A formação histórica do português brasileiro deu-se em complexo contexto de contato entre línguas. Dentre as diversas situações de contato havidas, a do português com línguas africanas assume maior relevância por ter sido generalizada no tempo e no espaço. Africanos e afro-descendentes, no período que se estende do século XVII ao século XIX, correspondem juntos a cerca de 60% da população brasileira (cf. MUSSA, 1991). Contudo, a escrita da história lingüística deste que é o mais expressivo segmento formador da população brasileira era tarefa que se colocava no plano de uma reconstrução quase que exclusivamente a partir de ‘indícios’, uma tarefa não para historiadores, mas para arqueólogos da língua portuguesa (cf. MATTOS E SILVA, 2002). No ano de 2000, Oliveira (2003 e 2006) localizou na Sociedade Protetora dos Desvalidos – irmandade negra fundada tardiamente em Salvador no ano de 1832 – um expressivo e raro acervo de documentos escritos por africanos e negros brasileiros forros. Tais documentos são de fundamental importância para a reconstrução da história lingüística brasileira por, pelo menos, dois aspectos: 1. São fontes que, se supõe, devam permitir uma reconstrução significativamente mais aproximada das chamadas normas vernáculas do português brasileiro. 2. Desvelam, nas investigações sobre a história da cultura escrita no Brasil, um campo de estudos ainda quase por explorar: o dos caminhos trilhados por negros livres ou libertos, integrantes de grupos sociais subalternos, para aprenderem a ler e escrever. Os dois aspectos acima referidos são os pontos que merecerão destaque, neste capítulo introdutório do África à vista, livro, cujo objetivo principal é a divulgação de dez estudos sobre a morfossintaxe de um conjunto de documentos – sobretudo atas –, escritos em português por africanos na Bahia do século XIX1 . 1. A importância da localização de textos escritos por africanos e afro-descendentes para a escrita da história do português brasileiro Calcula-se que, quando da chegada dos portugueses ao Brasil, aproximadamente 1.175 línguas (cf. RODRIGUES, 1993) seriam faladas pela população indígena. Embora tenham aportado no Brasil em1500, o início do processo de transplantação da sua língua ocorrerá, sensivelmente, a partir da década de 1530, quando o rei D. João III – por isso mesmo chamado de o colonizador – traça, com a divisão do país em Capitanias Hereditárias, uma política para povoar e administrar as novas terras. Também na década de 1530, dá-se início ao tráfico de escravos que para aqui trará falantes de, aproximadamente, 200 a 300 línguas (PETTER, 2006). Passados, hoje, mais de 500 anos de muitas e diversas histórias de contato lingüístico, não há língua africana sendo falada como nativa por nenhuma comunidade lingüística brasileira, sobrevivem cerca de 150 a 180 línguas indígenas, faladas por uma população de aproximadamente 260.000 índios, e é a esmagadora maioria da população brasileira falante nativa de uma língua que é continuadora histórica da língua portuguesa e a que a lingüística brasileira contemporânea tem designado de português brasileiro. Como se deu a transplantação da língua portuguesa para o Brasil; como se deu a sua implantação no território brasileiro; como se deu a formação do português brasileiro e, finalmente, como se deu, emparalelo ao processo de formação, a generalizada difusão do português brasileiro no território nacional são questões fundamentais para uma história lingüística do Brasil Como historiadores da língua portuguesa têm respondido às questões acima referidas é o que se discutirá a seguir. Segundo Teyssier (1997 [1982], p. 94-95), Durante muito tempo, o português e o tupi viveram lado a lado como línguas de comunicação. Era o tupi que utilizavam os bandeirantes nas suas expedições.
