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Agridoce – Colleen McCullough

Edda e Grace, Tufts e Kitty. Dois pares de gémeas, filhas do reverendo Thomas Latimer, pastor da Igreja Anglicana de St. Mark no condado e cidade de Corunda, Nova Gales do Sul. Encontravam-se sentadas em cadeiras estreitas em frente à enorme boca da lareira, onde nada ardia. O grandioso salão estava cheio de mulheres conversadoras convidadas pela esposa do pastor, Maude, para celebrar o evento que aconteceria em menos de uma semana: as quatro filhas do pastor iam abandonar o presbitério para iniciar o seu treino de enfermagem no Hospital de Corunda. Falta menos de uma semana, falta menos de uma semana!, dizia Edda repetidamente para si mesma, suportando a vergonha de estar em exposição, os seus olhos não paravam de olhar em redor, pois preferia não estabelecer contacto visual com a sua madrasta, Maude, que monopolizava a conversa como era habitual, tagarela, tagarela, tagarela. Havia um buraco no chão de madeira, ao lado da cadeira de Edda, a última de uma fila de quatro; um movimento dentro dele captou a atenção desta, e Edda ficou tensa, sorrindo enervada. Um enorme rato! Um rato estava prestes a invadir a festa da mamã! Apenas mais um centímetro, pensou Edda, enquanto observava a cabeça do rato, e vou gritar um estridente «Rato!» com todas as minhas forças. Que divertido! No entanto, antes que Edda conseguisse encontrar voz para gritar, viu a cabeça do animal e paralisou. Uma cabeça preta e lustrosa, em forma de cunha, com uma língua vibrante — enorme, tendo em conta o animal que era! —, um corpo preto, sim, mas por baixo uma barriga vermelha. E aquela coisa continuava a avançar e a avançar, dois metros de cobra preta com a barriga vermelha, letalmente venenosa. Como entrara ali? Ainda continuava a emergir do buraco, à espera do momento em que a ponta da sua cauda estivesse livre para disparar numa direção imprevisível. Os utensílios da lareira encontravam-se do lado oposto àquele em que Edda se encontrava, com Tufts, Grace e Kitty no caminho, completamente alheias ao que se passava; nunca chegaria a eles. A sua cadeira era estofada, mas não tinha braços e as pernas terminavam em pontas finas, pouco maiores que um batom. Edda respirou fundo, levantou-se a si e à cadeira uns quantos centímetros do chão e assentou a perna esquerda da cadeira no meio da cabeça da cobra. Em seguida, sentou-se comforça e com todo o seu peso, segurando firmemente os lados do assento, determinada a ultrapassar a tempestade como se fosse Jack Thurlow agarrado às rédeas do cavalo. A perna da cadeira trespassou o crânio da cobra entre os olhos, e esta, com os seus dois metros, ergueu-se no ar. Alguém soltou um grito estridente e outros se seguiram, enquanto Edda Latimer continuava sentada e lutava para manter a perna da cadeira enterrada na cabeça da cobra. O corpo do animal chicoteava, contorcia-se, batia em Edda e em tudo à volta dela, com golpes mais selváticos e punitivos do que o punho de umhomem, chovendo sobre ela de forma tão furiosa que Edda parecia envolta por uma névoa rodopiante, uma sombra golpeante. Mulheres corriam por todos os lados, ainda aos gritos, com a imagem de Edda e da cobra estampada nos olhos, sem conseguirem controlar o pânico para a ajudar. Exceto Kitty — a linda Kitty, a corajosa Kitty —, que saltou para o lado oposto da lareira, empunhando um machado, utilizado para separar toros de lenha demasiado grandes. Desviando-se dos golpes violentos da cobra, Kitty separou a cabeça da espinha com duas machadadas. — Já te podes levantar da cadeira, Eds — disse Kitty à irmã, deixando cair o machado. — Que monstro! Vais ficar coberta de nódoas negras. — És louca! — choramingou Grace, derramando lágrimas de choque.


