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Agora e Que Sao Elas – Paulo Leminski

Aos 18 anos, pensei ter atingido a sabedoria. Era baixinha, tinha sardas e tirei-lhe o cabaço na primeira oportunidade. Não ficou por isso. A lei falou mais forte. E tive que me casar, prematuro como uma ejaculação precoce. Nem tudo foram rosas, no princípio. Nos pulsos ainda me ardem as cicatrizes de três malssucedidas tentativas de suicídio. Mas eu não posso ver sangue. Sobretudo, quando meu. Assim decidi continuar vivo. Principalmente porque o mundo estava cheio delas. De Marlenes. De Ivones. De Déboras. De Luísas. De Sônias. De Olgas. De Sandras. De Edites. De Kátias. De Rosas. De Evas. De Anas. De Mônicas. De Helenas.


De Rutes. De Raquéis. De Albertos. De Carlos. De Júniors, De… (ihh, acho que acabo de cometer um ato falho). De Joanas. De Veras. De Normas. 2 De Norma, me lembro bem. Como esquecer com quantas bocas se faz uma daquelas, aquela multidão de abismos em que ela consistia? Aquilo sim é que era uma buceta convicta. Cair ali era como, bem… 3 Com aquela cara de homem fingindo estar interessado no papo de uma mulher apenas porque está com vontade de comê-la, com aquela cara de mulher costurando e bordando pensamentos apenas porque está a fim de ser comida por ele, cheguei, caprichei, relaxei, lembrei tudo que tinha aprendido em Kant e Hegel, repassei toda a teoria dos quanta, a morfologia dos contos de magia de Propp, o voo do 14-bis, cheguei e não perdoei: — Tem fogo? 4 O tem fogo saiu meio esquisito. Nem parecia que eu tinha estudado três anos de mecânica celeste, dois de escultura em metal e tinha sido, podem perguntar, um jogador pra lá de razoável na minha equipe. Não, balido baldio, urro estrangulado, você parecia um tem fogo imbecil qualquer, um tem fogo dito por um corretor de qualquer uma dessas coisas que precisam de correção, a vida emocional dos cangurus, as problemáticas trajetórias de Urano, os particípios passados dos verbos da segunda conjugação. Apesar de você, jamais vou esquecer, deus nenhum me deixe, o fatal é que cheguei e disse aquilo, aquele palavrão que significava a irremediável intromissão da minha vida na vida daquela figura, gesto cujas consequências os presentes vão poder, a seguir, apreciar em suas devidas dimensões. 5 Uma dessas confusões sorridentes onde as pessoas riem porque sabem que vão morrer no fim, e todo mundo disfarça a evidência de que tudo já está mortinho da silva, o vaso no centro da sala, a árvore estampada na cortina, e até os Stones na radiola já exalam aquele fedor típico de múmia de faraó da vigésima dinastia, uma festa dessas em que alguém te chega, cigarro ereto, e fulmina: — Tem fogo? Seriam Stones ou Ella, como lembrar, tantas bucetas depois, como evitar este ponto de interrogação? 6 — Tem fogo? Isso lá é jeito de chegar numa dona, conversar com uma senhora, hein, seu isso e aquilo, que pensou ter atingido a sabedoria? Mulher tem que ser abordada com vinte e cinco canhões de bolhas de sabão, princesa e flor do oriente, rosa de incenso, filé-mignon da parte esquerda do meu cérebro, abre os braços, isto é, os pássaros, isto é, faça-se a luz, paradise me now… 7 — A juventude pode acabar com uma pessoa. — Eu já vi essa religião. Deus morre durante a viagem. — Jotaerre?, dos Jotaerres de Birmingham!, mal posso acreditar que estou aqui, eu devo estar sonhando. — Vendo o apetite com que uma mulher chupa teu pau, nunca te ocorreu que pode não ser uma má ideia? — A lei, meu caro, só proíbe certos crimes porque são ótimos negócios. — Inteligência em homem é que nem pau duro, mulher alguma resiste. — O crédito? É o câncer do mundo. — Qual é a ilusão que você me recomenda? — A inflação mundial, dinheiro produzindo dinheiro, sem passar pela produção, abstrações produzindo abstrações, sistemas puros, quero dizer, sem relação alguma com a realidade, porra, você me entende! — Milhões, milhões, milhões, um começou a gritar, uma ideia é a coisa mais cara que existe. E virando para todo mundo, todo mundo tinha cara, a começar por mim, de pânico, com aquelas luzes quem conseguia não ficar muito pálido, o pavor abaixo da pele, a bomba, a última guerra, o fim de. A ideia mais cara que existe. 8 Entrei no salão principal, um fósforo aceso no interior da luz absoluta, adeus, matéria! A luz que sopra em cada partícula um vento em cada molécula que um vento sopra em cada instante em cada momento transformando tudo em luz, um halo só, a luz suprema de uma festa, qualquer festa, bemvindo, brilho, os sentidos que vão morrer te saúdam! A última coisa que vi, claro que foi, quem mais? Falava numa roda de amigas, aquele ligeiro tédio de quem diz, não, querida, isso é impossível, a marquesa saiu às cinco horas.