Em 1694, dizia o Pe. Antônio Vieira que “as famílias dos portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje umas com as outras, que as mulheres e os filhos se criam mística e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala é a dos índios e a dos portugueses a vão os meninos aprender à escola”. Na segunda metade do século XVIII, porém, a língua geral entra em decadência. Várias razões contribuem para isso, entre as quais a chegada de numerosos imigrantes portugueses seduzidos pela descoberta das minas de ouro e diamantes e o Diretório criado pelo marquês de Pombal em3 de maio de 1757, cujas decisões, aplicadas primeiro ao Pará e ao Maranhão, se estenderam, em 17 de agosto de 1758, a todo o Brasil. Por elas proibia-se o uso da língua geral e obrigavase oficialmente o da língua portuguesa. A expulsão dos jesuítas, em 1759, afastava da colônia os principais protetores da língua geral. Cinqüenta anos mais tarde, o português eliminaria definitivamente esta última como língua comum, restando dela apenas um certo número de palavras integradas no vocabulário português local e muitos topônimos. Em Castro (1992, p. 31-32), lê-se: Perante a radical eliminação da língua no Brasil e a imposição do ensino do português segundo a gramática de Lobato, quem hesitará em imputar a responsabilidade pela homogeneidade lingüística brasileira a gesto político do Marquês de Pombal? Finalmente, Mattos e Silva (1993, p. 83) afirma: A partir da segunda metade do século XVIII, uma série de fatores de história externa conduzem à definição do Brasil como país majoritariamente de língua nem indígena nem africana. O multilingüismo menos ou mais generalizado, a depender da conjuntura histórica local nos séculos anteriores, localiza-se e abre, então, o seu caminho o português brasileiro. Em 1775, com o Marquês de Pombal, se define explicitamente para o Brasil uma política lingüística e cultural que fez mudar de rumo a trajetória que poderia ter levado o Brasil a ser uma nação de língua majoritária indígena, já que os dados históricos informam que uma língua geral de base indígena ultrapassara de muito as reduções jesuíticas e se estabelecia como língua familiar no Brasil eminentemente rural de então. O Marquês define o português como língua da colônia, conseqüentemente obriga o seu uso na documentação oficial e implementa o ensino leigo no Brasil, antes restrito à Companhia de Jesus, que foi expulsa do Brasil. O propósito da transcrição das três citações acima não é outro senão destacar a centralidade atribuída ao Marquês de Pombal – ou melhor, ao período pombalino, dito de remodelação iluminista – na definição da história lingüística do Brasil. Nas citações acima, evidenciam-se duas relações de causalidade (cf. LOBO, 2001, p. 63): a. em primeiro lugar, considera-se que a política lingüística traçada pela metrópole exerceu um papel fundamental favoravelmente à definição do português como língua hegemônica no Brasil; b. em segundo lugar, considera-se que o modelo de ensino adotado, além de ter sido um dos fatores responsáveis pela consolidação do português como língua dominante, teria ainda conduzido à homogeneização do português brasileiro. Se se admitir que, para ter sido eficaz, a política lingüística pombalina devesse ter estado sob a tutela de um sistema eficaz de escolarização, não será difícil concluir que os esforços nesse sentido terão sido quase inócuos, devendo-se buscar outras explicações para a consolidação do português como língua hegemônica no Brasil. Conforme Freire (1993), historiadora da educação, para o longo período que se estende do século XVI a 1850, é mais apropriado falar-se da história do analfabetismo, e não da alfabetização no Brasil. Ainda segundo a mesma historiadora, para o período pombalino, em particular, houve um retrocesso, uma vez que o esfacelamento do sistema escolar jesuítico não deu lugar a um sistema alternativo e eficaz de ensino, com o agravante de que, no período de elaboração das reformas educacionais pombalinas, período que se estende de 1759 a 1772, simplesmente deixou de haver escolas no Brasil. A questão da língua geral ou das línguas gerais, foco central das políticas pombalinas, é, reconhecidamente, um dos temas que ainda hoje demandam muita investigação. Na literatura dedicada à história lingüística do Brasil, a expressão língua geral é polissêmica, sendo empregada: a) para designar a língua falada pelos tupinambás na costa no século XVI – o que se convencionou chamar de língua geral da costa; b) para designar a língua falada pelos kariris, supondo-se que essa língua, em área interiorana do Nordeste, no século XVII, teria, assim como o tupinambá na costa, no século XVI, sido a língua de contato entre portugueses e índios; c) para designar a língua indígena codificada gramaticalmente pelos jesuítas no século XVI; d) para designar um possível pidgin ou crioulo formado a partir do contato entre portugueses e índios e índios falantes de línguas diversas ou mesmo formado anteriormente à chegada dos portugueses e e) finalmente, apenas para designar duas línguas de origem indígena – a primeira, de origem tupiniquim, falada de início em São Paulo e posteriormente – tendo sido levada pelas bandeiras – em Minas Gerais, no Sul de Goiás, no Mato Grosso e no Norte do Paraná; a segunda, de origem tupinambá, falada de início no Pará e no Maranhão, e, posteriormente, na Amazônia, acompanhando a expansão portuguesa na área. A última das acepções referidas é aquela a que, de acordo com Rodrigues (2004), se deveria limitar o emprego da expressão lexicalizada língua geral, respeitando-se o sentido bem definido que a expressão teria adquirido no Brasil, nos séculos XVII e XVIII, quando seu uso teria estado marcadamente associado a situações em que “a miscigenação em grande escala de homens europeus com mulheres indígenas teve como conseqüência a rápida formação de populações mestiças, cuja língua materna foi a língua indígena das mães e não a língua européia dos pais” (p.