— Tolas! — disse Tufts furiosamente para Edda e Kitty. O reverendo Thomas Latimer, pálido como a cal de parede, estava demasiado ocupado a acudir à sua segunda esposa, num autêntico ataque de histeria, para fazer o que mais desejava: confortar as suas filhas admiravelmente corajosas. Os gritos e o choro começaram a esmorecer, e o terror diminuiu o suficiente para que algumas das mulheres mais intrépidas se juntassem em volta da cobra e observassem a sua mortalidade de perto — que bicho enorme! No meio de toda aquela confusão, a senhora Enid Treadby e a senhora Henrietta Burdum ajudaram o pastor a acalmar Maude, e ninguém, à exceção das quatro gémeas, se lembrou do motivo desta reunião arruinada. O que importava era aquela estranha criatura que Edda Latimer matara, uma cobra letalmente venenosa, e estava na hora de correr para casa a fim de perpetuar a principal atividade feminina de Corunda: a Coscuvilhice, e as suas amigas, a Intriga e a Especulação. As quatro raparigas dirigiram-se para o carrinho do lanche abandonado, serviram-se de chá emchávenas delicadas e pilharam as sanduíches de pepino. — As mulheres são mesmo tolas, não são? — perguntou Tufts, agitando o bule. — Parecia que o céu estava a cair! Contudo, é típico de Edda. O que tencionavas fazer se a perna da cadeira não aguentasse? — Nesse caso, Tufts, teria pedido a tua ajuda. — Hum! Não precisavas de pedir, porque a nossa outra brilhante pensadora e planeadora, Kitty, foi em teu auxílio. — Tufts olhou em volta e continuou: — Apedrejem os corvos, vão-se embora! Comam, meninas, podemos comer tudo. — A mamã vai demorar uns dois dias a recuperar disto — disse Grace, divertida, segurando a chávena a pedir mais chá. — É certo que bate aos pontos o choque de perder as suas quatro criadas não remuneradas do presbitério. Kitty bufou. — Que disparate, Grace! O choque de perder as criadas não remuneradas pesa bastante mais no pensamento da mamã que a morte de uma cobra, por muito grande e venenosa que fosse. — E, mais — disse Tufts —, a primeira coisa que a mamã vai fazer assim que se recompuser é dar um sermão a Edda sobre como matar uma cobra mantendo a compostura e a discrição. Causaste uma grande confusão. — Meu Deus, sim, causei mesmo — disse Edda, calmamente, enquanto espalhava uma suculenta compota vermelha e uma camada de chantilly por cima de um scone. — Nham! Se eu não tivesse feito confusão, nenhuma de nós conseguiria apanhar um scone. As amiguinhas da mamã teriam comido todos. — Edda riu-se e continuou: — Na próxima segunda-feira, meninas! Na próxima segunda-feira vamos começar a viver as nossas vidas. Sem a mamã. E sabes que não estou a dizer isto para te chatear a ti e à Tufts, Kitty. — Sei, sim — disse Kitty, bruscamente. Maude Latimer não era conscientemente desagradável; considerava-se a maior santa de todas as madrastas, bem como de todas as mães. Grace e Edda eram filhas do mesmo pai que as suas duas filhas, Tufts e Kitty, e não fazia qualquer discriminação entre elas, dizia Maude prontamente a qualquer pessoa que se mostrasse interessada na vida do presbitério.