E lá vou eu, atraído pela lei da gravidade, até o óbvio, a matéria, a verdade, quem sabe. Ela irresistível como uma página de papel em branco. Quem sabe a sabedoria, quem sabe, alguma outra coisa. — Norma! Chegou alguém gritando como se. 9 Então, eu soube. Ela se chamava Norma. De normas, vocês sabem, o inferno está cheio. CAPÍTULO 2 1 — Telefone para o senhor. Olhei para o mordomo, entre atônito e incrédulo. Telefonema para mim? Aqui? Como? O professor Propp, meu analista, me garantiu, ninguém me reconheceria nesta festa. Segundo ele, nas histórias de magia e de mistério, o narrador está sempre ausente, nunca participando da festa, quero dizer, das ações. Tentei explicar isso ao lacaio, que continuou impávido de pé, o telefone numa bandeja como uma lagosta, esperando, esperando, pergunta. Levei a mão ao aparelho, apavorado com a ideia de que tinha uma voz ali dentro, vinda de algum lugar, e tudo podia acontecer. O mordomo não mostrou sinais de vida quando minha mão parou em pleno ar e comecei a lhe explicar os meandros do pensamento do professor Propp, para sua ignorância plebeia, eram menos interessantes que um peido, podia ver isso em sua cara que consistia toda em uma superfície sem profundidade, um lago plácido com a fundura de uma folha de papel. O mordomo insistiu. Era comigo mesmo. Pensei, já quase suando. E se for “você sabe com quem está falando?” E que tal seu coração diante de um “fuja enquanto é tempo, tudo foi descoberto”? Insuportável imaginar um “desculpe, foi engano”. De qualquer forma, é contra meus princípios demonstrar fraqueza diante da criadagem. Levei a mão ao aparelho, com a determinação de um coronel de hussardos de Napoleão levando a mão ao sabre, bradando “carga!”. O telefone, agora, eu colava aquele búzio na orelha, e ouvi do outro lado o marulhar da vida, aquele silêncio febril de um formigueiro na primavera. As cacofonias da festa se multiplicavam em minha volta, enquanto me chegavam partículas de palavras, destroços de frases, poeiras de som: (…) tesão, o maior tesão (…), … me comer (…), meter de uma vez só (…), tudo aqui dentro (…) tudo, de uma vez (…). Tirei o telefone do ouvido, as orelhas ardendo com aquela queimadura. E olhei para o mordomo. Tentei olhar, isto é.

Nada na minha frente, tinha se dissolvido naqueles rios de cabeças gargalhantes, altos penteados, dentaduras escancaradas. Eu estava sozinho com um telefone no colo e, dentro dele, uma voz que dizia o que só se diz, bem, vocês sabem. Na mão esquerda, eu ainda segurava um cigarro por acender. Cheguei devagar o telefone no ouvido e do outro lado ouvi… merda!, tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar. 2 Levantei os olhos devagar para o carnaval de luzes em minha volta. Tudo parecia idêntico. As mesmas pessoas. As mesmas gargalhadas. Os gestos todos certos. A certeza. Só que tinha uma coisa errada. TUDO tinha mudado. Por segundos girei numa vertigem, sem saber o quê, em quê, por quê. Ah, por quês?, como atingir a sabedoria sem vocês, porquês, por quês, porquês, diabólica máquina das causas e efeitos. O que tinha mudado? Nenhum POR QUÊ?, por favor. TUDO. 3 De repente, tudo ficou pálido como se tivesse medo. De repente, tudo ficou corado, como se tivesse vergonha. O ar ficou corado. E tudo empalideceu, como, como é que foi mesmo que eu não dei pela ausência de Norma, aquela coisa gostosa entre as mulheres, sorvete reinando sobre meu reino de prazer com um morango por coroa? 4 E como TUDO tinha mudado me dei ao direito de também. Meu rosto, de senhorial mudou para o desespero, de raivoso passou para o desânimo, em meu rosto, meu rosto mudou, rapidamente, flashes de slide projetados na cara de uma estátua por uma máquina desgovernada. Me levantei, à procura de alguém conhecido, diante de mim, o desconhecido oeste selvagem, infestado de ursos e índios antropófagos, nenhum amigo, nenhuma amiga, pratos célebres, unhas feitas por joalheiros inacessíveis, vozes estrangeiras, sotaques dissonantes. Levantar me fez bem. Circulei com segurança, sentindo meu rosto voltar à forma primitiva, a cara que eu fazia antes, bem antes de começar este romance, meu romance com Norma. Respondi ao ligeiro cumprimento de um senhor parecido com meu tio, provavelmente me confundindo com algum sobrinho, me aproximei soberano.