01). Tais situações se teriam limitado a São Paulo, no século XVI, e ao Pará e Maranhão, no século XVII. Assim, propõe que a expressão língua geral designe um produto especial de uma particular história de contato lingüístico que se observou na América do Sul – além do Brasil, também no Paraguai –, produto este formado em condições nitidamente distintas das que permitiram a formação de línguas pidgin e crioulas, já que a transmissão lingüística, nas comunidades mestiças referidas, se teria feito sem interrupção, sem mudança de língua. Não é propósito deste texto discutir a pertinência da proposição que distingue língua geral como uma classe especial de línguas resultante de contato lingüístico, e que seria distinta de outras, tanto do ponto de vista sociolingüístico, quanto do ponto de vista estrutural. Antes, interessa aqui ressaltar o fato de que, se o uso da expressão língua geral deve limitar-se aos dois contextos referidos por Rodrigues, parece ser pouco provável que, em meados do século XVIII, uma língua geral ‘rivalizasse’ com a língua portuguesa pela hegemonia lingüística no Brasil. Note-se que o Diretório do Marquês de Pombal, datado de 3 de maio de 1757, proibindo o uso da língua geral e obrigando oficialmente o da língua portuguesa, se aplicou primeiro ao Maranhão e ao Pará; só posteriormente, em 17 de agosto de 1758, é que as decisões se estenderam ao restante do Brasil (TEYSSIER, 1997 [1992], p. 95). No texto de 1993, de Mattos e Silva, antes referido, diferentemente dos dois outros autores citados – Teyssier e Castro –, que se ativeram à política pombalina, a autora também indica, ainda que sem uma ênfase especial, a demografia diacrônica brasileira como um fator relevante a se considerar na elucidação da questão em foco – ou seja, a questão da generalizada difusão da língua portuguesa. Embora discordando da idéia de que a história das línguas humanas seja uma história essencialmente demográfica, já se mostrava então tocada por Mussa (1991), no sentido de inferir correlatos lingüísticos a partir de painel reconstitutivo da história da formação da população brasileira. Assim, em texto de (2004 [2000]), são justamente argumentos extraídos de dados de demografia histórica – aliados a outros extraídos de dados de mobilidade geográfica e social e dados da história da escolarização – que passarão a embasar a tese de que africanos e afro-descendentes não apenas foram os principais difusores da língua portuguesa no Brasil, mas foram também os formatadores da sua variante social majoritária, o chamado português popular brasileiro. Ou seja, a larga predominância de africanos e seus descendentes no conjunto da população do Brasil colonial e póscolonial, a presença constante de escravos nas grandes frentes de economia da Colônia, a mobilidade geográfica dos escravos em decorrência da vida econômica de seus senhores e da economia brasileira e os inúmeros e multifacetados papéis pelos escravos desempenhados, tanto nos centros urbanos, como rurais do país, esses seriam os fatores responsáveis pela generalizada difusão do português popular brasileiro; quanto à sua particular formatação, teria decorrido do fato de esse contingente de africanos e afro-descendentes ter adquirido o português em condições imperfeitas. A mudança lingüística, objeto central da lingüística histórica, opera-se no plano da fala. Lidam, pois, os historiadores das línguas particulares com o problema de terem de reconstruir a história das línguas a partir de textos