Como podiam quatro lindas filhas ser um fardo para alguém que adorava ser mãe? E isto poderia ter funcionado na vida real tão bem como na cabeça de Maude, não fosse um percalço físico do destino, nomeadamente o facto de a mais nova das gémeas de Maude, Kitty, ter uma beleza muito superior à das suas adoráveis irmãs, superando-as da mesma maneira que o Sol obscurece o brilho da Lua. Desde a infância de Kitty até à presente festa de despedida que Maude gabava as qualidades de Kitty a toda a gente que a quisesse ouvir. As opiniões privadas das pessoas eram idênticas às opiniões públicas de Maude, mas oh, ficavam todos tão cansados quando Maude aparecia do nada, com a mão de Kitty presa firmemente na sua, e as outras três gémeas atrás. Era opinião consensual em Corunda que Maude estava a criar três inimigas implacáveis para Kitty, as suas próprias irmãs: como Edda, Grace e Tufts deviam odiar Kitty! Toda a gente deduzia que Kitty devia ser desagradável, mimada e insuportavelmente pretensiosa. No entanto, não era bem assim, embora o porquê fosse um mistério para toda a gente, exceto para o pastor. Ele interpretava o amor entre as suas meninas como a prova sólida e tangível do quanto Deus as amava. É claro que Maude usurpava os elogios que o seu marido fazia a Deus como se fossem mais devidos a ela e só a ela. As raparigas Latimer tinham pena de Maude, quase tanta quanto a antipatia que sentiam por ela, e gostavam dela apenas na medida em que os laços familiares as uniam, fossem estes de sangue ou não. O que unia as raparigas nesta aliança inabalável contra Maude não era o facto de três das gémeas serem preteridas por ela, mas a situação difícil em que Kitty se encontrava, sendo alvo de toda a atenção e afeto de Maude. Kitty poderia ter-se tornado uma miúda presunçosa e insolente; em vez disso, era tímida, sossegada e reservada. Edda e Grace, vinte meses mais velhas, repararam muito antes de Tufts no efeito da sua mãe sobre Kitty e, quando tal se tornou óbvio para as três, ficaram muito preocupadas. Da mesma maneira que a conspiração entre elas para protegerem Kitty de Maude começou aos poucos e se perdeu nos meandros da infância, tornou-se mais forte à medida que o tempo foi passando. Era sempre a dominadora Edda que sofria o impacto das situações mais difíceis, um padrão que se mantinha desde os seus doze anos, quando apanhou Kitty, na altura com dez anos, a tentar mutilar a sua própria face com um ralador de queijo; Edda tirou-lho das mãos e levou-a imediatamente ao seu pai, o homem mais amável e bondoso do mundo. Este lidou com a crise de uma forma exemplar, resolveu o problema da única maneira que sabia, persuadindo a menina de que, quando se tentava mutilar, insultava Deus, que a fizera linda por alguma razão misteriosa, por uma razão que um dia iria compreender. Esta conversa fez com que Kitty se aguentasse até ao último ano de escola, no Colégio Feminino de Corunda, uma instituição da Igreja Anglicana. Ao adiar o início da educação das gémeas mais velhas e ao antecipar o das mais novas, o pai fez com que as quatro raparigas frequentassem todas o ensino primário e secundário na mesma turma e se matriculassem na universidade ao mesmo tempo. A diretora do colégio, uma escocesa severa, recebeu as onze raparigas que entraram no ano final comum discurso concebido para desencorajar as suas expectativas de vida, em vez de as estimular. — Os vossos pais permitiram que vocês usufruíssem de dois a quatro anos de educação a mais ao manter-vos no Colégio Feminino de Corunda até se matricularem na universidade — disse ela, no tom de voz controlado de uma mulher educada em Oxford —, o que irá acontecer no ano de Deus de 1924. Quando se matricularem, a vossa educação será soberba, pelo menos no que diz respeito a educação para mulheres. Vão ter aulas de inglês, matemática, história antiga e moderna, geografia, ciências, latim e grego neste ano preparatório para a universidade. A diretora fez uma pausa demorada e, em seguida, concluiu: — No entanto, a carreira mais desejada para vocês é um casamento adequado. Se escolherempermanecer solteiras e tiverem de se sustentar, existem duas carreiras disponíveis: ensinar numa escola primária e algumas poucas escolas secundárias ou trabalhar em secretariado. A este discurso, Maude Latimer acrescentou um comentário durante o almoço no presbitério no domingo seguinte. — Que disparate! — disse Maude suspirando. — Oh, o casamento adequado! Meninas, é claro que todas vocês vão alcançar isso.

