| Books | Libros | Livres | Bücher | Kitaplar | Livros |

Aenir – A Setima Torre – Vol 3 – Garth Nix

A montanha parecia uma gigantesca massa de pedra cinzenta erguendo-se sobre o vale verdejante. Mas não era uma montanha. Era uma criatura de pedra. Velha, fria e imensa, gostava de ficar num mesmo lugar por centenas de anos, dormindo e sonhando com a época de seu nascimento, nos rudes tempos do começo do mundo. Como estava havia muito num mesmo lugar, a maioria dos viajantes achava que aquilo era algo fixo e permanente, parte integrante da região. Diferentemente de todo o resto de Aenir, onde as florestas andavam, as colinas brigavam e os rios mudavam seu curso quando bem entendiam. Em seus mapas, os Escolhidos do Castelo chamavam aquele brutamontes de pedra de Montanha da Pedra Fria. Todos os anos, eles vinham a Aenir e passavam semanas caçando e escravizando criaturas nativas, que levavam consigo de volta a seu próprio mundo para servir-lhes, como Espíritos-Sombra. Mas alguns Escolhidos sabiam que a Montanha da Pedra Fria não era uma montanha. Um deles tinha até descoberto como fazê-la se mover. Certo dia, ele fizera a Montanha da Pedra Fria se espichar, emitir um grande ronco e erguer-se de seu leito de pedras menores que formavam o solo do vale. Enquanto a criatura arqueava as costas, dois outros Escolhidos — parceiros do primeiro —enfiaram-se por debaixo daquela barriga feita de granito salpicado de dourado, e puseram alguma coisa num dos inúmeros buracos e cavernas que abundavam, como pústulas, nas entranhas da Montanha da Pedra Fria. Mas, para seu azar, o líder do grupo não conseguiu manter a mágica que fazia a montanha se mover. Ela arriou um pouco antes do esperado e os dois homens morreram esmagados. O objeto que esconderam na tal fenda sobreviveu, oculto na escuridão, sob seiscentos trechos de rocha sólida. Esse objeto era praticamente indestrutível. Um bloco de cristal que crescera num formato retangular e tinha aproximadamente o tamanho de um homem dos Escolhidos, sendo três vezes mais largo e tendo apenas um palmo de espessura. Mesmo na ausência de luz, sua superfície brilhava como a água refletindo a lua, uma misteriosa luminosidade prateada. Ocasionalmente, a luz podia ondular, produzindo um efeito de arco-íris e, quando isso acontecia, imagens que pareciam vivas moviam-se sobre sua estranha superfície. Ou então, coisas escritas, tanto no complexo e elegante alfabeto usado pelos Escolhidos, quanto nas runas versais dos Homens-do-Gelo. Esse objeto estranho e luminoso era o Códex dos Escolhidos que, na verdade, deveria ficar no Castelo, no alto da Montanha da Luz, no Mundo Escuro. Ele não pertencia a Aenir, e jamais deveria ter sido levado para lá. O Códex tinha inúmeros poderes, mas nenhum que pudesse ajudá-lo a escavar a pedra ou fazer com que a criatura-montanha se movesse. Todo o seu poder estava no conhecimento — reunir e difundir conhecimento. Ali, nas escuras profundezas de sua prisão rochosa, o Códex só podia usar um de seus vários poderes.