escritos – textos que, por suposto, abstraem a variação e buscam não revelar as mudanças que se operam nas línguas. Coloca-se, assim, para a reconstrução da história do português popular brasileiro, o problema das fontes, ou seja, o problema de se localizar, para o passado, textos escritos por indivíduos pouco letrados, pertencentes a estratos sociais subalternos e, mais centralmente, coloca-se – ou se colocava – o tão proclamado problema da inexistência de textos escritos por africanos e afro-descendentes durante o período da escravidão. Em artigo de 2001, “A variedade lingüística de negros e escravos: um tópico da história do português no Brasil,” Alkmim assim se manifesta sobre o problema referido: “Infelizmente ainda não se descobriu nenhum documento do linguajar que eles falavam no Brasil, nos primeiros séculos”. Essa afirmação de Serafim da Silva Neto a respeito da ausência de documentação sobre a fala de negros e escravos no Brasil colonial é bem conhecida. E é de fato impressionante a falta de registros históricos sobre o tema deste trabalho: parece ter havido uma conspiração por parte daqueles que conviveram com a numerosa população de origemafricana trazida para o Brasil, a partir do século XVI, para trabalhar como mão-de-obra escrava. Não faria sentido nenhum reclamar da ausência de documentação sistemática, de registros organizados e consistentes. A falta de sentido de se ‘reclamar de ausência de documentação sistemática, de registros organizados e consistentes’ a que se refere a autora, se explicaria, certamente, pelo fato de a escolarização de negros escravos ter sido totalmente proibida no Brasil durante a escravidão. Não só entre lingüistas, mas também entre historiadores, se revela, se não um total, um quase total desconhecimento de documentos escritos por negros. Mattoso (1990, p. 113), ao pronunciar-se sobre o assunto, afirma: Senhores e curas que resolvem ensinar a leitura e a escrita a escravos transgridem as regras estabelecidas e são poucos. Eis porque o escravo brasileiro é um desconhecido, sem arquivos escritos. Faltam-nos as “Lembranças” ou “Memórias de Escravos,” tão numerosas no Sul dos Estados Unidos, que poderiam ter contado com toda sua carga afetiva a vida desses homens e mulheres no cativeiro 2 . Em Reis (1997, p.
12), porém, já se lê o seguinte: Os estatutos das confrarias, chamados compromissos, e outros documentos constituem uma das poucas fontes históricas da era escravocrata escrita por negros ou pelo menos como expressão da sua vontade. As irmandades [negras], aliás, produziram muita escrita 3 . Para Reis, não seria o escravo brasileiro ‘um desconhecido, sem arquivos escritos’. Contudo, ao se referir aos acervos das irmandades negras, não dá uma indicação precisa quanto ao fato de os documentos que delas se preservaram terem sido efetivamente escritos por negros ou serem apenas expressão da sua vontade. Finalmente, no brasilianista Schwartz (2001, p. 47-48), colhe-se a informação de que existiriamescritos ou depoimentos de escravos ou ex-escravos, embora raros: Ao contrário da situação dos Estados Unidos, onde existem inúmeras narrativas de escravos e onde foram criadas, com o patrocínio do governo, coleções de testemunhos de escravos que depois analisadas, os escritos ou depoimentos de escravos ou ex-escravos são raros no Brasil. Mas existem alguns (…). Entre os mais interessantes desses depoimentos de escravos, figura a longa entrevista realizada em 1982 por Maestri Filho (…) num hospital