No entanto, nenhuma das filhas do pastor de St. Mark precisa de sujar as mãos a trabalhar para sobreviver. Vão viver connosco e ajudar-me a manter a casa até casarem. Em setembro de 1925, quando Edda e Grace tinham dezanove anos e Tufts e Kitty dezoito, Kitty dirigiu-se aos estábulos do presbitério e encontrou um pedaço comprido de corda. Fez um laço numa ponta e atirou a corda por cima de uma viga, colocou a cabeça no laço e subiu para cima de umcontentor vazio de gasolina. Quando Edda a encontrou, já Kitty tinha afastado o contentor com os pés e encontrava-se pendurada, pateticamente calma, a tentar libertar-se da vida. Sem nunca conseguir perceber onde fora buscar a força, Edda libertou Kitty da corda que a asfixiava, antes de esta se magoar de modo irreversível. Desta vez, Edda não levou Kitty de imediato ao pastor. — Oh, minha querida irmã, não podes, não podes! — chorou Edda, com a face encostada ao cabelo sedoso da irmã. — Nada pode ser assim tão mau! No entanto, quando Kitty foi capaz de falar, Edda percebeu que era ainda pior. — Odeio ser bonita, Edda, abomino-o! Se, ao menos, a mamã se calasse, me desse alguma paz! Mas não dá. Para todos os que quiserem ouvir, eu sou a Helena de Troia. E ela… ela não me deixa vestir de forma mais descontraída ou não usar maquilhagem. Edda, se ela pudesse, tenho a certeza de que me casaria com o príncipe de Gales! Edda tentou mostrar-se despreocupada. — Até a mamã deve ter percebido que não fazes bem o tipo de Sua Majestade, Kits. Ele gosta delas casadas e muito mais velhas do que tu. O comentário foi recebido com um riso forçado, mas Edda teria de falar durante muito mais tempo e de usar toda a sua persuasão antes de Kitty consentir em falar dos seus problemas com o pai. — Kitty, não estás sozinha — argumentou Edda. — Olha para mim! Eu venderia a minha alma ao diabo para ser médica, e estou a falar a sério! É tudo o que eu sempre quis, um curso de medicina. Mas não posso. Por um lado, não há dinheiro para isso, nem nunca há de haver. Por outro, o papá não aprova, oh, não por ser contra as mulheres desempenharem estas profissões, mas pela forma como toda a gente trata mal as mulheres em medicina. Acha que eu não seria feliz. Eu sei que ele está errado, mas ele recusa-se a ceder. — Edda agarrou no braço de Kitty e esmagou-o entre os seus dedos fortes e esguios.

— O que te faz pensar que és a única que está infeliz, eh, responde-me. Não achas que já pensei em enforcar-me? Mas já pensei! Não só uma vez, mas muitas. Quando Edda contou o que acontecera a Thomas Latimer, que Kitty tentara enforcar-se, esta estava dócil como o barro. — Oh, minha querida, minha querida! — sussurrou ele, e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto longo e atraente. — Para castigar o crime do suicídio, Deus tem um Inferno especial, não existe fosso emchamas nem a companhia de outros para ultrapassar o sofrimento. Aqueles que se matam são condenados a vaguear pela imensidão da eternidade sozinhos, para sempre. Nunca veem outro rosto, ouvem outra voz, saboreiam agonia ou êxtase! Jura-me, Katherine, que nunca mais te vais tentar magoar outra vez, seja de que maneira for! Kitty jurara e cumprira o seu juramento, mas de qualquer modo as irmãs vigiavam-na de perto. A tentativa de suicídio acabou por acontecer num momento propício, pois, por essa altura, o pastor de St. Mark era membro do conselho de administração do Hospital de Corunda. Na semana a seguir à crise de Kitty, o conselho reuniu-se e, na sua agenda, vinha mencionado o facto de que em 1926 o Departamento de Saúde da Nova Gales do Sul ia apresentar um novo tipo de enfermeira: uma enfermeira devidamente treinada, educada e registada. Para o pastor, esta era a carreira ideal para uma rapariga educada como uma autêntica senhora. O que mais o entusiasmava era o facto de estas novas e devidamente treinadas enfermeiras terem de viver no hospital, para se encontraremdisponíveis sempre que necessário. O vencimento, depois de deduzir a estadia, os uniformes e os livros, era uma miséria, mas cada uma das suas filhas tinha um dote modesto de 500 libras, o que significava que não teriam de gastar o vencimento. Maude já se queixava que mais quatro meses no presbitério eram demasiados para o trabalho doméstico envolvido. Por conseguinte, disse o pastor para si mesmo enquanto acelerava para casa no seu Ford Modelo T, porque não falar desta carreira de enfermagem às filhas? Era digno de uma senhora, podiam viver no hospital, recebiam umvencimento e (embora fosse demasiado leal para o dizer, mesmo a si mesmo) libertavam Maude, a Destruidora. O pastor abordou Edda primeiro, e é claro que esta ficou loucamente entusiasmada. Até Grace, a mais relutante, foi fácil de recrutar. Se a ideia de se livrarem de Maude era mais aliciante para Grace e Kitty do que a perspetiva de trabalhar, o que é que interessava? Mais difícil para o pastor foi travar sozinho a batalha contra o conselho de administração do hospital e persuadir os outros doze membros de que o Hospital de Corunda deveria estar entre os pioneiros de hospitais com novas enfermeiras. Algures dentro do corpo de Thomas Latimer, gracioso e esguio como uma gazela, escondia-se um leão, tão adormecido que já devia estar ratado por traças. Dentes à mostra, garras de fora, o leão era a manifestação do pastor Latimer com quem pessoas como Frank Campbell, o diretor do Hospital de Corunda, não sabiam lidar. Assim, bastante satisfeito com o que um pouco de agressividade feroz conseguia alcançar, o reverendo Latimer saiu vitorioso do campo de batalha. Saciadas, senão completamente empanturradas, as quatro gémeas Latimer olharam umas para as outras, triunfantes. O salão encontrava-se deserto e o chá que sobrava nos bules estava cediço, mas em cada jovem peito batia um coração feliz. — A partir da próxima segunda-feira, não há mais Maude — disse Kitty. — Kitty! Não podes tratá-la assim, ela é tua mãe — exclamou Grace, escandalizada.