Era capaz de ver e ouvir através da mente de animais, usando-os como olhos e ouvidos. Assim que a montanha que o aprisionava se assentou, ele começou a procurar essas mentes. No primeiro ano, o Códex encontrou vermes surdos e desprovidos de olhos. No segundo, encontrou grilos cegos que ficavam escavando as muitas rachaduras e fendas que havia na montanha. No terceiro, encontrou torrões de musgo semi-inteligentes que, no entanto, não possuíam nenhumsentido que o artefato mágico pudesse compreender. Anos a fio, o Códex continuou enviando seus filamentos mentais de busca, mas só encontrava criaturas inúteis… ou nada. Entretanto, o Códex não era de desistir. Continuaria tentando por centenas ou até milhares de anos. Felizmente, não precisou de tudo isso. Vinte e dois anos depois de ter sido roubado do Castelo e posto debaixo da montanha, ele encontrou um Grugel. O Códex nunca tinha encontrado pessoalmente um desses seres antes, mas soube exatamente o que ele era quando sentiu a mente de umpequeno roedor cascudo. Ele tinha penetrado ali para comer os grilos cegos e, agora, estava voltando. Passou pela caverna onde estava o Códex enquanto subia por um túnel estreitíssimo, usando, para isso, suas patas recurvadas e erguendo a cauda igualmente recurvada como se fosse uma corda de escalada. O Códex entrou na mente do Grugel e foi com ele para o mundo exterior. Podia penetrar na mente de centenas de inteligências em nível animal, de uma vez só, ou na de uma única criatura de Aenir com inteligência humana, embora isso fosse mais difícil. Não podia, porém, entrar na mente de seres humanos de verdade. Isso tinha sido proibido por aqueles que o conceberam. Mas o Códex tinha de se ater a seu objetivo inicial, ou seja, poder ver o mundo através de umde seus olhos auxiliares. A partir do Grugel, penetrou na mente de um par de Lipts que perambulavam por ali e, depois, em todo um enxame de Froxes. E continuou arranjando olhos e ouvidos adicionais utilizando todo tipo de criaturas. Aos poucos, a percepção do Códex ia se estendendo por quase toda a superfície de Aenir. Sua presença não era, porém, constante. Às vezes, algumas criaturas morriam ou o Códex simplesmente perdia contato, como acontecia quando elas se afastavam muito de algum outro par de olhos e ouvidos seus. O tempo todo, precisava estar mantendo aquelas várias centenas de mentes ligadas à rede de espionagem formada a partir de sua escura prisão. Estava sempre na esperança de ver ou ouvir alguém perguntar o que ele queria desesperadamente responder: “Onde está o Códex dos Escolhidos?” ou “Como eu poderia encontrar o Códex?” Se essa pergunta fosse formulada, o Códex poderia usar um dos animais que controlava para guiar a pessoa que tivesse perguntado, ou para se comunicar com ela.

Mas era da natureza do Códex apenas responder a perguntas. Ele não podia agir por sua própria conta. Assim, continuava lá, na sua prisão, pensativo, observando a vida em Aenir através dos olhos de seus diversos agentes, e ouvindo através de seus vários ouvidos. Prestava mais atenção nos Escolhidos, que eram o seu povo. No Dia da Ascensão, enviaria milhares de criaturas correndo, pulando, voando e escavando a terra até o Território dos Escolhidos, para esperarem pelas pessoas do Castelo que viriam do Mundo Escuro, como todos os anos. O Códex sabia que os Escolhidos eram proibidos de vir a Aenir antes do Dia da Ascensão, mas alguns vinham, mesmo assim. Ele observava essas pessoas com uma atenção toda particular. Afinal, fora trazido para Aenir por Escolhidos que fizeram a passagem antes dessa data. O Códex não sentia realmente emoções humanas — ou, pelo menos, se convencera disso. Mas algo muito semelhante a excitação ou surpresa ondulou em sua superfície numa tarde chuvosa, quando um de seus olhos, um animalzinho achatado, peludo e com nadadeiras, conhecido como Vabe, saiu de um lago recém-formado e rastejou para uma colina. Através dos olhos do Vabe, o Códex viu uma cena inesperada. Ainda faltavam duas semanas para o Dia da Ascensão, mas já havia dois habitantes do Mundo Escuro naquela colina. Um menino e uma menina. E, o que era ainda mais estranho: o menino era dos Escolhidos e a menina era daquele Povo dos Navios que, agora, se autodenominava Homens-do-Gelo. Agindo a mando do Códex, o Vabe foi se aproximando. Não queria fazê-lo, pois havia ali muitos trovões e relâmpagos. Mas o Códex fez com que ele avançasse. Logo, o Códex pôde ouvir que o menino se chamava Tal, e a menina, Milla. Ele os viu realizar algum tipo de cerimônia que, evidentemente, consideravam importante. No meio do ritual, porém, quando ofereceram gotas de sangue à tempestade que rugia sobre suas cabeças, o Códex compreendeu o que ia acontecer. Muitos locais em Aenir eram impregnados de magia e antigas tradições arraigadas à terra. Esta era uma delas. Oferecer sangue sobre a Colina Hrigga significava convocar os Pastores de Tempestades, e eles deveriam desempenhar uma função qualquer por um preço determinado — um preço que era sempre o mesmo: uma vida. É claro que, lá em cima, nas nuvens negras, estavam dois Pastores de Tempestades. Eles seriam obrigados a responder ao chamado do sangue, mesmo que a oferta tivesse sido feita por alguém que ignorasse a tradição.