de Curitiba comMariano Pereira dos Santos, ex-escravo. Tendo sido os negros escravos proibidos de freqüentar escolas durante todo o período da escravidão, o seu letramento terá, necessariamente, para o referido período, ou ocorrido em espaço extra-institucional ou, se em espaço institucional, ou outro(s), mas não a escola. A propósito, não se pode deixar de mencionar aqui que também para as mulheres, no período colonial, não havia ensino institucionalizado. A casa, os recolhimentos e os conventos foram os espaços em que, até 1827, com a primeira lei de instrução pública, se determinou a criação das escolas de primeiras letras ou pedagogias, único nível do ensino escolarizado a que as meninas podiam ter acesso. Ainda a propósito de negros e mulheres, também não se pode deixar de mencionar a coincidência de dois depoimentos – o do viajante francês Le Gentil de La Barbinais, no século XVIII, referindo-se às religiosas do Convento de Santa Clara do Desterro, em Salvador, e o do bispo D. Azeredo Coutinho, no século XIX, referindo-se às moças do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, em Recife –, depoimentos que revelam uma surpreendente e por eles recriminada, proximidade entre a fala de mulheres iletradas ou semiletradas da elite e a fala dos escravos (cf. LOBO, 2001, p. 162-165). A história do letramento de negros deve responder a questões diversas, tais como onde aprenderam a ler e escrever; quando aprenderam a ler e escrever; quem os ensinou a ler e escrever; por que aprenderam a ler e escrever; como liam e escreviam; o que liam e escreviam; para quem liam e escreviam; que tipos de textos liam e escreviam e, mais centralmente, a questão de saber quem aprendeu a ler e escrever. Fundamentalmente, o que se pretende, a seguir, é caracterizar os seis africanos autores dos textos analisados nos capítulos subseqüentes. Para tal, dois aspectos serão priorizados: em primeiro lugar, o levantamento de indícios que permitam identificar as vias para a alfabetização e letramento de negros – escravos, livres ou libertos – e, em segundo lugar, a caracterização das irmandades negras – em particular a Sociedade Protetora dos Desvalidos, de que os referidos africanos são fundadores – como sendo, muito provavelmente, as principais agências de alfabetização e letramento de negros no Brasil durante o longo período da escravidão. 2. Africanos, negros livres e libertos no mundo da cultura escrita – Bahia, século XIX São 6 os indivíduos que deixaram testemunhos autógrafos em que se esteiam os trabalhos do presente livro. Se Gregório Manuel Bahia, José Fernandes do Ó, Luís Teixeira Gomes, Manuel da Conceição, Manuel do Sacramento e Conceição Rosa e Manuel Vítor Serra são africanos, nada mais natural pensá-los como escravos e, por conseguinte, que podem ter se apropriado da faculdade das letras ainda enquanto indivíduos mantidos sob o cativeiro. Desse modo, inevitavelmente, há de se buscarem indícios sobre como escravos se apropriaram da leitura e da escrita em tempos em que, do ponto de vista legal, não podiam freqüentar instituições formais de ensino, restritas até mesmo para brancos. Avistem-se, inicialmente, as palavras da historiadora Kátia Mattoso (2001 [1982], p. 113): A educação escolar do escravo é totalmente proibida no Brasil e os próprios forros não têm o direito de freqüentar aulas. Esta proibição será mantida durante toda a época da escravidão, mesmo durante a segunda metade do século XIX, em plena desagregação do sistema servil.