— Posso sim, se quiser. — Cala-te, Grace, a Kitty está só a celebrar a sua emancipação — protestou Edda com um sorriso rasgado no rosto. Tufts, a mais prática de todas, olhava fixamente para o corpo da cobra. — A festa terminou — disse ela, levantando-se. — Está na hora de limpar tudo, meninas. Com os olhos postos na cobra, agora rodeada de sangue, Grace estremeceu. — Não me importo de tirar as folhas de chá do fundo dos bules, mas não vou limpar aquilo! — Visto que tudo o que fizeste desde que a cobra entrou no salão foi guinchar e choramingar, Grace, és tu que vais limpar aquilo — disse Edda. Tufts riu-se. — Achas que aquilo é difícil de limpar, Grace? Espera até estares a trabalhar nas alas do hospital! A expressão de Grace mudou, cruzou os braços sobre o peito, olhou fixamente para as irmãs e disse: — Começo quando tiver de começar, nem um minuto antes. Kitty, provocaste aquele sangue todo ao cortares a cabeça à cobra, por isso devias ser tu a limpar. — A sua disposição mudou e começou a rir. — Oh, meninas, lembrem-se! Os nossos dias como empregadas domésticas acabaram! Hospital de Corunda, aqui vamos nós! — Com toda a sujidade e confusão que nos espera — acrescentou Edda. O reverendo Thomas Latimer, que tinha algum sangue Treadby mas não era natural de Corunda, fora nomeado pastor da Igreja Anglicana de St. Mark em Corunda há vinte e dois anos. Fora precisamente aquela parcela de sangue Treadby que o tornara aceitável para a maior parte da população da igreja anglicana, apesar da sua juventude e falta de experiência. Nenhuma destas duas características era considerada uma grande desvantagem, visto que os habitantes de Corunda gostavam de moldar as pessoas como barro, a fim de servirem os seus interesses. A sua esposa, Adelaide, vinha de uma boa família e era muito estimada por todos, bastante mais do que a empregada do presbitério, Maude Treadby Scobie, uma viúva sem filhos com o sangue certo e uma ideia insuportável da sua própria importância. Thomas e Adelaide foram-se apaixonando cada vez mais, o pastor era extremamente atraente, muito culto, uma alma generosa e ingénua, e Adelaide ainda mais. Seguiu-se uma gravidez, passado um tempo adequado, e a 13 de novembro de 1905 Adelaide deu à luz duas meninas, Edda e Grace. Uma terrível hemorragia debilitou-a e Adelaide faleceu. A eficiente Maude Scobie conhecia bem os assuntos do presbitério, e os administradores de St. Mark acharam melhor que Thomas Latimer mantivesse os serviços da senhora Scobie, sobretudo devido à presença de dois bebés recém-nascidos. Maude era seis anos mais velha que o pastor e já contava com mais de trinta anos. Impressionantemente requintada e de uma beleza inigualável, Maude ficou encantada por continuar a ser sua empregada. O trabalho não era fácil, mas também não era mau.