Era tarde demais para intervir. Aliás, o que o Códex poderia fazer, dispondo apenas de um Vabe? Esse animal era pouco maior que o pé do menino, e sequer podia morder. Os Vabes mascam capim. Bem devagarinho. Os Pastores de Tempestades desceram. Eram figuras gigantescas, com formas humanas, feitas de nuvem negra e de relâmpagos. O Códex ouviu quando pediram a vida que o garoto dos Escolhidos e a Garota-do-Gelo lhes haviam prometido, sem saber o que estavam fazendo. Ele bem que gostaria de entrar na mente do maior dos Pastores de Tempestades, mas sua ligação com o Vabe era muito tênue e o Códex sabia que o animalzinho não teria condições de estabelecer aquela conexão. Simplesmente, perderia o Vabe. Tudo o que podia fazer era ficar escutando. O garoto dos Escolhidos e a Garota-do-Gelo recusaram. Os Pastores de Tempestades ergueram seus punhos feitos de nuvens carregadas, de onde começaram a brotar raios. De início, pequenas fagulhas, que foram aumentando cada vez mais. Em poucos segundos, os Pastores de Tempestades lançariam os relâmpagos e varreriam os meninos da colina. O Vabe sentiu uma fome aguda. Havia uma hora que não comia nada. O Códex tentou eliminar o instinto do animal para se alimentar, buscando mantê-lo concentrado no garoto dos Escolhidos e na Garota-do-Gelo. Mas a fome do Vabe só fez aumentar. A conexão foi enfraquecendo. A visão do Códex através do animal se turvou. De repente, tudo escureceu. Capítulo 2 A chuva escorria pela colina e os relâmpagos chicoteavam a seu redor. Duas figurinhas, um garoto dos Escolhidos e uma Garota-do-Gelo, estavam ali, firmes, desafiando as grandes criaturas de nuvem que se agigantavam à sua frente. — Pedimos uma vida! — trovejaram os dois Pastores de Tempestades, e suas vozes eram tão fortes e estrondosas quanto uma rajada de vento numa tempestade. — Quem vai pagar? — Não vamos lhes dar nada! — gritou Tal, erguendo o anel de Pedra-do-Sol.