— Os tempos estão mudando, comentei, certo de que o tempo é um assunto universal bastante para interessar a todas as pessoas e de que a mudança é uma experiência geral. Ela não me respondeu. Seus olhos (opala? ágata?) me atravessavam, como se eu fosse uma vidraça entre ela e o Mediterrâneo. Vamos mudar. Mas vai mudar assim na puta que o pariu. Me afastei com raiva em direção a um sofá que jazia num canto, um hipopótamo verde-musgo e dourado, debaixo do grande relógio, que eu já sabia tinha pertencido ao tetravô do dono da casa e da festa. Do dono da casa e da festa, já tinha ouvido falar muito. Sabia que era senhor de muitos recursos, e tinha se dedicado à caridade, desde a morte da mãe, abastecendo com festas o tédio de gente como eu. Olhei para o relógio. Meia-noite e quinze, os ponteiros escreviam um L. Sentei e olhei em frente. Só existia uma verdade absoluta. TUDO tinha mudado. 5 Para melhor, para pior, pouco importa, essas palavras, bem e mal, já não faziam diferença, não tinham mais nada a fazer naquele jogo, entende? Eu vivia uma circunstância absoluta, podia sentir os sintomas. Bem que meu analista tinha me prevenido. Mas eu lá tenho cara de quem vai atrás do papo de um judeuzinho da Europa Central, óculos na ponta do nariz, a cabeça cheia de teorias e esquemas, caverna atravessada de teias de aranha, por onde voam vocês, morcegos milenares? A gente arrasta o rabo do dia a dia, os dias na esperança de um só dia, um momento máximo, o campeonato nacional, a decisão, a final. Esta era a final. Daqui para diante, só as florestas, os desertos, os pantanais e os céus da sabedoria. Mas foi triste que varei a sala, me debatendo entre as ondas de com licença e desculpe, perdão e tenha a bondade, até a mesa do ponche. Jamais vou poder dizer se a tristeza, que me encheu como o vinho enche um copo, vinha da ausência de Norma ou de constatar amargurado, e me resignar com a evidência gritante de que aquilo fosse o que era, a queda do império, a passagem do cometa Halley, o primeiro lugar na lista dos sucessos, uma bobagem dessas qualquer. Já era ciúme o que eu sentia com a desaparição de Norma? E o que fazer com a lição do professor Propp, isso não existe? Medo. Medo, sim. Quando senti medo, quase pude tocar com as mãos suas imensas distâncias, abismos intransponíveis, silêncios insuportáveis, tudo aquilo que a gente sente diante do tigre, tudo aquilo que sobe e desce na espinha quando você pergunta: — É grave, doutor? O doutor Wiesengrund achava que quem sabe. E acreditava sinceramente que isso tudo tinha cura. Era da velha escola.