Os governantes não se importavam de pagar a amas e a empregadas de limpeza. A congregação inteira compreendeu quando, um ano após a morte da esposa, o pastor voltou a casar, desta vez com Maude Scobie. Esta engravidou de imediato e deu à luz, um pouco prematuramente, duas gémeas a 1 de agosto de 1907. Foram batizadas de Heather e Katherine, mas ficaram mais tarde conhecidas como Tufts e Kitty. No entanto, Maude não tencionava morrer, aliás, a sua intenção era viver mais do que o pastor e, se possível, do que as suas próprias filhas. Era agora a esposa do pastor e tornou-se bastante mais conhecida dentro da comunidade, que, com algumas exceções, não gostava dela e a considerava arrogante, superficial e uma mulher apenas interessada em subir de estatuto social. Corunda decidiu que Thomas Latimer fora trapaceado ao casar com uma harpia maliciosa. Um veredito que deveria ter esmagado Maude, mas que nem sequer beliscou a sua arrogância. Maude era o tipo de pessoa cuja autossatisfação é tão grande, tão enraizada, que nem chegava a perceber o quanto as pessoas a detestavam. O sarcasmo e a ironia não lhe penetravam na pele, tal como água em penas, e limitava-se a ignorar toda a gente. Com tudo isto teve uma sorte incomparável: desiludido desde muito cedo como casamento, o seu marido considerava o matrimónio um contrato sagrado e para toda a vida, um elo que jamais poderia ser quebrado ou desonrado. Independentemente de Maude ser uma esposa pouco apropriada, Thomas Latimer mantinha os seus votos. Lidava com ela com paciência, umas vezes fazia-lhe as vontades, outras convencia-a a agir de outro modo, aturava as suas birras e enxaquecas, e nem uma única vez contemplou quebrar os seus votos para com ela, nem sequer em pensamento. E se, por vezes, pensava que seria maravilhoso se Maude se apaixonasse por outra pessoa, bania esse pensamento horrorizado enquanto este ainda se formava. Nenhum dos pares de gémeas era idêntico, o que levava a discussões acesas sobre o que era considerado «idêntico» no que dizia respeito a gémeos. Edda e Grace tinham a altura e a constituição esguia da mãe, bem como a graciosidade do pai. Ambas eram lindas de se ver, os traços dos seus rostos, mãos e pés idênticos. Tinham o cabelo escuro, muito negro, sobrancelhas arqueadas, pestanas longas e espessas, e olhos cinzentos muito claros. No entanto, existiam diferenças. Os olhos de Grace eram arregalados e continham uma tristeza natural que ela própria cultivava. Já os olhos de Edda eram mais profundos, sombreados por pálpebras sonolentas, e possuíam uma certa invulgaridade. O decorrer do tempo revelou que Edda era extremamente inteligente, decidida e um pouco inflexível, enquanto Grace não era grande apreciadora de livros nem sedenta de conhecimento, irritava toda a gente com a sua tendência para se queixar e, pior ainda, para se lamuriar. Quando começaram a treinar para se tornarem enfermeiras, a maior parte das pessoas não conseguia ver o quanto Grace e Edda eram parecidas. O seu temperamento estampara expressões bastantes díspares nos seus rostos e os seus olhos reparavam em coisas diferentes. Maude nunca gostou muito delas, mas escondia a sua antipatia com uma astúcia subtil.