Concentrou-se nele e a pedra começou a brilhar, cada vez mais forte. O menino estava se preparando para disparar uma explosão de luz concentrada sobre os Pastores de Tempestades. A seu lado, Milla ergueu a espada de chifre de Merwin. Ela também tinha uma Pedra-do-Sol, mas não sabia usá-la muito bem. Ainda não, pelo menos. Tal desejou que a espada pudesse atravessar a estranha carne-de-nuvem dos Pastores de Tempestades, assim como cortara sombras quando eles voltaram para o Castelo. — Vocês nos chamaram! — disse o maior dos Pastores, com voz estrondosa. — Chamaram pelo sangue lançado sobre a Colina Hrigga. Devemos aceitar o que nos é oferecido e dar-lhes algo em troca. Tal julgou ter percebido um tom estranho na voz do Pastor de Tempestades. Como se ele não quisesse realmente uma vida, mas estivesse sendo forçado a exigir aquilo. Ele sabia que muitas das criaturas de Aenir viviam sob antigos encantamentos, um tipo de magia que os Escolhidos desconheciam. Talvez esses Pastores de Tempestades estivessem enfeitiçados e, por isso, fossem obrigados a tirar uma vida sempre que algum sangue fosse derramado sobre aquela colina emparticular. — Não tínhamos a intenção de chamá-los — gritou ele, em resposta. Era difícil falar, com o vento soprando no topo da colina e os respingos de chuva que ele trazia — para não mencionar os trovões que saíam dos Pastores de Tempestades e os relâmpagos que estouravam em suas mãos. — Mas chamaram — rosnou o Pastor de Tempestades. Sua frase soou quase triste. Enquanto falava, elevou ainda mais a mão — e, então, disparou um punhado de relâmpagos sobre Tal e Milla! — Cor…! — gritou Milla, mas não conseguiu terminar o que ia dizer porque o raio estourou junto a seus pés. Os meninos ficaram ofuscados e atordoados, e, depois, ensurdecidos com o estrondo do trovão que envolveu toda a colina. Tal não soube ao certo o que aconteceu em seguida. Ficou engatinhando por ali, os dedos chafurdando na lama. Tentou se levantar e enfrentar seus atacantes, respondendo com jatos de luz de sua Pedra-do-Sol. Mas não estava conseguindo ver nem ouvir nada. Deu um encontrão em Milla e caíram ambos de costas. Quando Tal tentou se levantar, sentiu que uma pressão irresistível o empurrava de volta para a lama, apertando seu peito e seus ombros com tanta força que ficava difícil respirar.

Lutou, mas foi em vão. — Milla! — gritou ele. Sua própria voz ecoou em sua cabeça, mas não lhe pareceu que a ouvisse com os ouvidos. Tampouco podia usar a Pedra-do-Sol porque não conseguia vê-la. Precisava ver a luz para se concentrar nela e submetê-la a seus desejos. Caso contrário, tudo o que conseguia era fazê-la brilhar. Se ao menos ainda tivesse a sombra-guardiã, pensou ele. Ela poderia fazer alguma coisa. Mas, agora, ela estava livre, livre porque ele já era grande o bastante para conquistar seu próprio Espírito-Sombra, para ter uma das criaturas de Aenir a seu serviço, levá-la consigo para o Castelo e… Grande o bastante para conquistar um Espírito-Sombra… Poderia tentar conquistar o Pastor de Tempestades que o estava imobilizando. Podia fazer com que essa criatura passasse a servi-lo. Talvez fosse o único jeito de salvar suas vidas. Mesmo assim, Tal estava hesitante e os pensamentos atravessavam sua mente como os relâmpagos dos Pastores de Tempestades. Um Aenirano só podia ser conquistado como Espírito-Sombra uma única vez. Seria a coisa mais importante que faria na vida. Seu Espírito-Sombra teria influência sobre a posição que ele ia ocupar no Castelo: iria ajudá-lo a alcançar a Ordem Violeta ou cair para a Vermelha. Sempre tinha pensado que observaria várias criaturas de Aenir antes de fazer sua escolha. Pesaria vantagens e desvantagens de cada uma delas. O melhor a fazer seria conversar com seus pais sobre que criatura escolher. Discutir o assunto com seus amigos. Tal nem sabia como seria um Espírito-Sombra Pastor de Tempestades. Nunca tinha visto um, nem em Aenir, nem no Castelo. Talvez dessem péssimos Espíritos-Sombra. Só que, se não conquistasse o Pastor de Tempestades, provavelmente morreria. E, assim, não haveria ninguém para salvar Gref, ou sua mãe, ou Kusi, ou para encontrar seu pai. O que Rerem teria feito nessa situação?, perguntou-se Tal.