Um pouco de ar puro, farta alimentação, muita abstinência de lipídios, e uma buceta de vez em quando. Para as senhoras, caralhos, evidentemente. Um pinheirinho de Natal, coruscante de esmeraldas e rubis, ao seu lado, a senhora Wiesengrund fazia que sim com a cabeça, a cada palavra que o eminente pentelho regurgitava. A cada minuto que passava, mais aumentava meu medo, e eu ficava cada vez mais feliz de poder gritar “terra à vista”, diante daquele rato que me roía as entranhas, polo ártico na boca do estômago, meu velho e querido amigo, enfim, um amigo, meu verdadeiro amigo, o pavor. A gente se conhecia desde a infância, o medo cresceu comigo. Quando eu era garoto, meu medo principal era que a casa do meu pai desabasse. Mas era apenas o centro do terror. Deste centro se irradiavam miríades de medos, aquelas coisas que, com uma picada de frio na minha barriga, me enchiam a vida de vibração e significado, os mínimos medos que cintilavam em volta, e se estendiam até os inumeráveis horizontes do desconhecido. De repente, fiquei apavorado. A partir desse momento, não senti mais NADA. Estava na companhia de algo maior, muito maior, infinitamente maior que qualquer medo. TUDO tinha mudado. CAPÍTULO 3 1 Aqui, ainda dá pra ver o cigarro por acender em minha mão esquerda. Sou aquele mais magrinho ali no fundo da poltrona verde-musgo, com cara de hipopótamo abatido. Ao meu lado, o telefone nas mãos do mordomo (naquele tempo, a gente chamava garçons de mordomos: moravam em casa, nunca faziam cara feia e descendiam sempre de uma tradicional família de mordomos). Da esquerda para a direita, inúmeros nomes ilustres. Sentado no meio, o fotógrafo dirige a cena, sem se dar conta que a máquina estava fotografando sozinha. Atrás, na parede, o relógio marca meia-noite e quinze. Na foto, não saíram: o notável clitóris da Condessa Vronsky, as marcas de varíola do Coronel Hermógenes, boa parte das terras do Conglomerado União, representado no evento por seu vicepresidente, e o sorriso da cabeça de javali sobre a lareira está um pouco forçado, não passando, como se percebe, de uma reles contrafação do sorriso usado por Gary Cooper naquele filme de Howard Hawks, como é mesmo o nome, meu Deus, como a memória é solúvel em álcool! E Norma? Cadê Norma? Sua ausência grita nesta foto como o mais agudo ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh que olhos humanos já ouviram. A foto também não registra o cheiro de queimado que senti, desde o começo, mas, bem… Tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar. 2 TUDO TINHA MUDADO. E uma angústia deste tamanho começou a tomar conta. Um desassossego, que botou no chão, diante de mim, o ovo de uma pergunta: que é que esta festa está comemorando? Quando me disseram para vir, só disseram, uma festa. E eu vim sem saber o que se celebra. A ideia de uma festa sem objeto, uma festa que não comemora nada, me pareceu tão absurda quanto, sei lá, quanto a súbita visão de uma coisa em si.

Ora, conforme o professor Propp, meu analista, as coisas em si só existem na imaginação. Ora, ora, não era o caso desta festa, coisa que todo mundo vai poder comprovar a seguir. Casamento, não era. Faltava no ar aquele clima venéreo, venusiano, dos casamentos, onde todo mundo ficava olhando para os noivos, viajando nas sacanagens que eles logo vão estar praticando, todo mundo vê nas bochechas vermelhas da noiva o fogo da expectativa de dali a pouco estar levando um apaixonado caralho na buceta, no nervosismo do noivo, aquela pergunta clássica: por que é que esse bando de chatos não dá o fora logo pra eu poder comer esta mulher em paz? Não, não havia esse clima. Olhei para o alto, e girei o olhar. Não havia cupidos voando em volta da mesa. Busquei outros sinais, sinais de qualquer um desses acontecimentos que vão da vida até a morte, batizados, bar mitzvah, noivados, bodas de prata, colação de grau, exéquias, velórios, guardamentos. Nenhum sinal. Perguntei ao vestido das mulheres, a seus penteados renascentistas, e nada. Não é do meu feitio suportar muito tempo coisas que eu não entendo. Esses lustres, esses candelabros, essa luz toda não me merecem. Minha integridade exigia uma medida enérgica, minha honra tinha que ser lavada em distância. Levantei da poltrona verde-musgo e dourado. Deixei para trás o gratuito cacarejar das damas presentes, e me encaminhei para a porta. Saí da casa, e entrei no vento, caminhando em direção ao carro. Tive que manobrar muito para me desvencilhar de todas aquelas máquinas caríssimas como seus donos e donas. Lancei um olhar, não sei se de desprezo ou de despeito, para aquele imenso casarão iluminado no meio do mato, onde rolava uma festa que não me queria. Peguei a estrada, e tomei a direção da cidade. Quando consegui estabilizar minhas emoções e atingi aquele estado meio neutro, meio mecânico, que os carros exigem dos seus motoristas, algo entre o sono e a extrema vigília, nesse momento, a tempestade caiu. E veio com tudo. Tive que parar à margem da estrada, esperando passar. Passar a chuva. Passar o tempo. Passar a maldita vontade de voltar. Apanhei um cigarro.