Aparentemente, as quatro raparigas estavam sempre limpas e arranjadas, todas vestidas com roupa de valor semelhante e eram educadas de forma justa. Se, porventura, escolhia roupa com cores que favoreciam mais as suas filhas do que as de Adelaide, bem… Isto não podia manter-se, e não se manteve depois dos primeiros anos de adolescência das raparigas, altura em que imploraram ao pai para lhes dar a liberdade de escolher as cores e o estilo de roupa. Felizmente para Edda e Grace, quando a revolução de moda juvenil terminou, a surdez seletiva de Maude permitiu-lhe ignorar a opinião generalizada de que Edda e Grace tinham bastante mais bom gosto em roupa do que Maude. Tufts e Kitty (Tufts nascera primeiro) eram, ao mesmo tempo, tão semelhantes e diferentes entre si como o par de gémeas mais velho. Saíam à mãe, uma versão de bolso de Vénus: estatura baixa, seios arredondados e bem proporcionados, cintura fina, lábios cheios e pernas espetaculares. Donas de uma beleza perfeita, sempre foram arrebatadoras desde que nasceram, e toda a gente ficava encantada ao ver que, no caso de Tufts e Kitty Latimer, Deus usara o mesmo molde duas vezes. Covinha no rosto, caracóis, sorrisos encantadores e enormes olhos redondos conferiam-lhes o encanto fascinante e enternecedor de um gatinho, tudo rematado por uma testa arredondada, o queixo pontiagudo e uma ligeira curva nos lábios, tal como a Mona Lisa. Tinham o mesmo nariz curto, fino e direito, os mesmos lábios cheios, as mesmas maçãs do rosto proeminentes e as sobrancelhas delicadamente arqueadas. O que Tufts e Kitty tinham de diferente era a cor da pele: Kitty era o sol e Tufts a lua pálida. Tufts tinha uma tonalidade de mel, desde o cabelo louro como âmbar até ao brilho de pêssego da sua pele, e olhos dourados, serenos e distantes. Era colorida com vários tons da mesma cor básica, como umartista com uma paleta limitada. Oh, mas Kitty! Onde Tufts se misturava, Kitty contrastava. O mais notável era a sua pele um intenso castanho pálido, que alguns apelidavam de «café com leite» e que outros, menos caridosos, murmuravam dever-se à mistura de sangue negro que a família de Maude tinha algures. O seu cabelo, sobrancelhas e pestanas eram claros como cristal, um louro extremamente claro, de um tom muito pouco quente, o que em contraste com a pele escura era espetacular. Apenas o tempo dissipou os rumores de que Maude descolorava o cabelo de Kitty com água oxigenada. Para culminar a singularidade de Kitty, os seus olhos eram de um azul profundo com raios cor de lavanda, que apareciam e desapareciam consoante o seu estado de espírito. Quando pensava que ninguém a observava, Kitty contemplava o seu mundo sem a tranquilidade das irmãs. A luz que iluminava os seus olhos ficava perdida, até mesmo um pouco aterrorizada, e, quando a situação escapava à sua capacidade de raciocínio ou de controlo, afastava-se e retirava-se para ummundo só dela, sobre o qual não falava com ninguém e de que apenas as suas três irmãs tinhamconhecimento. As pessoas chegavam a parar e a olhar descaradamente para Kitty quando a viam pela primeira vez. Como se isso já não fosse mau, a mãe gabava constantemente a sua beleza a todos os que encontrava pelo caminho, incluindo aqueles com quem se cruzava diariamente: uma enchente de gritos estridentes e afetados de admiração, não se importando com o facto de o alvo da sua atenção, Kitty, estar a apenas alguns passos de distância, bem como as outras três raparigas. — Já alguma vez viram uma menina tão bonita? — Quando crescer, vai casar com um homem rico! Foi precisamente este tipo de comentários que levou a um ralador de queijo, a uma corda e à decisão que Edda tomou de inscrever as quatro num curso de enfermagem no Hospital de Corunda, no início de abril de 1926, pois as irmãs concordaram que, se não tirassem Kitty da alçada de Maude, poderia chegar o dia em que Edda não estaria por perto para frustrar mais uma tentativa de suicídio. Visto que o único mundo que as crianças conhecem é aquele em que habitam, nunca ocorreu a nenhuma das quatro Latimer questionar o comportamento de Maude Latimer ou parar e pensar se todas as mães eram iguais, limitando-se a assumir que, se alguém era tão arrebatador (palavra utilizada por Maude) como Kitty, estaria sempre sujeito às mesmas implacáveis torrentes de atenção. Não lhes passou pela cabeça que também Maude era única, à sua maneira, nem lhes ocorreu que talvez uma criança com uma natureza diferente da de Kitty tivesse apreciado a atenção. Na presente situação, as raparigas Latimer entendiam que a tarefa principal das três era proteger a vulnerável quarta filha do que Edda chamava «idiotices parentais». À medida que cresciam e amadureciam, o instinto e o desejo de proteger Kitty nunca esmoreceu, nunca diminuiu, nunca deixou de parecer menos importante.