Podia quase ouvir a resposta de seu pai, sentir a força de seus braços quando se despediram. Cuide de sua mãe e das crianças, Tal. Conto com você. Tal sentiu um soluço começando a se formar em sua garganta. Tinha falhado redondamente. Sua mãe, Graile, estava em coma. Seu irmão, Gref, estava aprisionado em algum lugar, levado por um Espírito-Sombra que, esperava ele, o Códex seria capaz de identificar. Sua irmã mais nova, Kusi, estava entregue às primas, amigas do Mestre-das-Sombras Sushin, seu inimigo declarado. Seu pai, Rerem, estava desaparecido e a única pista que tinha do que poderia ter acontecido a ele era o nome arranhado na parede de uma prisão ilegal, o fosso dos fundos do Castelo. A boca de Tal esboçou um movimento de determinação. Não ia mais falhar. Faria o que tinha de ser feito. Escolher um Espírito-Sombra não tinha a menor importância, embora ele não pudesse se impedir de sentir uma pontada de tristeza ao decidir abrir mão de umsonho precioso, acalentado há tanto tempo. Conquistaria o Pastor de Tempestades. Mas, para isso, precisava enxergar. Começou a piscar os olhos bem depressa, esperando que isso ajudasse. Com certeza, só estava ofuscado temporariamente. E se o Pastor de Tempestades o matasse, antes que ele voltasse a enxergar? Mas, então, se eles queriam apenas uma vida… Piscar os olhos ajudou mesmo. Lentamente, foi voltando a enxergar. Borrões coloridos foram se formando e se tornando mais nítidos. O Pastor de Tempestades o estava imobilizando com apenas um dedo de nuvem. O outro precisava de dois de seus três dedos para imobilizar Milla. Os braços e as mãos de Tal estavam soltos. Agora, podia ver sua Pedra-do-Sol, apesar da chuva que não parava e do vento forte que soprava ao redor dos Pastores de Tempestades. Fora da colina, já nem estava mais chovendo.

Há anos, Tal vinha praticando para conquistar criaturas de Aenir. Este era o ponto culminante de todo o treinamento dos filhos dos Escolhidos que, então, conquistavam uma criatura e levavam-na consigo de volta ao Castelo e ao Mundo Escuro, para servir-lhes como Espíritos-Sombra. Tal sabia de cor todas as fórmulas mágicas, e todos os rituais. Primeiro, precisava Demarcar os Limites. Depois, Recitar as Palavras. Finalmente, teria de Compartilhar a Sombra. Nunca imaginou que faria essas coisas deitado de costas no chão, com o dedo — bem sólido, aliás — de um Pastor de Tempestades apertando seu peito contra a lama. — Qual de vocês vai morrer? — perguntaram os Pastores, mais uma vez em uníssono. Assim, de tão perto, suas vozes eram ensurdecedoras. Tal respondeu, mas não com palavras. Em vez disso, ergueu seu anel de Pedra-do-Sol. A pedra emitiu um estreito facho de luz laranja que foi direto para o Pastor de Tempestades que estava mais perto. Ele nem pareceu notar mas, de qualquer modo, a luz não deveria fazer-lhe mal algum e, sim, assinalá-lo. Rapidamente, Tal usou aquele facho para traçar um círculo envolvendo os dois Pastores, Milla e ele próprio. Quando a luz tocou o solo, a relva e a lama adquiriram uma luminosidade alaranjada. Como o Pastor estava atrapalhando, o círculo saiu um pouco torto. Com ele, Tal certamente não tiraria uma boa nota se estivesse no Lectorium. Mas era um círculo de luz completo e Tal tinha, então, concluído a primeira etapa da Conquista de um Espírito-Sombra. Tinha feito a Demarcação dos Limites. — O que está fazendo? — perguntou um dos Pastores de Tempestades. Ele não parecia incomodado. Apenas curioso. — Você só precisa decidir qual dos dois deve morrer. Desta vez, Tal falou. Mas estava recitando uma fórmula mágica, e não respondendo à pergunta.