Mas cadê o isqueiro? Tinha certeza de ter deixado aqui a caixa de fósforos de papel daquele hotel. Nada. Eu estava sem fogo. E tive que me resignar. Foi principalmente esta falta de fogo que me fez lembrar Norma. E só então me dei conta que não conseguia lembrar das feições do seu rosto, nem da cor dos cabelos. Nem saberia dizer se era jovem ou madura. Dos outros convivas eu lembrava com nitidez, a memória, dizia o professor Propp, é a minha grande virtude, e, por isso, a fonte de todos os meus males. Propp sempre me diz: — Esquece, esquece mais. Esquecer faz bem. Eu prometo me lembrar disso. E ele diz: — Está vendo? Já está lembrando de novo. Contra o bloco nítido daqueles convivas todos, dos quais eu lembrava cada detalhe, a figura de Norma se destacava como uma massa de amnésia. Devia estar muito distraído quando fiquei vidrado nela. Não sabia quem era, mulher de quem, comida de quem, quem pagava seus luxos, a que casas, a que fortunas estava ligado seu destino. Que será que fazia? Exercia a caridade? Atacava os viandantes à noite? Desenhava modas? Tocava a 7 a Sonata de Chopin no piano? Cavalgava aos domingos? Assistia filmes proibidos em seções privadas? Batia no marido? Açoitava os criados? Colecionava amantes? Frequentava igrejas, capelas, terreiros? Todas essas perguntas empalideciam diante de uma: volto ou não volto? Dei meia-volta, e voltei para casa. 3 Faltava um quilômetro para chegar na casa, quando senti um problema no carro. Parei. Conferi tudo, nada. O sacolejo que eu tinha sentido era meu próprio coração batendo do lado de dentro, louco para sair. Lembrei (maldita memória!) que Propp tinha um conselho para ocasiões em que o herói se encontra numa situação como esta. Mas não consegui lembrar do conselho, maldito Propp, o tratamento estava começando a fazer efeito. Engoli, mandando meu coração voltar para as profundezas donde tinha emergido, que lugar de coração é lá embaixo. Fiz a curva para entrar no caminho que levava até a porta da frente da casa. Não gostei do que vislumbrei.

A casa, completamente às escuras. Um pedaço de treva mais escura contra a treva ligeiramente mais azul, depois da passagem de um dos relâmpagos tardios da tempestade que se afastava. — A tempestade apagou a luz, pensei. Mas cadê aquela multidão de carros estacionados em frente? Apagou a luz e todo mundo fugiu para suas casas, me reconfortei. Ainda bem que o professor Propp sempre me alertou, a lógica não passa de uma média estatística, uma probabilidade: não era provável que eu estivesse nesta festa, que passasse por Norma e quase não a visse, que recebesse aquele telefonema, e saísse, e chovesse, e não tivesse fósforos, e eu voltasse, não era provável que eu saísse do carro, fosse até a porta e batesse. Bati uma vez. Esperei. Na orelha esquerda, nada. Na direita, nada. Mas será possível que não sobrou ninguém? Alguém deve ter ficado. Bati de novo. A chuva voltou a cair imediatamente, como se quisesse levar aquela casa a nocaute no segundo round, meu coração batia, punch, jab, cross, direto. Bati de novo. E de novo. Até que ouvi aquela voz maravilhosa de um trinco se abrindo numa porta que você quer abrir. O velho criado pôs a cabeça na fresta da porta entreaberta. — Está perdido, cavalheiro? — Não lembra de mim? Acabo de sair daqui. — Perdão, senhor? — Eu acabo de sair da festa. Mas voltei. — Que festa? — A festa que estava havendo aí quando eu saí. — Mas, senhor, a festa vai ser amanhã à noite. Nessa hora, um relâmpago estralou como um ovo que cai na frigideira. Fiquei ali, anulado, esperando o trovão passar e ir fazer barulho lá na puta que o pariu. O criado me trouxe de volta à vida: — Mas se o senhor quiser, está chovendo tanto, as estradas estão perigosas, se o senhor quiser passar a noite aqui, tenho certeza que meu patrão terá o maior prazer em hospedá-lo, senhor? Disse meu nome e entrei, tirando o casaco molhado. A casa estava completamente às escuras.