Senhores e curas que resolvem ensinar a leitura e a escrita a escravos agridem as regras estabelecidas e são poucos. Eis porque o escravo brasileiro é um desconhecido, sem arquivos escritos. Essa mesma historiadora, em outro estudo (1992, p. 200-201), analisou o primeiro censo oficial feito para o Brasil, datado do ano de 1872, mas lhe interessaram somente os dados concernentes à Bahia. A população escrava no Estado estava à volta de 176.824. Desses, 62 sabiam ler e escrever. Quanto ao contingente masculino – 98.094 indivíduos – 47 foram declarados como alfabetizados; só três, contudo, viviam na cidade de Salvador (na Paróquia do Pilar), os demais estavam assim localizados: 4 em Camamu, 2 em Caravelas, 1 em Viçosa, 2 em Entre Rios, 1 em Purificação, 1 em Itapicuru, 1 em Pombal, 1 em Santa Isabel do Paraguaçu, 3 em Caetilé, 2 em Monte Alto, 1 em Rio de Éguas, 1 em Xique-Xique, 1 no distrito de Cachoeira, 3 no de Santo Amaro, 7 no de Tapera e 13 no de Nazaré. Entre as mulheres escravas – recenseadas em torno de 78.730 – 15 eram alfabetizadas: 1 emItapecuru, 2 em Xique-Xique e 12 no distrito de Nazaré. É nesse último local, como se pode observar, que se concentrava o maior número de escravos letrados: treze homens e doze mulheres. Seriam escravos de um mesmo dono? Isso o censo não informa, mas Mattoso (1992, p. 201) assevera que o aprendizado da leitura e da escrita, pelo menos para esses 25 privilegiados, se fez na casa do senhor. Andrade (1988, p. 146) observa, em sua pesquisa sobre 6.974 escravos urbanos da cidade de Salvador, entre o período de 1811 e 1860, que apenas oito apresentaram, ao lado dos seus nomes, a observação de que sabiam ler, escrever e contar, portanto menos de 1% da população escrava estudada pela historiadora. A mesma situação identificada por Costa (1997), também para o século XIX, em São Paulo. Segundo ela, que trabalhou com diversas fontes referentes a escravos, era um ou outro que sabia ler e escrever. Aliás, quando isso acontecia, os jornais que notificavam fugas de escravos ressaltavam tal ‘qualidade’. Vale a pena ler dois desses anúncios transcritos por Costa (1997, p. 191): Fugiu ontem da casa do Sr. Savério Rodrigues Jordão, um escravo de nação de nome Augusto, cinqüenta anos de idade, alto, testa larga e bem barbeado. Sabe ler e escrever e é bem falante. É ótimo cozinheiro de forno e fogão.
Quem o apreender e o levar a seu senhor será gratificado. (Diário de São Paulo de 12 de agosto de 1870). Gratifica-se com 100$000 a quem entregar a Estanislau de C. P. o escravo Inácio de 30 anos de idade, mais ou menos, bem preto, barbado, boa dentadura, rosto comprido, nariz afilado, altura regular, ladino, olhos avermelhados, gosta de tocar viola, sabe ler, é natural da Província da Bahia. (A Província de São Paulo de 15 de julho de 1879). Ressaltar, ao lado dos nomes e características físicas dos escravos, o fato de que sabiam ler ou escrever, ou, ainda, as duas habilidades, parece mostrar que, para a própria sociedade de então, havia, de certa forma, a consciência de que isso era raro, ou seja, diante do mar de analfabetismo emque estavam mergulhados os escravos, quando ocorriam casos excepcionais de algum que sabia ler e escrever, isso o individualizava perante seus pares e servia-lhe, por conseguinte, como marca identificadora. Se há indícios de que escravos se alfabetizassem – poucos, que se registre – e, como já se informou, provavelmente não pelos meios formais, quais teriam sido os caminhos percorridos por essa parcela da população que, de alguma maneira, conseguiu alguma habilidade na escrita e na leitura? Discutem-se, a seguir, algumas hipóteses. 