Ele não sabia o que significavam aquelas palavras, pois tinha decorado tudo, e não era uma língua usada pelos Escolhidos. Por isso, tinha treinado a Recitação das Palavras quase todo dia, durante anos. A Conquista de um Espírito-Sombra era o ato que assinalava o início de sua vida adulta, e o tipo e a força do Espírito-Sombra que conseguisse teriam grande influência sobre sua possibilidade de ascender através das Ordens do Castelo. Tal tirou da cabeça uma imagem que lhe ocorreu subitamente: enquanto ia passando pelos Corredores Vermelhos, todos tentavam disfarçar o riso com as mãos e sussurravam: “Olhem só o Espírito-Sombra dele. Ele conquistou um Pastor de Tempestades. Dá para acreditar?” — Mestrel oi Tel, Asteyr, Mestrel oi Lameth, amsal gebborn yeo nebedi… — O que você está fazendo? — berrou Milla. E avançou com tanta violência que o Pastor que a estava segurando teve de usar seu terceiro e último dedo para imobilizá-la outra vez. — Você não pode dizer isso! — O quê?! — exclamou Tal, chocado com aquele rompante inesperado. Naquele instante, perdeu o fio da fórmula. As palavras tinham de ser pronunciadas com toda exatidão, sem pausas. Tinha sentido o poder que ia se criando através delas, e soube que seria capaz de conquistar o Pastor de Tempestades. Agora que o poder das palavras tinha se dissipado, a delimitação também se desmanchou. Milla tinha estragado sua única chance de conquistar o Pastor de Tempestades. Se tivesse conseguido, faria seu novo criado atacar o outro Pastor. Eles não precisariam escolher quem ia morrer. — Você estragou tudo! — gritou Tal. Tentou se atracar com Milla, mas o dedo de nuvem o segurou com firmeza. — Estragou o quê? — perguntou Milla, furiosa. — Como você aprendeu a Língua das Matriarcas? — Vocês têm que decidir — interrompeu o menor dos Pastores de Tempestades. — Um dos dois deve morrer… — Cale a boca! — berrou Tal. Surpreendentemente, o Pastor se calou. — O que você quer dizer com isso? Língua das Matriarcas? Eu estava Recitando as Palavras. Estava tentando conquistar o Pastor de Tempestades e salvar sua estúpida vida! — Era a Língua das Matriarcas, o Dialeto Antigo — insistiu Milla. — A Oração a Asteyr, que só pode ser feita por uma Matriarca Mãe. Qualquer outra pessoa é proibida de dizê-la.

— Como você sabe que era isso que eu estava dizendo? — perguntou Tal. Os dois Pastores de Tempestades balançaram a cabeça, achando que ele tinha feito uma boa pergunta. — Já ouvi essa oração — disse Milla, baixando o tom de voz. — Cinco vezes. A última foi há meio circuito apenas, quando Olof Nada-Neve matou Ifrim Sem-Nariz enquanto ele dormia. Olof não queria aceitar o julgamento da Matriarca Mãe e ela precisou dizer a oração. — O que aconteceu? — rosnou o menor dos Pastores. Ele já não tinha mais relâmpagos nas mãos e seus olhos estavam mais brilhantes. — A Matriarca-Mãe invocou Asteyr, e ela fez Olof ir para o Mar Vivo — disse Milla. — Ele não foi esmagado pelos Selskis, mas foi atingido por uma âncora e ficou se arrastando no Gelo por muitos trechos, até morrer. Tal estava mudo. Asteyr era uma das palavras da fórmula da conquista, repetida diversas vezes. Mas como era possível que a fórmula de conquista dos Escolhidos fosse igual à Oração a Asteyr, dos Homens-do-Gelo? — Tudo isso é muito interessante — grunhiu o maior dos Pastores de Tempestades. — Mas vocês ainda têm que decidir. Qual de vocês vai morrer?

.

Baixar PDF

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Baixar Livros Grátis em PDF | Free Books PDF | PDF Kitap İndir | Telecharger Livre Gratuit PDF | PDF Kostenlose eBooks | Descargar Libros Gratis |