As quatro raparigas eram inteligentes, embora Edda arrecadasse todos os louros académicos, pois a sua cabeça compreendia conceitos matemáticos tão facilmente como acontecimentos históricos ou língua inglesa. A inteligência de Tufts era muito semelhante, embora lhe faltasse a paixão destemida de Edda. Tufts tinha uma maneira de ser muito prática, terra a terra, que estranhamente diminuía a sua inegável beleza. Ao longo da adolescência, Tufts demonstrou pouco interesse em rapazes, que considerava estúpidos e infantis. Qualquer que fosse a essência que os rapazes emanavam para baixo dos narizes das raparigas e as atraía, esta não tinha efeito sobre Tufts. Existia um equivalente masculino do Colégio Feminino de Corunda: o Colégio Masculino de Corunda, e as quatro raparigas Latimer confraternizavam com os rapazes nos bailes, festas, eventos desportivos e outros. Eram admiradas, até desejadas, beijadas quando queriam, mas certas partes do corpo, como os seios e as coxas, eram proibidas. As regras não eram difíceis de cumprir para Tufts, Kitty e Edda, embora fosse um pouco mais complicado para Grace, a mais aventureira e a menos dada à leitura. Constantemente mergulhada embisbilhotices e revistas femininas sobre estrelas de cinema, atores de teatro, modelos e o mundo da realeza, como aquele representado pela família de Windsor que governava o Império Britânico, Grace não deixava de ser falada dentro da comunidade. O seu cérebro era egocêntrico, mas perspicaz, era perita em safar-se de sarilhos ou trabalho que não gostasse de fazer, mas Grace tinha uma paixão imprópria: adorava as locomotivas a vapor dos caminhos de ferro. Quando desaparecia, toda a gente no presbitério sabia onde a encontrar: na gare a observar as locomotivas a vapor. Contudo, apesar das suas muitas características indesejáveis, Grace era uma pessoa naturalmente bondosa, muito afetuosa e dedicada às irmãs, que, por sua vez, aturavam a sua tendência para se queixar constantemente. Kitty era a que tinha a imaginação romântica, mas a sua beleza espiritual não era igual à sua beleza física, sendo dotada de uma língua que podia ser mordaz ou atrevida, ou ambas. Era a sua defesa contra toda aquela rapsódia de elogios, pois apanhava as pessoas desprevenidas e fazia-as pensar que haveria algo mais por detrás daquele rosto bonito. As crises depressivas (embora fossem apelidadas por todos de «tristezas de Kitty»), que a tomavam de assalto quando Maude penetrava as suas defesas, eram momentos muito maus, aliviados apenas pelas irmãs, que compreendiam as suas razões e a apoiavam até a crise estar superada. Nos exames escolares, Kitty saía-se bem, até a matemática lhe mostrar as suas terríveis cabeças de hidra. Era ela que arrecadava os prémios pelos ensaios de literatura e que se expressava excecionalmente bem no papel. Maude detestava Edda, sempre a líder na oposição aos seus planos para as raparigas, sobretudo para Kitty. Não que Edda se importasse. Quando chegou aos dez anos, já era mais alta que a madrasta e, quando chegasse à idade adulta, faria sombra a Maude de uma forma bastante desconfortável e ameaçadora para uma senhora tão complacente. Os pálidos olhos azuis olhavamfixamente como os de um lobo branco e, nas raras ocasiões em que Maude tinha um pesadelo, era Edda quem lhe atormentava os sonhos. Foi com enorme prazer que Maude dissuadiu o pastor de fazer o enorme sacrifício monetário de pagar o curso de medicina a Edda, considerando-o o seu maior triunfo. Sempre que pensava em negar a Edda qualquer das suas ambições de vida, ficava imensamente satisfeita. Se Edda soubesse quem teve a última palavra e decidiu sobre a sua carreira médica, a situação teria sido muito pior para Maude, mas Edda nada sabia. Apanhado entre a pressão esmagadora da sua inflexível esposa e a sua própria convicção de que, ao negar o curso a Edda, a estava a poupar a uma vida complicada, Thomas Latimer nunca contou a ninguém.

Edda simplesmente achou que era uma questão de dinheiro. Edda e Grace, Tufts e Kitty, as quatro fizeram as malas, uma única por pessoa, era tudo o que lhes era permitido levar para este novo mundo no hospital, e, no início de abril de 1926, apresentaram-se ao serviço no Hospital de Corunda. — Já era de esperar! — disse Tufts, com um ar desolado. — É Dia das Mentiras.

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