2.1. Alfabetização e letramento de escravos Um provável caminho foi apontado pela historiadora Kátia Mattoso (1992), quando diz que a aprendizagem da leitura e da escrita, por parte de escravos, tenha, talvez, se efetuado na casa do senhor. Portanto, para uma reconstrução do caminho percorrido por escravos para se alfabetizarem, tem que ser levada em consideração a sua relação com as famílias dos senhores. Trata-se, como é óbvio, de percurso difícil de ser reconstruído, uma vez que essas relações, estabelecidas dentro dos casarios, não deixaram, quanto ao aspecto que se busca, registros em outros lugares da sociedade passada. Os estudos de história social, entretanto, parecem deixar claro que as relações mais ‘afetuosas’ entre os escravos e as famílias dos senhores tinham mais chances de se estreitar com os chamados escravos domésticos, ou seja, aqueles que ocupavam lugares de trabalho dentro dos domicílios. Tais relações seriam mais raras com os escravos urbanos, uma vez que viviam a trabalhar nas ruas, em várias atividades comerciais, como ambulantes, carregadores etc., apenas repassando o ganho obtido ao seu dono, e também com os escravos rurais, porque as atividades agrícolas não possibilitavam contatos mais diretos entre eles e os senhores. Desse modo, dos grupos de escravos mencionados – os domésticos, os urbanos e os rurais –, foram os primeiros, talvez, os mais prováveis a estabelecer relações, além de trabalhistas, com a família do senhor. Mesmo os que se denominam como escravos domésticos não podem ser considerados como um todo homogêneo. Guarde-se que, mesmo estando todos na esfera do labor doméstico, havia cargos, por assim dizer, mais nobres que outros. Isso, ao que parece, se refletia nas relações entre senhores e escravos. Explicando melhor: dentro do mesmo espaço de convívio, um carregador de dejetos não tinha o mesmo ‘prestígio’ que uma mucama ou um escravo tido como ‘braço direito’ de um senhor. Portanto, não será desarrazoado considerar que alguns postos possibilitariam um contato mais afetivo com a família senhorial e, conseqüentemente, que a seus ocupantes fossem, por causa disso, facultada a oportunidade de alfabetização, mesmo que rudimentar. Anna Ribeiro de Goes Bittencourt (1992, v. 1, p. 33) conta que, em sua casa, aliado ao trabalho desempenhado pelas escravas, sua mãe contava-lhes histórias para motivá-las no labor: “Minha mãe falava-lhes benevolamente, muitas vezes contando-lhes histórias, quase sempre tiradas da Bíblia, emque era muito versada.
” De sua parte, esse ato despertava nas escravas a vontade de ouvi-las freqüentemente: …chamando eu, em certa ocasião, uma ex-escrava, há muito alforriada, para auxiliar as criadas de casa em um trabalho a que eu assistia, disse-me ela: – Porque vossemincê não conta uma história, como fazia Iaiá quando cosiam ao pé dela? Assim a gente não tinha sono nem preguiça de costurar. – E você lembra-se dessas histórias? Perguntei-lhe. – Ora se me lembro! Era a história de José de Egito, de Jó e outras, todas muito bonitas. E, fazendo-lhe algumas perguntas, vi não só que as guardava de memória, porém que as havia bem compreendido. (BITTENCOURT, 1992, v. 2, p. 33-34) Despertado o desejo pela leitura, teria este se estendido para o escrever e ler por conta própria? E, se assim o fosse, a ‘bondosa’ mãe da escritora, tão afeiçoada a seus escravos e, em conseqüência, muito repreendida por isso, respaldaria esses anseios? Nas suas memórias, Anna Ribeiro de Goes Bittencourt (1992) não deixa pistas sobre o assunto. De qualquer modo, narra um episódio em que fica claro o peso da afeição por escravos que se alfabetizaram na Bahia do século XIX: Como eu apresentasse sensível melhora na vista, escreveu minha mãe um alfabeto com letras grandes e bem vivas para ensinar. Uma mulatinha de minha idade, destinada a ser minha ama de quarto, foi minha companheira de estudo por julgarem que assim eu não me aborreceria. Lembro-me dela com saudades; chamava-se Felicidade e morreu aos dez anos. Muito afeiçoada a mim, era, apesar da raça africana, que tinha já muito longe, mais branca do que eu e até loura. Um dos luxos das moças ricas daquele tempo era ter uma criada de quarto de cor branca. (v. 2, p. 69-70) Se se considerar que a população brasileira, em sua grande maioria, estava, naquela altura dos acontecimentos narrados pela escritora – 1853, uma vez que nascera em 1843 e a passagem emquestão aconteceu quando contava com 10 anos –, mergulhada no analfabetismo, ser alfabetizada, sem dúvida, é que foi um luxo para Felicidade. E para tal, não concorreu apenas a afeição que a sua ama lhe tinha, mas também o distanciamento dos traços que pudessem lembrar a sua origem africana.
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