— Deixe-me acender alguma luz, o criado ouviu meus pensamentos. Fiquei ali, no escuro, aquela vergonha de perguntar o óbvio. Uma luz se fez. Outra. Velas acendiam velas. Candelabros arreganhavam as dentaduras pela sala. Nada. Nenhum sinal de festa, havida ou por haver. Segurei. — Muita gente na festa amanhã?, perguntei. — Ah, senhor, isso ninguém pode dizer. Enquanto o criado acendia luzes e mais luzes, dei um passeio pela sala. Estava tudo lá, a poltronahipopótamo, a cabeça de javali na parede, a mesa, o piano. Me aproximei. Sobre o piano, as fotos de gente cujas caras não me diziam nada. E, de repente, AQUILO! Pensei que já tinha visto tudo, mas aquilo tinha passado dos limites. Era um escândalo, um insulto à realidade, à santíssima lógica das coisas, e eu explodi: — Mas o que é isso?, gritei, agarrando a foto com uma mão e com a outra o pescoço do criado. — Isso o quê?, meu senhor? — Esta foto. — É apenas a foto de uma festa. — Quando foi essa festa? — Não sei, meu senhor. Larguei o criado, que se afastou alisando o pescoço. Olhei bem para a foto, à luz de todos os candelabros. Não havia a menor dúvida. Era a foto que tinha sido tirada na festa, da qual eu tinha acabado de sair e, agora, não existia mais. — Quer comer alguma coisa antes de subir a seus aposentos, senhor? Nem ouvi a pergunta.

Fiquei ali, estarrecido diante daquela foto. Só que olhei um pouco mais atentamente. E descobri. Norma. Norma está nesta foto. E eu não estou. A vertigem subiu pelas minhas pernas como uma câimbra. Eu estava certo. Não podia mais haver engano. A verdade me atingiu no meio da testa. TUDO TINHA MUDADO. 4 Quanto tempo dormi na cama onde o criado praticamente me jogou, depois do meu choque com a foto, depois que minha consciência colidiu com aquela imagem, como um avião se choca contra uma montanha? Voltei a mim dentro da noite total. O quarto, treva pura. Mais treva não seria, se eu tivesse ficado cego. E daí comecei a ouvir aquele som, uma coisa doce vinda de algum lugar e de toda parte ao mesmo tempo, uma voz, sim, era uma voz, uma voz de mulher, em algum lugar no espaço e no tempo, uma mulher cantava, e coisas além do meu entendimento queriam que eu estivesse ali, escutando, como se ouvir aquela voz pudesse ser a razão de ser de toda uma vida, aquela voz doce que parecia iluminar a meia-noite com todas as vias lácteas de que o céu é capaz. CAPÍTULO 4 1 Um dia, ainda vai ser conhecida a verdadeira natureza das minhas relações com o professor Propp. Até hoje não sei como tantas intrigas puderam se tecer em torno de alguém com uma biografia tão exata quanto ele, figura dedicada, de corpo e alma, à ciência, para ele, a rabínico-cossacoprussiana disciplina do pensamento e da vida se organizando em esquemas. Propp escrevia seco, mas muito bem. Seu principal romance, porém, que merda!, ainda não saiu à luz. Esse escafandrista das profundezas humanas, discípulo direto de Freud, que discutiu, como ele invoca, com Reich, Férenczi e Jung, ele deixou uma história que, se ainda houver um resquício de luz e amor na humanidade, um dia, vai ser publicada. É a Morfologia do Conto Maravilhoso, admito, um nome um pouco abstrato para uma obra de ficção. O singular no caso foi o uso que ele fez desse seu romance no tratamento de gente como eu, como nós, nós, que frequentamos a caverna de Propp, e perguntamos: — Tem jeito? E ele diz: — Diga A. E nós todos dizemos, ah, hoje não vai dar. Com o perdão das senhoras presentes, me estendo um pouco mais sobre esse romance que viria a ter um papel tão, tão, tão, como direi?, em minha vida, por puro medo de que essa história nunca venha a ser publicada, privando a espécie de uma de suas obras mais, mais e mais, daquelas que dá pra segurar na mão e brandir para as estrelas dizendo: vocês não perdem por esperar. Nada poderia ser mais estranho para o leitor habitual de fábulas, ávido por emoções fáceis, detalhes picantes ou registros agudos do cotidiano, arquiteturas redondas e enredos envolventes.

