoa com ele para segurar essa criaturinha e preparar uma mamadeira quando ela chorasse. Uma dor cortante atravessou Madora quando ela o imaginou amarrado a um banco frio de carro, faminto, sofrendo, tudo isso com apenas algumas horas de vida, tão novo no mundo e já passado de mão emmão como algo que se compra numa loja. Willis entrou na cozinha vestido com a calça Levi’s que ela passara para ele e a camisa de brim tão escuro quanto os olhos do bebê. Penteara os cabelos para trás e enrolara-os sobre a cabeça. Ele olhou do bebê para ela, sorriu e tirou de um gancho seu chapéu mole de caubói, feito de feltro, e o vestiu. Pela experiência de Madora, mesmo as pessoas mais atraentes tinham imperfeições, uma saliência no alto do nariz ou uma pálpebra um pouco caída; mas o rosto de Willis não tinha nenhuma dessas assimetrias. Os dois lados correspondiam-se perfeitamente, e esse equilíbrio concedia-lhe não apenas beleza, mas também uma serenidade fascinante por não haver nada que precisasse ser ajustado. Na primeira vez que o viu, ele estava de pé na frente dela, na varanda da antiga casa no deserto. Tão bonito e calmo. Ela pensou que ele devia ser um anjo. — Estou preocupada com ele — disse ela. — O advogado? Ele vai estar lá. — O bebê. — Eu o examinei. Ele está bem. — E se ele ficar com fome? — O advogado vai cuidar disso. Acabei de ligar para ele. Vamos nos encontrar em Carlsbad. — Deixe-me ir com você. — Estou cansado, Madora. Quero me livrar disso… — Ele não é isso. Ele é um menino. A expressão de Willis exprimiu que ele já ouvira o bastante.

— Passe-o para mim. Ela recuou, abaixando a cabeça. — Você devia tentar ser um pouco solidária, Madora. Fiquei acordado a noite toda. Linda acabou de ter um bebê e está desacordada, mas logo vai voltar a si e, quando isso acontecer, ela precisará de você. O bebê arqueou as costas e torceu a boca, fazendo sons de quem suga, quando Willis o retirou de Madora. Ela abriu a porta de tela. — Willis? Ele parou sob o alpendre e olhou de cara feia para ela. — Quero ter um bebê — disse ela. — Era disso que se tratava? — Sua risada era levemente irônica. — Você foi mordida pelo inseto da maternidade? — Eu seria uma boa mãe. — Ela sabia disso. — Por favor? Não me pressione, Madora.

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