Não Propp. Seu romance é abstrato. Quer dizer, um romance feito de todos os romances, seus personagens são todos os personagens possíveis. Como isso foi possível, só o gênio do professor explica, e o gênio é inexplicável, como nós todos, seres gasosos dos pantanais de Canópus, sabemos. O fato é que descobriu que todas as histórias, no fundo, constituem UMA SÓ HISTÓRIA. E aplicou-se a descobrir a cadeia de constantes, a lei lógica e matemática que rege a geração dos enredos, o vertiginoso movimento das constelações que constituem uma intriga. Todo entrecho, para ele, reduz-se à combinação de algumas funções básicas (trinta e uma, se não me engano: um dia, perguntei por que um número tão quebrado, por que não trinta ou quarenta, e ele me respondeu com uma frase latina, saiam da frente, Virgílios e Cíceros, algo assim como “nummerus impar deis placet”, aos deuses agradam os números ímpares, e rematou dizendo que, por mais que a gente tentasse reduzir a realidade e a vida aos números pares, elas sempre seriam ímpares, os pares não passando de uma mera fantasia humana, o médico e o monstro, o casal perfeito, Sansão e Dalila). Em nosso último encontro, fantasiava uma psicanálise do ímpar. — Ménage à trois, professor? Claro, o romance de Propp não era, apenas, mais uma dessas obras destinadas, apenas, a proporcionar prazer a um leitor eventual. Propp não. Ele era médico. Queria curar. Quer dizer, dizer NÃO ao real, que quer a doença. Não à inexorável lógica última e suprema de todas as coisas e de todos os processos, aquela coisa que quer que a pedra caia quando jogada pra cima, o que quer que seja que quer que as flores nasçam na primavera e no inverno a gente tenha que usar cinco (ímpar!) roupas sobre o peito. De Propp, fica esta ideia, tenho certeza. A saúde através daquilo que ele chamava Funções dos Personagens, e suas cambiáveis, mas previsíveis combinações. Não ficava perguntando se você já tinha alguma vez tido a vontade de chupar a buceta de sua mãe para voltar ao útero, e, mamando, acabar com tudo isso, de uma vez por todas. Ou se você tinha fantasiado ver o saco do seu pai servido num prato ao molho pardo. Grande diretor de cena, em um minuto, você já estava passando da Função 1 para a 4, da 3 para a 7, da 6 voltando à 2, uma máscara atrás de outra máscara atrás de. Cada uma das Funções, até 31, tinha um nome e uma definição precisas (uns dois anos para decorá-las todas, no rigor da sua ordem: enquanto isso, quem vai ter tempo para ter problemas psíquicos).?) O sucesso obedecia ao seguinte esquema, este é o esquema do fracasso do herói. A felicidade, lembro, seguia o esquema, personagem sai de casa, enfrenta os perigos do mundo, personagem volta pra casa. Nesse meio-tempo, eu, você, Hércules, Ulisses, Kennedy, Alice, Fausto, Adão, Guilherme Tell, Robin Hood, Frankenstein, o herói, enfim, passava, a gente passava por certas peripécias básicas, sempre as mesmas, só mudava a ordem. Era confortador. E era apavorante.

Gostoso saber que você pertencia a uma lógica maior que você, um fundo contra o qual tua figura se projetava. Mas eu me cagava de medo de saber que viver, então, era só isso, e assim, e não de outra forma. Preparava, pouco antes do seu trágico desaparecimento, uma retórica do desejo, que o tempo não permitiu acabar. Da “Retórica do Desejo”, guardo ainda algumas notas, pepitas de ouro recolhidas nas enxurradas da vida. 2 Acreditem ou não, era nele e seus esquemas que eu pensava, deitado lá dentro daquele quarto escuro, ouvindo aquela voz, aquela voz única, no fundo, a única que eu ouvia desde que tinha chegado naquela festa, festa, aliás, que não houve, ou não tinha havido, ou, enfim, tinha caído num número ímpar qualquer, como o professor Propp tinha previsto. Ou qualquer coisa assim.

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